Imprevisíveis infidelidades (para a Senhora da Chuva)

Alguém já disse que nós somos nossas circunstâncias. Tenho certeza que na vida de todos já aconteceu algum imprevisto e com a continuação dos fatos se verificou que o passado se acomoda nesta imprevisibilidade e se transforma em futuro.

Eu ia fazer quinze anos quando Bartolomeu foi passar uns dias conosco em Itae, nossa fazenda ao pé da Chapada dos Guimarães. Ele estava viúvo há poucos dias e talvez para não rememorar as lembranças da amada, dos amigos, dos lugares, tenha aceitado o convite de meu pai.

A família de Bartolomeu era do nordeste, embora seus avós fossem belgas, oriundos do Congo, decidiram se fixar numa mesma latitude, pois a cana de açúcar era mais lucrativa por aqui. Assim, eles se tornaram grandes usineiros de açúcar e coronéis políticos.

Meu pai era um barão do café e tinha bastante influencia no senado da capital da República, o Rio de Janeiro.

Na época eu não sabia que Bartolomeu estava com trinta e seis anos e era o mais jovem senador da república. Descrever aqui o significado social, político e psicológico de um político naqueles conturbados anos de Artur Bernardes, é desnecessário para o âmago desta história.

Minha paixão por Bartolomeu foi primeiramente física, é claro. Alto, aloirado, olhos verdes e sempre bem vestido. Era muito calado para meu gosto, mas tinha sempre um sorriso nos lábios quando falava com alguém. Ao vê-lo pela manhã até a hora que se recolhia, estava sempre com seu terno de linho branco ou de flanela creme e com as indefectíveis polainas cobrindo as botinas.

Sua elegância tinha algo de blazé devido a colocar uma das mãos no bolso da calça enquanto caminhava em vez de usar uma bengala como todos os cavalheiros faziam.

Todos esperavam que ele fosse mais exaltado nas reuniões que aconteceram naquele tempo, mas com seu modo sereno de argumentar, as reuniões ficaram mais amenas.

Certo dia, vendo os peões adestrando um cavalo, Bartolomeu com seus movimentos suaves e firmes, despiu o paletó, descalçou as botinas, arregaçou as calças até o meio das panturrilhas e com habilidade montou no azalão, domando-o.

Esta foi a primeira vez que tomei conhecimento que meus seios tinham crescido bastante e que os mamilos ardiam de um modo prazeroso.

Quando chegou a hora de Bartolomeu partir, ele nos presenteou a todos. A mim deu uma correntinha de ouro com a medalha de Santa Luzia.

- Que ela sempre proteja seus belos olhos, menina Adélia.

Não consegui nem agradecer. Baixei a cabeça e corri pro meu quarto. Todas as cores de minha vida se eclipsavam na cor branca do terno da minha paixão.

Nos dois anos seguintes eu estava quase sempre adoentada. Explicar isso também é desnecessário, o astucioso leitor saberá a razão.

Perto do Natal meu pai nos disse que Bartolomeu viria ficar com a gente. Meu pai nunca me contou, mas eu fiquei sabendo que Bartolomeu sempre lhe perguntava como estava minha saúde.

- Meus bons amigos, que tão regiamente recebem-me aqui neste teto, estou eternamente em dívida com vosso carinho –

Naquele inesquecível jantar Bartolomeu iniciou sua declaração de amor a mim.

-... E, portanto, humildemente, peço a mão da menina Adélia!

Todos ficamos surpreendidos, tal qual no dia que ele domou o cavalo. Minha mãe levantou-se e veio me abraçar como me defendendo, com um olhar aflito. Meu pai tinha a expressão de um homem traído. Possivelmente se indignara com o amigo que tinha afronta de querer sua mais bela filha como mulher. A questão de ele ser vinte e um anos mais velho também pesou.

- Senador, estou surpreso pela sua falta de tato. Creio também, que Adélia gostaria de se casar, mas não é com um senhor que poderia ser pai dela. Coisas assim nunca dão certo quando são decididas tão abruptamente. Então, Bartolomeu, espero que voce não esteja no seu juízo normal e esqueça-se do que falou, pois todos nós a partir de agora, não escutamos nada do que foi dito antes.

