Voos e reencontros em papel

(Leia ao som de caixa postal, canção de lagum e anavitoria)

Ela está atrasada para o trabalho, mais uma vez. Ficou a madrugada acordada, estudando, trabalhando em sua tese e acordou atordoada. Sua chefe já estava ficando cansada de seus atrasos e a olharia com desprezo por sua falta de pontualidade. A verdade é que ela se sentia tão exausta por ter que conciliar o trabalho com a universidade. Passava pelos dias dessa rotina tão atribulada como um verdadeiro zumbi. Contudo, não podia se dar ao luxo de perder esse emprego. Então, enquanto recolhia os papéis espalhados pela mesinha da sua sala, tentando não se queimar engolindo uma xícara de café bem forte e amargo, procurando a bolsa, seu telefone tocou, mas não teve como atender, pois não o achava. A ligação caiu e um som de uma nova mensagem na caixa postal a ajudou a encontrar o aparelho perdido no sofá. Número desconhecido. Sem tempo para pensar nisso, deixa o telefone na mesa, juntando o amontoado de papéis. Distraída com o que está fazendo, ela vira o rosto no instante em que seu laptop apitou, mostrando um ícone de novo e-mail na tela. Abriu despretensiosamente, imaginando ser alguma propaganda. Mas, ao olhar rapidamente o conteúdo, ela parou. Os papéis caíram de suas mãos, se espalhando novamente pela sala de estar. Se sentou e pegou o laptop para ler atentamente a mensagem. Há muito tempo não via o nome daquele remetente. Há muito tempo não sentia que tudo perdia a urgência diante daquele nome. Ela não conseguia acreditar no que lia: eram apenas duas linhas, mas sabia que eram o suficiente para mudar todo o seu dia. “Oi, sou eu. Eu liguei, mas você não atendeu. Por favor, olha a sua caixa postal, eu deixei uma mensagem. É importante”. Apressadamente, pegou o telefone e ouviu a mensagem, que dizia: “Por favor, Liz, eu preciso te ver. Estou no apartamento da Júlia. Deixei seu nome na portaria, então basta subir, a porta vai estar destrancada. Venha!” Passou alguns minutos assimilando as palavras. Se levanta abruptamente e deixa o laptop no sofá. Anda pela sala, sem saber o que fazer.

Até que se dá conta de que há apenas uma coisa a fazer. Pega a bolsa, o casaco e os óculos. Ao chegar na porta, vê que está esquecendo alguma coisa, se dá conta do que é, volta, vai até a escrivaninha, pega a maleta e sai. Desce as escadas quase correndo, tropeçando, enquanto liga para a chefa e dá uma desculpa para faltar ao trabalho, sem se importar com a resposta. Avista um táxi que estava parado no meio fio e entra, jogando as coisas no banco. Disse o endereço atropelando as palavras a um taxista que a olhava confuso, mas deu partida até o destino desejado. Atravessou a cidade em silêncio, perdida em pensamentos, e após duas horas salta em frente ao prédio de Júlia, cambaleante. Ficou parada, do lado de fora, sem saber o que fazer a seguir. Não sabe quanto tempo passou até que alguém esbarrou nela, a tirando do transe. Se encaminha até a portaria e diz seu nome ao porteiro, que muito simpático, disse que ela podia subir. No elevador se deu conta da insanidade do momento, mas já estava ali, iria adiante. Ao tocar a maçaneta da porta ela percebe que está trêmula e muito nervosa. O peso dos anos decidiu cair sobre seus ombros como uma bola de boliche, derrubando todos os pinos de sua vida tão metodicamente organizados. Mas não pensaria muito, precisava seguir. Para em frente a porta, solta a respiração que nem sabia que estava prendendo e tenta colocar um sorriso no rosto, para disfarçar os mistos de sentimentos que a engoliam. Toca a maçaneta, gira e destranca a porta, entrando no apartamento. Caminha um pouco e avista aqueles cachos negros de que se lembra tão bem. Ele estava olhando para a janela, contemplando o céu, com os olhos fechados.

Oi, Will! - ela sorri, com os lábios trêmulos.

