Eu sempre quis dançar na chuva com você.

Eu sempre quis dançar na chuva com você.

Eu tinha que voltar, justamente, agora em Março.

Faz exatamente dez anos que eu fui embora de minha cidade. E desde que eu voltei não encontrei ninguém que se lembre de mim. Na verdade, a lembrança deles é daquele garoto magrinho e jeitinho duvidoso. Nunca me esqueci dos comentários de quando eu passava pelas calçadas e o homens ficavam me olhando e comentando: “olha o filho do Antônio, todo mole, parece uma menina”, outros já profetizavam meu futuro: “esse aí vai ganhar a vida queimando a rosca”, e eu apenas continuava meu caminho, isso até me magoava, mas eu tinha um amigo, o Maxuel, ele nunca me disse nada sobre minha sexualidade.

Maxuel, era realmente meu amigo de fato, mesmo as pessoas falando de mim, ele não se importava. Parecia que nem se importava. Com o tempo passando e a gente ficando adolescente, nossa amizade parecia não sofrer com as mudanças hormonais, ele ficava a cada dia mais másculo, quase não tinha espinhas, sua voz engrossou, e seu sorriso ainda mais bonito, sendo meu oposto.

Cresci sem ganhar muita massa muscular, mas meus glúteos, e ancas, pareciam de uma moça, e eu me sentia assim. E mesmo cortando o cabelo curtinho, assim como todos os garotos do bairro usavam, ainda assim, todos falavam, lá vai mocinha de Antônio. Meu rosto ficou cheio de espinhas, com manchas feias, e minha voz desafinada, ora engrossava e ora afinava, evitava até conversar em grupo, precisei treinar em casa, sozinha quarto, encontrar um tom em que eu me sentia mais confortável.

No final do fundamental, meus colegas de intervalo e de conversinhas, eram apenas mulheres, tirando o Maxuel, é claro. E na hora de voltar para casa, ele é quem fazia companhia para mim. “eu te protejo” ele dizia, pondo o braço sobre meu ombro. Eu me sentia feliz, e ao mesmo tempo triste, pois naquela época eu já mostrava sentimentos por ele, mas a forma como ele interagia se mostrava como um amigo ou um irmão, e isso me entristecia.

Foi uma fase muito boa. Sempre nos finais de semana eu ia dormir na casa dele, e a gente assistia filmes até de madrugada. Eu ficava juntinho dele, sentindo seu calor, seu cheiro adocicado. Ríamos por beisteira e a mãe dele sempre ia lá mandar a gente se comportar. Ele me abraçava, e às vezes ficava por cima de mim, só por brincadeira. Nunca senti nenhuma malícia por parte dele. Já não posso dizer o mesmo de mim. Preferia ficar por baixo e emborcado, já para ele não perceber meu estado de excitação. Que vergonha eu sentia. Que felicidade eu sentia. Que tristeza eu sentia. Todos os sentimentos, e no fim, ele nunca soube dos meus sentimentos naquela época.

No ensino médio, tudo ia bem, até a metade da segunda série, foi quando ele disse que ia namorar uma garota de outra turma, eu fiquei triste, fiquei emburrada por isso, e dizia para mim: “ele não gosta de você, ele é homem e você uma aberração.” Ele continuou o namoro e nossos encontros se tornaram raros, e sua companhia na hora de voltar para casa, mais raro ainda. Eu sabia que a namorada dele não gostava da minha companhia quando eles estavam juntos, e talvez ela não queria que ele andasse comigo.

Teve um dia que eu os encontrei numa praça, não foi planejado, eu estava com duas colegas de sala, e eles passaram por mim, eu falei com ele, e quando ele ia se virando para falar comigo, escutei sua namorada dizer: “Não quero que você fale com essas ai.” Isso me magoou muito, mas foi pelo fato dele apenas continuar andando sem nem ao menos acenar. Cheguei em casa, me tranquei e chorei. Ele nunca soube dos meus sentimentos daquela tarde.