Os dois homens, de pé, postados nas cabeceiras opostas da longa mesa se encaravam. Bartolomeu polidamente baixou o olhar e enfiou uma mão no bolso da calça.

Eu queria dizer que aceitava. Queria gritar o meu sim pro belo espécime que me desejava. O branco de seu terno agora abria as cores do arco-íris como o prisma de Newton.

Mas o busto e o braço de minha mãe não só me sufocavam como cegava a luz. Comecei então a soluçar fortemente, pois antevia aquele braço e busto junto às minhas atitudes pro resto da minha vida.

- Não chore querida Adélia. Dentro de um ano voce será maior de idade e poderá decidir sozinha. Se voce não me quiser, paciência. Não casarei com mais ninguém.

Tenho certeza que todos nós ficamos, ao menos um pouco, comovidos com estas últimas palavras do meu arcanjo. Eu imaginei que havia um cavalo branco alado esperando por ele, assim que saudou a todos com um leve inclinar da cabeça e se retirou.

Todas as ameaças de meus pais não impediram que eu me tornasse completamente saudável e desabrochasse tão femininamente que as pessoas se esforçavam em agradar-me por puro prazer.

Nos meses seguintes minha beleza e simpatia faziam a felicidade de todos os mortais, ultrapassando as fronteiras de Minas Gerais.

As primeiras cartas que Bartolomeu enviou-me nem chegaram às minhas mãos e para alívio de meu pai, cessaram completamente.

Minha ama retirou do cesto de papéis o envelope com o remetente, assim Bartolomeu passou a enviar para a casa de um parente dela e nossas cartas de amor desse tempo são mais valiosas do que toda riqueza que agora tenho.

Por fim, minha família devido às circunstancias, aceitou o imprevisto pedido de casamento.

E como toda bela princesa, tive o casamento cheio de pompa e circunstancia.

Depois disso tudo, já é hora do paciente leitor saber da minha imprevista infidelidade.

II

Embarcamos a bordo do Caledonia no píer da Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Faríamos uma escala em Salvador e Recife. Depois, direto a Lisboa. Em Le Havre, desembarcaríamos e continuaríamos nossa lua de mel, viajando em trens por toda a Europa.

Bartolomeu tinha como companhia seu secretário particular e eu uma dama de companhia. Ambos ficaram alojados em cabines da segunda classe, ou seja, uns dois conveses abaixo dos nossos.

Desde primeiro momento que nos encontramos e nos deixaram a sós, Bartolomeu mostrou-se um amante controlado e viril. Foi de uma ternura infinita devido ao meu descontrolado furor sexual, que ele pensava que era medo do primeiro contato carnal.

Carinhosamente domou a égua luxuriosa em mim e... Desmontou.

Em minutos, enquanto me preparava para conhecer seu corpo detalhadamente, ele se ergueu da cama vestindo o robe-du-chambre e se dirigiu ao banheiro.

“Ah! Essa é a regra então? É assim que devemos nos comportar? O que eu estou sentindo deve passar. Acho que não devo entrar no banheiro enquanto ele estiver lá. Muito bem! Aos poucos vou aprendendo.”

Desta forma eu pensava e passei a aceitar docilmente esta maneira de vida sexual. O amor que eu dava e recebia de Bartolomeu amainavam as pulsações de minha libido.

Durante o dia, Bartolomeu e o secretário tratavam das correspondências e dos assuntos relativos ao senado. A dama de companhia, era ao mesmo tempo subserviente e acabrunhada, assim eu passei a dispensá-la e dois dias depois de partimos eu lhe disse que se precisasse dela eu a chamaria.

Meu marido não se comportava como o típico marido latino ciumento. Assim, eu socializava constantemente com as pessoas, que se pode dizer, eram da minha classe.

Certa noite durante a soirée, eu senti um pouco de enjôo. Vendo que Bartô parecia estar absorvido em alguma conversa interessante, não quis perturbá-lo e me dirigi sozinha pro camarote.

Fecho a porta às minhas costas e logo sou imobilizada por trás por braços tenazes e minha boca tapada por uma mão de dedos nodosos. A ponta de um punhal aparece na ponta de meu nariz e depois desaparece pra em seguida sentir uma picada no pescoço.