Não, nem tenta. Você é péssima fingindo que não sucumbindo com tantos pensamentos nessa sua cabecinha tão frenética. Não precisa fingir descontração para mim, Liz. - ele se vira para ela e sorri. O sorriso que deixava tudo bem. Ela sorri também, de forma mais sincera, concordando.

Eu sei que é estranho te mandar um e-mail e uma mensagem após todos esses anos te pedindo para me ver. Eu nem sabia se você viria ou não. Eu não sabia se você tinha me perdoado ou não. Estou feliz que veio. Mas, por favor, não faça essa cara de choro. Eu não morri, ainda.

Ok, você está certo. Quando vi seu e-mail, ouvi a mensagem na caixa postal, nem pensei muito. Larguei tudo, atravessei a cidade e vim. Como sabia como me contatar?

Eu te conheço bem. Sabia que usava o mesmo e-mail e descobri seu número de telefone. Você sempre foi tão metódica. Gosto disso em você. - ele ria dela.

Para, não ria de mim. Onde está Júlia, aliás?

Viajou, porque a gente brigou. Sabe como minha irmã pode ser cabeça dura. - ela o olhou de esguelha, segurando a risada. - Ok, não fala nada. E também não quero falar disso. Vem, senta aqui perto de mim. - ele dá tapinhas no sofá, ao seu lado. Ela deixa a bolsa na poltrona e tira os sapatos. Se senta ao seu lado, beija a sua bochecha e encosta o rosto em seu ombro, aspirando seu cheiro, tão familiar.

Oi! - ela repete.

Oi, baby! - ele sorri, esfregando o rosto no cabelo dela. É uma cena tão familiar e íntima.

Como eu senti a sua falta. - ela fala baixinho.

Eu sei, meu bem. Eu também senti muito a sua ausência, com todo o meu corpo. Eu quase não me reconheço sem você do meu lado.

Então por quê demorou tanto para voltar para mim?

Não vamos falar sobre isso. Só vamos aproveitar a companhia um do outro, ok? - ele entrelaça as mãos dos dois. - Como anda a sua vida?

É sério que quer falar sobre a minha vida? Comparada a sua, ela é muito sem graça.

Claro que não, pois você é a pessoa mais interessante que conheço. - ela sorri. - Afinal, em breve você será a doutora Maria Elisa Campos. Que orgulho eu tenho de você!

Sim, eu estou surtando com o doutorado, a minha vida está uma bagunça. Então, não quero falar sobre isso também.

Tudo bem, então.

Ficaram em silêncio por algum tempo, até que ele se levanta, vai para o aparador e liga a vitrola. Pega o vinil e coloca para tocar. A melodia começa a tomar o ambiente e ela reconhece a canção. É a música deles. Ela o olha espantada e admirada por ainda se lembrar, após tantos anos. Ele costumava brincar que era a música que ele tinha feito para ela, toda vez que tocava no rádio. Ele afasta a mesa do centro da sala, lhe oferece a mão e a puxa para dançar. Eles se movem conforme a música, em sintonia, como se fizessem isso sempre. Dançam por muito tempo após a música acabar, perdido em lembranças, sentimentos, em si mesmos e no outro. É palpável a emoção. Se encaram e sorriem, com lágrimas nos olhos. A felicidade em sua mais singela forma.

Eu fiquei com tanto medo de ter perdido você, quando abri aquele e-mail. Levei um susto e quase me matou do coração.

Eu não iria para lugar nenhum sem te dizer adeus. Eu sou o seu melhor amigo, lembra? E me faria um favor se não usasse esse verbo perto de mim, pelo menos por enquanto.

Ela se calou. Encarou-o com os lábios trêmulos. Assente e engole o choro, a saudade e a vontade de nunca mais sair do lado dele. Mas ele estava diferente, seu corpo estava mais magro. Ele pega no queixo dela e a faz olhar bem em seus olhos.

Ei, calma. Está tudo bem. Eu vou ficar bem. Ainda estou aqui, com você.

Se você está tão calmo, por que me chamou?