Pouco tempo depois ele terminou o namoro, mas eu já não estava mais na cidade, não fiquei sabendo dele, e nem procurei saber mais dele, queria esquecê-lo. Apenas alguém, uma antiga vizinha, comentou comigo que ele tinha feito faculdade de odontologia, e que continuava morando na cidade. A interrompi, antes que chegasse ao seu estado civil. Meu coração estava curado, e livre para sempre de qualquer sentimento afetivo e erótico.

Na capital, morando com uma tia minha, eu fui me libertando das amarras da sociedade, fui me conhecendo melhor e vivendo com outras garotas que como eu tínhamos um membro entre as pernas, e aprendemos a viver com ele, infelizmente não é fácil ser uma garota num corpo masculino, temos que tomar hormônios, se depilar sempre, usar muita maquiagem, e principalmente aprender a ignorar o preconceito.

Conheci uma garota, assim como eu, ela me contou que não queria fazer a cirurgia de redesignação sexual, pois tinha muito medo, e no final eu também optei em não fazer, além do medo, aquela parte do meu corpo não mais me incomodava, eu já tinha superado isso, o importante é que eu era feliz.

Foi nessa época que eu conheci um rapaz, ele sempre persistindo em sair comigo, queria me conhecer, e tudo mais, se mostrou legal e eu sei das suas investidas, ele dizia que me achava muito bonita, e que eu tinha uma personalidade incrível. Certo, isso conquista qualquer mulher. Eu nunca tinha namorado, já tinha ficado sim, com outros, mas foi sexo, e eu não queria mais ficar assim, e esse foi meu único erro, era para ter feito como minhas amigas, namorado com vários, talvés teria mais experiência de vida… Não. Isso não seria a minha personalidade, eu não sou assim. E por isso, depois de um mês saindo com ele, nós fizemos amor, pelo menos foi isso que eu pensei que estávamos fazendo. Só lembro que chorei, de emoção, dor, e de arrependimento. Ele nunca mais me procurou depois daquela noite. Disse que foi mágico, e que iria me procurar no outro dia para a gente repetir a dose. E assim, eu ainda o esperei por uma semana, depois eu acreditei que eu era uma tola por achar que ele iria realmente namorar comigo.

O tempo passou e eu apenas parei de olhar para os homens com interesse afetivos. Focava apenas no trabalho, e na minha vida pessoal.

Agora estou de volta a minha cidade, retornei por causa do aniversário de quinze anos de minha irmãzinha, dez anos mais nova, tão feminina quanto eu sou, parecemos gêmeas, eu precisava está presente, a gente quase não conviveu juntas durante esses dez anos. E eu tinha que voltar logo nessa época do ano, justo no mês de Março, período mais chuvoso na minha região, as lembranças em ver essas ruas banhadas por chuvas quase diárias, são todas ao lado do Maxuel.

Não há nada mais interiorano do que uma tarde de chuva e a mocidade correndo pelas calçadas, apenas de short, procurando as biqueiras das casas para se banhar. Era um empurra empurra, cada um querendo ficar embaixo da dos canos jorrando água. Era tão gostoso sentir aquela água gélida, e a gente se abraçando e se empurrando. Alguns momentos eu me imaginava dançando com ele, mas eu não era uma garota, eu era apenas o amigo, então isso ficava apenas no desejo. No final, terminava com a gente sentado em algum lugar conversando sobre coisas triviais, para mim tudo aquilo era valioso, ele confiava em mim, e por isso falava coisas que não sentia liberdade para falar com os outros. Aqueles momentos pareciam simples, mas nunca esqueci daquelas tardes de chuva de Março.