- Isto é só uma amostra da imensa dor que é ter a garganta cortada de lado a lado! Vou te soltar. Não grite, pois não há modo de escapar e aceite desde já o inevitável. Só sairei daqui depois de matar teu marido! É só isso que eu quero... portanto não faça nada que vá aumentar a lista de mortos!

O terror em mim era tanto que a indisposição se tornou uma incontrolável cólica abdominal e sem pensar em mais nada corri pro banheiro.

Enquanto me recompunha depois do vomito foi que me conscientizei da presença daquele homem encostado no umbral da porta do banheiro. Meu choro veio em ondas incontroláveis.

Senti um ardor numa face. Depois o mesmo na outra face e garras segurando meus braços me balançavam violentamente. Só no terceiro tapa no rosto é que parei com o choro histérico.

Ele me fez sentar numa poltrona e insistiu que eu desse uns dois goles numa das bebidas fortes que estava à disposição.

Algo estava acontecendo comigo, além do terror de ter que presenciar o assassinato de meu marido. Eu sentia uma fervura por todo meu corpo e tinha certeza que meu rosto estava ruborizado, pois eu notava de vez em quando que o assassino me fitava como se estivesse admirando algo extraordinário belo.

Pareceu-me que seus olhos eram de um azul escuro. O formato de suas pálpebras pareciam de um oriental, mas seguramente ele era um caucasiano, mestiço talvez. Não era belo, tinha, porém, marcas viris no rosto e aparentemente seus dentes eram sadios. Ele mantinha a aba do chapéu praticamente escondendo as hirsutas sobrancelhas negras.

- Por que? Ao menos eu devo saber o porquê!

- Os Correas não gostam dos Odervrecht. Há anos que eles matam-se um ao outro. Não sabia? O coronel Correa me contratou...

- Mas... Assim, friamente? Não existe remorso em você? Deus! O que você dirá a Deus?

- Deus quer distancia de homens como eu. Conheço muita gente que me contratariam para matá-lo... se ele pudesse ser encontrado!

Vislumbrei um leve sorriso de escárnio no rosto dele. Meu pavor aumentou ao saber que estava diante de um ateu, de um materialista predador. Sua moral se baseava somente em aplacar a fome do dia seguinte. Isto até poderia ser considerado amoral pelas circunstâncias que a vida tinha lhe aprontado e seu livre arbítrio só obedecia à determinação de arranjar o pão de cada dia, vencendo todas as imprevisibilidades que aparecessem a sua frente.

Ao arranjar meus pensamentos dessa maneira, meu instinto de sobrevivência me dizia que eu deveria contornar sua inquebrantável determinação.

- Eu sou Adélia e sou rica. Sei que pra você isto é só um trabalho remunerado e...

- Não desperdice suas palavras, dona Adélia.

- Mas. mas, deve haver algo dentro de você dizendo do absurdo que é esta atitude. Voce é um lacaio de outro assassino que deixa somente você com mãos ensanguentadas! Você se sente masoquistamente feliz tão quanto teu senhor demonstra satisfação. Você é um palhaço. Palhaço, não. Um capacho! Teu patrão está satisfeito não por teu trabalho realizado, mas pelo estorvo que saiu do caminho dele pelas tuas mãos assassinas e covardes!

- Pouco me abala essas elucubrações. Eu recebo o pagamento e pronto. Pouco me interessa que terei fantasmas me olhando das paredes do negócio que terei.

- Aah! Então você tem um futuro!

- Não disse isso...

- Quanto falta pra esse... Negócio?

- Escuta dona Adélia! Não há paralelas pra mim, só uma reta que estou determinado a parar antes do infinito. Falta pouco, mas este pouco vale muito mais do que a senhora possa me oferecer. Portanto aceite o destino do jeito que ele se apresenta.

- Como eu posso aceitar isso tão calmamente como você sugere? Eu estou em plena juventude e amando com todas as células de meu ser! É isso! Você não ama nem foi amado! É um lacaio assassino e pária social!