Porque eu queria ver a minha pessoa favorita da vida toda. Eu amo você, pequena. Só queria passar o dia com quem eu amo. Pode ficar aqui comigo?

Ela queria gargalhar, tamanho o nervosismo. Todavia, a seriedade do momento lhe causava um pânico silencioso. Tinha vontade de sair correndo, mas sabia que estava onde deveria estar, com ele.

Posso, claro.

Tem um pijama seu e algumas roupas suas na segunda gaveta do guarda-roupa. Pode usar os meus chinelos.

Não tenho certeza se o pijama ainda cabe. - ela faz uma careta.

Para com isso, você continua linda. - ele acaricia a sua bochecha e beija sua testa. - Vai lá se trocar, eu vou preparar algo para a gente comer.

Ela aperta a mão dele e vai até o quarto. Olha ao redor, reconhecendo o cômodo. Passa a mão pela cama, arrumada com esmero - sabia que ele adorava arrumar a cama; um velho hábito seu. Abre o guarda-roupa e a gaveta. Sorri ao tocar nas velhas roupas, da garota que ela foi um dia. Parecia que havia sido em outra vida - e talvez tenha sido mesmo. Pega o pijama e se encaminha até o banheiro. Os chinelos dele estão perto da porta. Ela calça-os e entra no cômodo. Se olha no espelho, lamentando seu estado. As noites sem dormir, a rotina, lhe dão uma aparência cansada. Apoia as mãos na borda do lavabo e chora. Deixa tudo sair: a dor, a saudade, a mágoa, o amor. Sabia que ele não estava bem, como queria demonstrar. Pior do que vê-lo assim, era saber que ficou anos sem vê-lo por imaturidade, insegurança e querer coisas diferentes para a vida. Se esforça para enxugar as lágrimas, pois o importante é que seu amigo de infância estava aqui, agora, a aguardando a poucos metros.

Quando volta a sala, ouve uma melodia saindo da vitrola e ele cantarolando baixinho na cozinha. Vai até lá e senta no balcão, observando-o cozinhar. Há muito tempo não se sentia tão em paz, feliz. Ele vira o rosto e a vê. Eles sorriem, com os olhos tristes por tantos anos perdidos.

Seja lá o que está cozinhando, está muito bom o cheiro - ela diz, se servindo de uma taça de vinho que estava sob o balcão.

O seu prato favorito, com um toque meu, claro. Tenho certeza que vai adorar. - ele riu travesso. Se aproxima do balcão e pega uma taça para si.

Não acredito que lembra disso.

Eu não esqueci nada que tenha a ver com você. - ele acaricia a sua bochecha e volta a cantarolar. Ela não consegue parar de rir.

A comida fica pronta e eles sentam na mesa. Enquanto comem, conversam amenidades, como os livros que leram, as canções que gostam, os lugares e pessoas que conheceram. Havia uma pressa e uma lentidão em se reconhecerem novamente.

Quando terminaram a refeição, levaram o restante do vinho para a sala. Ele coloca outro disco na vitrola e se acomodam no sofá. Ele senta e ela se deita no seu colo. Ficam em silêncio, até que ela confessa algo que passou o dia pensando.

Me perdoa. Por favor, me perdoa. Eu estraguei tudo. Eu perdi muito tempo porque estava magoada e sou caprichosa, e…

Para, para agora. - ele a interrompeu - Não foi por isso que eu quis te ver. Não há espaço aqui para desculpas. Nem minhas e nem suas. A vida aconteceu e nos separou. Faz parte. Cada um de nós teve que lidar com as reviravoltas e fizemos o que podíamos. O importante é que estamos juntos agora. O resto pode ficar no passado, ok? - ele beija seus cabelos.

Ela sorriu e concordou, com lágrimas nos olhos.

Só vamos aproveitar esse momento, tudo bem?

Sim, tudo bem.

Olha, você sabe que eu não acredito em destino, universo, essas coisas, como você. Mas tenho certeza de uma coisa: a vida nos quer juntos.

É o que acha?

