QUANDO VOCÊ ME VIU SUMIR

 

 

 

Antes houvesse essa grande ficção elaborada entre nós, digna de ser assistida de novo e de novo e de novo até as rugas mostrarem meu cansaço diante de um telão de cinema. Por muito tempo tive que dar uma pausa nas músicas, nossas músicas, a fim de digerir e cagar tudo aquilo que nos aconteceu. Foi um período indigesto e demorado, o qual acabei sendo obrigado não somente a fazer exercícios, mas aprender outros com o propósito de entender o que se passava dentro de mim; dentro de minha cabeça, para ser mais específico. A digestão, embora fosse lenta, andava para um só lugar, com um só destino. As portas foram fechadas, contudo nenhum caminho deixou de aparecer aos meus pés, mesmo em passos bêbados, mesmo com uma neblina ofuscando o chão, mesmo nas noites em que eu acreditei ver a mariposa-negra invadir meu quarto e passear acima de meus olhos até eu cair no sono; o qual, também, eu nunca acreditei que poderia acordar no dia seguinte. 

     E, finalmente, eu te ouvi. 

     Calmo, como se a inocência da verdade tivesse te absolvido dos pecados; você viu algum padre? Eu pensei comigo assim que terminei de ouvir aquela mensagem tão manhosa, tão graciosa e, ao mesmo tempo, tão triste. Tão você. Inteiramente você, naqueles necessários segundos. Falando pausadamente, sempre muito idílico, sem se importar com as vaidades, ou com a sinceridade, ou com o peso do momento; ou, para ser mais direto, sem se importar com a vida.

     A rua de sua casa se tornou o lugar mais longe de minha alma, é verdade. Teus amigos sabem disso. Só que eu ainda mantinha esperanças de te ver na janela; naquela mesma janela que incontáveis noites ficávamos debruçados vendo as pessoas tão pequenas e tão apressadas, julgando a vida que tinham e imaginando a vida que teríamos juntos. 

     “Ah, é você,” foi a primeira coisa que ouvi assim que a porta foi aberta. “Resolveu aparecer mesmo.” 

     Eu assenti com a cabeça.

     “Vem, pode entrar. Ele tá no quarto.” Me abstenho de comentar sobre a aparência de quem me recepcionou. Não importa pra mim, não importa pra ela, não importa pra ele e não importa pra você. Digo que sou bom fisionomista, mas essa pessoa eu tenho certeza de que nunca vi na vida. Posso dizer que tinha cansaço no rosto, olheiras, barba por fazer, cabelo bagunçado, e nada mais que possa agregar a história.

     Quando retornei ao seu lar, naquela manhã, passando pela sala e o corredor que me perdi intensas vezes, notei que minhas coisas ainda estavam nos mesmos lugares. Sem poeira, sem arranhões, devidamente cuidadas. Lembrei de algumas discussões que tivemos num passado tão distante quanto os sonhos que abandonei. Há anos não conversávamos, mas meu coração ainda carregava sua voz; aos lugares que eu visitava, às pessoas que eu conhecia, aos sonhos e devaneios às três da tarde quando minha cabeça doía devido a saudades que você deixou. E eu poderia falar por mais de uma hora sobre essa falta. Me tornei mestre nesse assunto, preparado como um professor de vinte anos de magistério aplica mais uma de suas aulas.

     Só não me preparei para sua presença.

     “Tem uma pessoa aqui pra te ver,” a pessoa da porta disse ao seu lado. 

     Ele perguntou por meu nome.

     “Sou eu,” eu respondi.

     “Olá, bobão,” quantas vezes eu sonhei com essa palavra? Quantas vezes eu sonhei com a chegada desse dia? 

     “Oi,” eu respondi erguendo uma de minhas mãos, frustradamente.

     “Que foi? Não tá feliz em me ver?”

     Não consegui nem ao menos sorrir com aquela piada. Infeliz talvez não seja a melhor palavra, mas eu esperava outra situação. Vê-lo deitado naquela cama, pálido, me causou o desconforto de um sorriso dado em um silêncio constrangedor entre duas pessoas em um primeiro encontro. E nisso me recordei do nosso e de como eu não tinha muito o que dizer, tanto por não ouvi-lo direito, por não entender as palavras que atropelava, quanto por estar tão ansioso pela situação por fim acontecendo.

     “Vem cá, senta aqui,” ele bateu alguns tapas na cama.

     Antes de andar dei uma rápida olhada para a pessoa da porta, ao seu lado, e fui arrebatado; morto, dilacerado, queimado e jogado num abismo que depois fui entender por ter sido a causa de ciúmes e discussões. Dei um beijo em sua testa antes de me sentar, e vi que pingou lágrimas minhas em seu rosto. “Desculpa,” eu disse por seguida a secá-las.

     “É muita emoção em me ver,” ele disse sorrindo. “Depois de tantos anos, não?” Notei a pessoa da porta saindo do quarto pelo tempo que a frase terminava.

     “É sim,” eu respondi, quando ouvi a porta do quarto se fechar.

     “E o que acha? Ainda estou em plena forma,” sua voz se arrastava, dando pequenos suspiros ao término. “Mas quando isso tudo acabar, vou te carregar nas costas como fazíamos,” ele sorriu novamente. 

     Lembranças de um tempo que jamais retornarão. Tive essa certeza há anos, com o motivo de nossa separação. 

     “Nós sabíamos que acabaria assim,” ele disse. 

     “Mas não precisava,” eu respondi. “Você sabe que não precisava.”

     “Eu nunca fui bom de me cuidar.”

     Ergui minha cabeça, afastando meus olhos de seu rosto. Árdua é a colheita das nossas frustrações. Foram suas mãos tremendo que me deram os sinais que eu precisava. A irritação por deixar uma louça se quebrar, e logo em seguida a confissão de sua ruína. Foi com uma amiga, cujo nome jamais foi revelado. E isso realmente importa? O nome do que aconteceu, o nome de com quem aconteceu, que conforto nome algum poderia trazer? Que calma nome algum poderia atenuar tantos sentimentos? Ele queria ser deixado só, afirmava necessidade. E a discussão boba, assim como todas as outras se tornam ao passar a angústia, o levou para a solidão de um quarto–nosso quarto–em um mês frio. Quando nos encontramos, dias depois, me falou o que aconteceu e o que fez com toda aquela raiva contida. Talvez a solidão que tanto queria era de mim, talvez não soubesse como eu reagiria e por conta disso resolveu me poupar. E talvez eu quisesse culpá-lo por tudo de ruim que fizera. Sendo assim, me afastei da maneira que ele precisava, mas não com a compreensão que queria. Então me levantei da cama.

     “Desculpe,” eu disse. “Mas não consigo ficar aqui,” e me justifiquei antes de sair do quarto. 

     “Você quer alguma coisa?” A pessoa da porta me perguntou.

     “Preciso ir embora, a porta está aberta?”

     Senti-me aliviado, confesso, ao sair da casa que há anos chamei de lar. Preferiria ter tido sua notícia de partida de qualquer outra maneira. Por uma carta do além, por um aviso em alguma das redes sociais que eu fazia questão de monitorar pelo menos uma vez por mês. Aquele não era o homem que um dia eu me apaixonei, mas o produto final de anos tórridos à vida. De querer sempre o máximo dos prazeres com o mínimo de resguardo. De egoísmo a todos ao seu redor. De dedicado amor a si, mas nunca aqueles que sempre desejaram o seu bem.

Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 26/01/2023
Reeditado em 13/03/2023
Código do texto: T7704525
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