- Chega! Puta! Eu posso ter você aqui e agora! E tua única alternativa é se sujeitar!

- Jamais! Nunca um merda como você seria capaz de me fazer sentir alguma coisa que fosse humana! Nada, nada mesmo, faria com que eu me sujeitasse a você, besta assassina!

- Nem mesmo a vida de teu maridinho?

A única justificativa pela minha insensata impetuosidade de provocar o assassino, só podia ser a minha plena e inexperiente juventude. E agora, estava eu ali diante do imprevisível. Simplesmente gelei. Será que ele estava propondo a troca da vida de Bartolomeu pela minha?

De repente a realidade da presença da força do assassino pesou no meu autocontrole. Eu não conseguia reagir as suas palavras e esta involuntária mudez fazia meu sangue ferver de raiva.

Ele vem até onde estou sentada e uma de suas mãos me envolve o queixo me fazendoeu olhar para cima. Ao mesmo tempo ele se inclina e me beija.

Por completa surpresa eu permaneci imóvel enquanto seus lábios sugavam os meus e sua língua serpenteava em busca da minha!

A mesma sensação que senti nos seios quando vi Bartolomeu com as calças arregaçadas montando o cavalo, aconteceu ali!

Sei que por uns segundos correspondi ao beijo e confesso que foi com grande esforço que me desvencilhei daquele beijo.

Eu sabia que deveria mostrar asco ao passar a costas da mão na boca, mas ao invés disso baixei a cabeça e apertando uma mão na outra, as posicionei em cima do colo. Se, naquele exato momento, ele tivesse tentado me beijar novamente, eu me entregaria totalmente!

- Vou lhe propor um trato. Quero voce pelo menos uma vez ao dia. Acontecendo isso, teu marido está salvo... Nesse dia!

Eu levantei a cabeça e o encarei com olhos arregalados. Que poderia eu fazer? Novamente as circunstâncias não me deixavam alternativas. Como seria meu futuro?

-... E quero uma garantia por escrito de certa quantia para que eu possa abrir um comércio... Vamos dizer, em Portugal.

Quem cala, consente. O assassino vai até a mesa onde estão os papéis de meu marido e volta com um pedaço de papel, onde está escrito uma sigla alfanumérica. É a localização da cabine dele na segunda classe.

- Esteja lá às dez horas. Voce tem hoje à noite até amanhã pra me dar a garantia. Aah! Ia me esquecendo! Mostre a mercadoria pela qual estou escambando!

Vergonha. Humilhação. Ódio. Impotência. Estas eram as verdades de minha circunstância. Aquele ordem dissipou a mínima simpatia pelo ser humano que eu podia sentir por ele, já que eu teria que me submeter aos seus caprichos. Aquilo era uma atitude própria de um canalha. Já não era nada imprevisível. Eu simplesmente não movi um músculo.

Ele agarrou-me um dos braços fazendo-me levantar. Em instantes meu vestido longo de cetim pérola estava em frangalhos aos meus pés. Meus seios tremiam levemente e meus rosados mamilos ficaram tão empinados como meu queixo. Mantive minha cabeça erguida durante todo o tempo que ele rasgava meu vestido. Eu não iria me comportar como uma virgem amedrontada.

O assassino deu um passo atrás pra admirar meu voluptuoso corpo, que nem mesmo Bartolomeu, agora um pré-corno, tinha visto dessa maneira. Eu tinha os braços ao longo dos meus flancos e estava vestida com uma lingerie de seda que cobria um pouco abaixo do umbigo até a parte de cima das minhas esplendidas coxas. Um pouco mais abaixo, meias apertadas com ligas cobriam ambas as coxas. Meus sapatos eram de salto médio, como era moda na época.

Novamente o crápula se aproximou de mim e suas mãos vieram em direção a minha cintura. Antes que elas alcançassem o elástico da lingerie, eu as afastei com um tapa. Ele parou surpreso pra logo em seguida abrir a boca em admiração, mostrando seus belos dentes, quando viu que eu própria despia minha lingerie, levantando uma perna e depois a outra até que toda minha genitália ficasse exposta ao seu olhar libidinoso.

- Pudera eu ter você agora! Mas é muito arriscado! E eu teria que lhe matar também!