O dia da festa está próximo, já visitei alguns lugares, que são poucos na minha cidade de vinte mil habitantes, que fizeram parte de minha infância e mocidade, e como falei lá no início, ninguém me reconheceu, talvez, o fato de está usando um vestido de saia solta acima do joelho, com um busto farto, proveniente dos hormônios que tomei, cabelo picotado até o ombro, batom, acho que ninguém iria se lembrar daquele Marcelo, magrinho e afeminado. Posso dizer sem parecer arrogante, que me tornei uma mulher bonita e tão feminina quanto qualquer outra. Preferi mudar apenas a última letra do meu nome, e mesmo assim, me apresentando como Marcela, ninguém se mostrou interessado em saber se eu era aquele franguinho do passado.

Agora estou caminhando retornando para casa, onde vou me juntar aos outros membros da família, que já devem se perguntar onde está a Marcela Bonitona.

O clima está ficando frio, o céu escureceu de repente.É nessas horas, que a gente se dá conta que saiu de casa sem nenhum guarda-chuva. Talvez se eu estivesse na capital fosse um problema, de fato, mas agora ali sentindo aquele vento frio chegando com o cheirinho de chuva, fiquei apenas parada olhando o céu. A chuva logo iria chegar. Algumas pessoas caminham num ritmo mais acelerado, outros correndo colocando algumas mercadorias expostas na calçada para dentro do comércio. Vejo algumas senhoras segurando a saia do vestido que estão indomáveis com o vento que fica mais forte. Uma nuvem de poeira com folhas e pedaços de papel sobe pelo espaço, uma confusão toma conta do centro. E eu parada no meio da pracinha, assistindo tudo, como se estivesse numa cena de filme.

Logo a chuva vai chegando aos poucos, seus pingos começam a cair isolados e inconstantes, até que as nuvens resolveram despejar tudo. Está gelado, como deve ser. A gurizada começa a correr e a pular nas pequenas poças que já se formam. Algumas pessoas correndo e procurando abrigo, tentando se cobrir com as mãos. E por algum motivo eu não consigo sair daquele lugar. Por que meus olhos estão marejando, seria as lembranças? Sim. Aquela chuva de Março, e justo naquele lugar, onde quando mais novo eu brincava com o meu primeiro amor, eu falei primeiro amor? Foi inevitável admitir que o Maxuel fora meu primeiro amor, e talvez o único. Um amor unilateral. A chuva se misturava às minhas lágrimas.

Então eu escuto alguém falando em minha direção:

— Você sempre faz isso? - Ele está parado enquanto segura um guarda chuva.

Era o Maxuel na minha frente, e eu precisava responder alguma coisa.

— Como assim?

— Corre para a rua quando está chovendo - Ele parecia sério, mas demonstrava um sorriso oculto, como o de Monalisa.

— Sim. Me acalma um pouco, sabe.

Ele se aproxima, parece me corrigir dos pés à cabeça.

— Eu não te conheço de algum lugar? Espere. não me responda, eu sempre FUI bom em fisionomias…

— Eu não moro mais aqui…

— Então já morou aqui…

Ele continua me encarando, e eu ainda com as lágrimas caindo junto com as gotas da chuva, não consigo me segurar. Ele está na minha frente, justo ele nesse momento.

E chorando eu falo o nome dele.

— Quanto tempo Maxuel - entre soluços, espero ele dizer alguma coisa.

A chuva continua forte, já não tem mais ninguém nas ruas, salvo algumas crianças correndo e gritando, e na minha frente ele parece espantando. Ele abre a boca para falar, mas não fala, é como se ele tivesse que refletir no que dizer.

Eu sabia que ele não iria se lembrar de mim. Eu sabia que ele não se lembraria de um velho amigo de infância. E quando penso em sair correndo.

— Marcelo?! É você mesmo, Marcelo?

Eu só chorei com uma mistura de felicidade, dando risada e soluçando.

— Sim. Mas, agora me chamo Marcela.

Ele parecia hipnotizado por um momento, e então ele caminhou em minha direção diminuindo a distância. Era perceptível sua felicidade.

— Quando você voltou?