Eu não acho, eu sei. Nós damos voltas e mais voltas, mas paramos no mesmo ponto. Na intersecção em que a nossa vida se entrelaça. - ele sorri, se sentindo sábio. - Eu não sei qual é essa coisa que me une a você, mas sou grato. E por isso, eu quero te dar isso, algo para sempre lembrar de mim.

Ele tira uma caixinha do bolso e entrega a ela. Surpresa, ela encara o pequeno objeto, sem saber o que fazer. Diante do impasse dela, ele abre a caixinha, revelando um pequeno colar de prata com um pingente de andorinha carregando no bico dois pequenos sóis. Ela tira da caixinha e observa o objeto. Não acredita que ele ainda se lembra como a chamava quando a conheceu, há tantos anos. Na parte de trás, vê que ele colocou as iniciais deles, ligado por um coração. Ela sorri, emocionada. Ele pede para colocar em seu pescoço.

Ficou perfeito, assim como você é para mim. Eu estou muito feliz que está aqui. Que bom que ouviu a mensagem na sua caixa postal. Você é a pessoa que mais amo nessa vida. É a minha pequena andorinha, meu símbolo de esperança, de retorno ao lar. É assim que me sinto, que posso voar para longe, mas quando tocar o chão, é como se estivesse voltando para casa toda vez que olho nos seus olhos. Por isso, eu queria ter alguns momentos com você, antes de…

Antes de quê? - ela perguntou, quase gritando.

Antes de embarcar em uma nova aventura, oras. O que mais seria? E olha, eu tatuei uma andorinha no meu pulso, há alguns anos, para sempre me lembrar de você. Vem cá. - ele beija a testa dela, e a abraça, permitindo que ela chore. Em seus braços, ela se permite sentir, não quer fingir nada. O único no mundo inteiro que a aceitava como ela era.

Ficaram assim, abraçados, ouvindo a respiração do outro, observando o pôr-do-sol. Ao cair a noite, jantaram, sorriram, conversaram mais, choraram juntos. Foram se deitar cedo. Os dois dormiram, abraçados. Ele fazia carinho nos cabelos dela e ela aspirava o seu cheiro, memorizando cada pedacinho dele. Não queria deixá-lo, mas sabia que ele era um pardalzinho, que entrava pela sua janela, em seus dias sombrios, trazendo boa sorte e alegria; mas que adorava voar para longe do ninho, deixando saudades, rumando a caça a coisas perdidas.

Ao amanhecer, ela acorda e vê que ele ainda dorme. Vai até a sala e encontra suas coisas na poltrona. Pega seu estojo de pintura e as telas e vai até o quarto. Uma luz entrava pela fresta da janela direto até a cama. Começa a fazer um esboço, mistura as tintas e se põe a pintar. Fazia muito tempo que não pintava, mas precisava extravasar tudo o que viveu ontem. Queria eternizá-lo para que nunca mais a deixasse. No papel, era possível. Podia transformá-lo em um pardalzinho de tinta e papel. Na realidade, não tinha certeza se poderia. Ele acorda e a vê desenhando. Ele se levanta e pede para ver o desenho.

Eu adorei. Sempre te achei muito talentosa. Você me transformou em uma obra de arte. Estou muito bonito!

Ah, para. Eu estou um pouco enferrujada, mas acho que ficou bom.

Ficou maravilhoso! Sério. E é bom saber que ainda me vê como um pardal. - apontando o pequeno pardalzinho desenhado no canto da tela. Beija sua testa, devolve o desenho e se levanta para preparar um café da manhã. Ela guarda tudo e veste sua roupa.

Terminam a refeição e sabem que chegou o momento da despedida. Se despedem, com tristeza e esperança de novos encontros. E prometeram que, dali em diante, nada os separaria novamente. Ela beijou suavemente seus lábios e o abraçou demoradamente. Ele segurou a mão dela e ficaram alguns segundos se olhando, sem dizer nada, pois estava tudo no olhar. Cada um seguiu seu rumo, marcados por esse reencontro.

Uma pena que eles não sabiam que jamais se encontrariam novamente, porque estava escrito nas linhas tortuosas da vida.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 14/02/2023
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