Ele veio até minha frente e passando a mão por minha nuca, forçou-me a beijá-lo. Desta vez, resisti. Ele não percebeu nenhum tremor em todo meu corpo nu encostado ao seu. Mas se tivesse passado a mão em minha feminilidade, sairia com os dedos pingando!

III

A segunda classe do Caledonia era limpa, mas se levava um tempo pra se acostumar com o cheiro das pessoas. A maioria dos homens bebiam e fumavam bastante, sem contar com o cheiro dos vômitos.

Eu, uma jovem recém casada em lua de mel, me esgueirava pela multidão tentando parecer anônima com meu chapéu e xale encobrindo meu rosto, o mais discreto possível. Estava indo em direção a cabine do canalha que me chantageava.

Encontrei a cabine e bati timidamente na porta. Ela recuou uns centímetros e eu logo adentrei a exígua cabine. Havia o que se chama de beliche, uma cama acima de outra, uma mesa-escrivaninha com cadeira e uma pia encimada por um pequeno armário com espelho.

O meu gangster estava acabando de barbear-se. Não olhou pra mim até acabar de enxugar o rosto, enquanto eu permanecia de pé junto à porta.

-Não faço questão de saudações... E também de beijos. Voce virá aqui todos os dias nesta mesma hora e deve entrar sem bater. Dispa-se.

Novamente eu não conseguia me mover. O olhar frio do assassino me ameaçava se eu não obedecesse imediatamente. Mas mesmo assim, eu não conseguia nem piscar. Ele se aproximou ficando seu rosto a poucos centímetros do meu. Sinto suas mãos agarrarem as lapelas de meu cardigan.

Noto que sua respiração está tão ofegante quanto a minha. Só que suas narinas se dilatam enquanto ele aspira e expira o ar. Eu faço o mesmo com a boca semiaberta. Tanto ele quanto eu sentimos sede pela saliva um do outro.

O beijo não foi imprevisível. Foi inevitável. A troca de calor entre nossos corpos e meu arquejar e suspiros são tão inevitáveis quanto eu lhe acariciar os cabelos enquanto ele beija meus seios e suga meus atormentados mamilos.

Tento justificar a minha infidelidade ao homem que realmente amo, pois este canalha que agora me faz suspirar de luxuria é um assassino de aluguel e foi pago pra matar meu marido!

Nós ainda estamos em pé e minhas vestes estão em desalinho. O meu crápula me ajuda a despir-me e me faz sentar na cama. Eu estou ansiosa e temerosa ao mesmo tempo. Ele teve dificuldade em expor sua bela e imensa genitália que eu já adivinhara o tamanho durante nossa esfregação.

Ele estava a minha frente. Ele, o pênis. Pareceu-me a coisa mais natural beijá-lo. Como era natural beijar qualquer objeto de adoração, como um crucifixo, por exemplo.

Toda essa minha iniciação aos prazeres carnais deverá ser contada em outro fórum, pois aqui o âmago da questão é a circunstância a que um ser é submetido e suas reações.

Mas podemos voltar por um breve momento devido a uma situação esdrúxula que se apresenta como imprevisível em que se pensa que se tem o autocontrole.

Meu crápula amante me mostra os jardins do Shangri-Lá ao beijar e sugar todas as latitudes e longitudes dos meus hemisférios, concentrando seu poder labial em meu cone sul.

A entrada no paraíso pela primeira é algo extraordinário. Eu devo ter morrido e não sei quanto tempo fiquei neste alterado estado de prazer. Quando ressuscitei, com minha visão ainda nublada, vi os cabelos negros de meu crápula ainda entre minhas coxas. Mas ela estava imóvel, como concentrada em algo muito importante. Voltei a adormecer.

Por volta do meio-dia eu estava de volta a primeira classe e fui direto pro banheiro, passando por meu marido e seu secretário.

Então fui notar que o crápula chantagista tinha depilado meus pelos pubianos e deixado um artístico “V” de pentelhos bem em cima de meu monte de Vênus.

Naquela noite, durante o baile, Bartolomeu estava radiante com minha alegria. Na verdade eu tentava esconder meu remorso por traí-lo. Mas, ao mesmo tempo, eu o mantinha vivo!