— Faz uns dois dias.

— Podemos dividir o guarda-chuvas. Tem um bistrô aqui pertinho. Lá serve um chocolate quentinho.

— Seria ótimo.

Caminhamos lado a lado. E isso me deixava muito feliz. O Bistrô era simpático e numa área interna mantinha um jardim de inverno, e a chuva que alí caia deixava seus respingos entrar no ambiente em forma de pequenas gotículas quase como um vapor. o clima estava aconchegante e o chocolate quente servido estava delicioso, só não mais gostoso do que conversar com ele, e vê-lo sorrindo sem parar.

— E então, você veio com seu namorado ou esposo?

— Isso foi bem direto. Você podia ter perguntado se eu ainda estava solteira.

— Faz tanto tempo que eu espero por esse momento que nem sei mais o que dizer.

— Eu continuo sem ninguém. Ninguém mais conseguiu preencher o vazio que …

Nesse momento eu não consegui continuar e baixei os meus olhos em direção a xícara na mesa.

— Eu também. Depois que você foi embora, e não deixou nenhuma informação sobre seu destino, eu entendi que você gostava de mim. Naquela época eu não te via assim, até eu ficar sem você. Marcela, eu ainda tentei te procurar na capital. Então, sua mãe me disse que você não era mais o mesmo. Com aquelas palavras, eu tinha entendido que você tinha me esquecido e se casado, ou algo assim. E assim eu apenas fiquei te esperando retornar e te ver pessoalmente e ver se era verdade.

— Qual verdade?

— De que você tinha mudado, como sua mãe disse.

— E, o que você acha?

— Eu acho que você deveria estar com muita raiva de mim para fazê-la contar essa mentira. Você mudou um pouco, é verdade… Talvez o cabelo, a roupa… Mas ainda é você, do jeitinho que eu me lembro. Delicada, romântica, e alegre. Afinal, quem mais ficaria parada na chuva daquela forma.

— Só eu mesma.

— Aposto como você estava relembrando nossa infância.

— Sim. Estava mesmo.

— Todos os anos, neste mês chuvoso, eu fico me lembrando de você, digo, de nós.

— Você disse: nós?

— Sim. Marcelo, ou Marcela, não importa como você se chama hoje, eu apenas não te esqueci. Você me entende? E ainda acho que estou sonhando te vendo aqui na minha frente.

— Eu sempre gostei de você, e nunca tive raiva de você. Na verdade, eu te amava, esse é o verdadeiro sentimento, e eu continuo te amando, Maxuel.

— Droga… Perdemos tanto tempo, mas ainda somos jovens para recomeçar. Eu também te amo, Marcela.

— E mesmo eu sendo assim, como você me ver, ainda tenho o físico de homem, você não se importa.

— Eu disse que te amo, não disse? Isso não seria problema naquela época, e nem vejo como um agora, você me basta, só se o meu membro for um problema… - ele sorriu mostrando seu humor de sempre.

— De maneira alguma, até gosto.

Minhas lágrimas sumiram em meio a risadas. Estávamos rindo com tudo aquilo, com aquele contratempo, e aquele presente do destino em nos juntar naquela tarde chuvosa. Era como os velhos tempos, somente ele e eu rindo das trivialidades.

Então lembrei de algo. Fiquei em pé e estendi a mão para ele.

— Vamos lá!

— Lá, onde?

— Dançar. Eu sempre quis dançar na chuva com alguém…

— Com alguém?

— Eu sempre quis dançar na chuva com você.

— Então vamos.

Enquanto corríamos em direção a praça, de mãos dadas, eu o escutei gritando.

— Quer namorar comigo?

E sorrindo para ele. Eu respondi.

— E já não estamos?

Ele me segurou, nos abraçamos e então, assim como naqueles filmes românticos, onde tudo fica em câmera lenta, nós nos beijamos.

E assim, posso dizer que nunca mais derramei lágrimas no mês de Março.