Nós dois parecíamos dois adolescentes e nos excedemos um pouquinho na bebida e nas risadas. Por fim, fomos dormir exaltadíssimos.

Acordei por volta das nove horas e me apressei pra não me atrasar, pois o assassino poderia pensar que eu tinha quebrado o acordo. Beijei Bartolomeu que ainda dormia e fui correndo ao encontro do meu involuntário pecado.

A porta estava trancada. Eu bati levemente. Depois mais forte. Achei melhor me afastar por uns minutos e fiquei encostada a balaustrada olhando o oceano e a esteira de espuma na cauda do Caledonia. Voltei à cabine, bati um pouco mais forte na porta. Não houve resposta. Resolvi dar outra volta e mesmo assim quando bati de novo, não houve resposta.

Uma aflição aterrorizante tomou conta de mim. E se foi ele que quebrou o acordo e foi matar meu marido. Desesperada, tentando disfarçar minha angustia chego correndo á nossa cabine e vejo o corpo imóvel de Bartolomeu ainda na mesma posição que o deixei. Chamo pelo seu nome. Ele acorda e me contempla com um maravilhoso sorriso enquanto abre os braços para mim.

Depois do almoço, eu e Bartolomeu costumávamos ficar juntos, fazendo diversas atividades. Há certo momento, meu marido me pergunta se algo está me preocupando.

Eu lhe respondi que era um leve indispor.

Na verdade eu estava um poço de ódio. Tinha sido usada e desprezada por um pária sujo, escória de esgoto. Imaginava todos os palavrões para designá-lo em minha mente. Quem ele pensava que era? Um reles assassinosinho de meia pataca que me ensinara algumas coisinhas de técnica sexual e se achava meu dono. Palhaço!

Depois do jantar, Bartolomeu sugeriu que ficássemos em nossa cabine, lendo e escutando o gramofone. Eu concordei. Eu não queria ceder a tentação de ir procurar o pária vagabundo.

Meu ódio era tão grande que tomei a iniciativa para que Bartô me possuísse. Eu queria mostrar a mim mesma que Bartô me bastava.

Como sempre ele foi esplendido... Mas, não conseguia mais me domar. Uma hora depois, Bartolomeu dormia o sono dos justos e dos cornos. Eu estava inquieta e em fogo!

- Voce não está chegando muito cedo pro nosso encontro!

- Canalha! Filha de puta! Sai de minha frente!

E vou empurrando meu objeto de desejo pra dentro da própria cabine. Consigo acertar-lhe uma bofetada no rosto e tento esmurrá-lo. É tudo em vão, eu ainda esmurro sua cabeça tendo meus lábios colados aos dele. Eu estou completamente nua por baixo da camisola e do, sobretudo que vesti quando decidi vir até a cabine dele.

O assassino se chamava Vitor e saí dali apta a ter seu punhal em todas as minhas bainhas.

Ele me escoltou até perto da minha cabine quando o sol já estava nascendo.

Faltavam dois dias para chegarmos à Lisboa. Minha dama de companhia tinha me visto perambulando pela segunda classe e por curiosidade, ou maldade, foi perguntar ao meu marido se eu a estava procurando por lá. Lógico que Bartô achou estranho e foi procurar-me.

Por coincidência, naquele dia, eu estava com o colar de esmeraldas e vestia meias somente. Minha semi-nudez era coberta pelo casaco.

Alguns metros atrás de mim, meu marido e a dama de companhia viram quando eu entrei na cabine de Vitor.

Felizmente ele estava vestido e eu fazia charminho para me mostrar totalmente nua, exceto com o colar de esmeraldas e minhas meias, quando escutamos fortes batidas na porta!

- Abra! Abra essa porta! Adélia sei que voce está aí dentro!

O instinto assassino tomou conta de Vitor e ele parou alguns segundos para saber quais suas opções. Ele mandou que eu tirasse o colar e que abotoasse todo o, sobretudo. Em seguida colocou um punhal na parte de trás das calças e se encaminhou pra porta. Eu estava petrificada de terror. O inevitável e o imprevisível estavam ali na minha frente. Qual dos dois que iria acontecer?

Apesar de Bartolomeu ser quase uns quinze centímetros mais alto que Vitor, ele foi violentamente puxado pra dentro da cabine e imobilizado tendo a ponta do punhal já lhe penetrando a carne e um filete de sangue a escorrer pelo pescoço.

Vitor sabia que em minutos os marinheiros estariam ali, chamados pela dama de companhia. Sua chance era contar a verdade e arruinar minha vida e ferir horrivelmente os sentimentos de Bartolomeu.

Meu marido me olha preocupado. Ele não se importa com o punhal em sua garganta.

-Não sei o que está acontecendo... Mas, por favor, deixe minha esposa fora disso! Diga-me o que voce quer que eu lhe atenda... Mas primeiro deixe minha esposa sair!

- Acho que não tenho saída! Pegue sua esposa e o colar de esmeraldas e saiam daqui! Ela lhe dirá quem eu sou e o que eu ia fazer com voce, senador. Este colar seria para pagar minha desistência!

Novamente a imprevisibilidade.

Nesse momento a porta é arrombada e pelo menos uns oito robustos marinheiros entram e imobilizam Vitor.

No último olhar que Vitor me deu, minhas lágrimas de agradecimento fizeram brotar um leve sorriso em seus lábios.

Bartolomeu decidiu que seria melhor desembarcarmos em Lisboa do que em Le Havre. Assim evitaríamos os cochichos. Vitor foi o primeiro a desembarcar, levado por policiais.

De repente o imprevisível desapareceu e voltamos ao status quo. Bartolomeu tinha conhecimento desses assassinos que ambas as famílias faziam uso, portanto nada foi surpresa pra ele. Apenas minha imprevisível atitude o deixou mais agradecido ainda.

E para evitar novos possíveis atentados, Bartô decidiu que iríamos morar em Paris.

Ele nunca me perguntou se houve algo entre eu e Vitor. E eu no meu cotidiano me esforçava o máximo em ser a égua domada de Bartolomeu e não na mulher que Vitor me descobriu.

Em 1929 houve uma crise financeira mundial que abalou a fortuna de milhões de famílias. Resolvemos voltar pro Brasil, pois não adiantava se ter algum dinheiro se não havia comida.

Nesta altura tinha nascido Vitória, que tinha os mesmo olhos azuis do pai. Bartolomeu nunca desconfiou, pois eu tenho olhos azuis.

Fomos morar em Laranjeiras. Bartolomeu voltou as suas atividades senatoriais. Eu cuidava de um orfanato para filhas e viúvas de militares. Vitória começou o Jardim de Infância. Algumas vezes eu a apanhava na escola e vinha passeando pela Praça Paris até nossa casa. Outra vezes eu a levava e deixava que um de nossas empregadas fossem buscá-la.

Nesse dia, beijei o rostinho de minha filha e ainda dei adeus quando ela entrou no prédio e a jovem professora a recebeu. Resolvi ir para o trabalho a pé, já que a manhã estava propícia para um passeio. Atravessei o Passeio Público aspirando o verde das árvores. Na esquina da Escola de Música, na Cinelândia, um amolador de facas e consertador de panelas estava compenetrado em seu trabalho e não me notou.

Eu parei uns poucos metros do carrinho onde ele trabalhava, como se esperando para atravessar a rua. Levou poucos minutos pra aqueles orientais olhos azuis me reconhecessem.

Eu não o olhava diretamente. Só quando decidi não ir trabalhar e voltar pra casa, foi que virei um pouco meu rosto e o encarei de rabo de olho e atravessei a rua. A presa e seu caçador.

Já em casa, meia hora depois, um amolador de facas com seu apito característico passa em frente ao nosso portão.

- Josias, peça a esse amolador pra vir até aqui verificar estas espadas e lanças da coleção do senador. Obrigado.

E durante muitos anos ele manteve todas minhas bainhas plenamente preenchidas com sua espada. Novamente o imprevisto fez minha atual circunstancia.

Ele morreu já algum tempo. Até o último dia, quando caiu enfartado, trabalhou na cutelaria que montei pra ele, na rua da Assembléia.