FEITO UM DE SEUS LIVROS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como eu poderia descrever aqueles olhos? De tantas palavras que absorveram, eu, em minha grande insignificância, jamais seria capaz de tal ato. Na verdade, apenas a ideia de admirá-los era suficiente para a minha misericórdia.

     Trocamos livros, por decorrência de nossas vidas, até nosso primeiro encontro. Algo que, confesso, acho mais íntimo do que ver, ou ouvir, as playlists da outra pessoa–ou o equivalente moderno da mixtape. E a primeira coisa que ele fez na primeira vez que eu fui à sua casa, foi me mostrar, me guiando com suas mãos ásperas, sua estante de livros, como se todo o seu ser; seu amor e seu ódio, sua inocência e sua vulgaridade, sua alegria e sua angústia; estivesse escondido entre suas frases favoritas, entre capítulos inesquecíveis, e guardado apenas para quem conseguisse cativá-lo. A estante era de uma madeira que me parecia ser carvalho; escura e brilhante, e era grande em sua largura. Não consigo pensar em uma maneira adequada de comparação, de medição, mas era grande. Tinha doze prateleiras, mas também digo que parecia que fossem três estantes uma colada na outra, com um pouco mais de um e oitenta de altura, e tinha noção disso pois esse é o meu tamanho. Ele passava a mão pelos livros e puxava um e depois puxava outro e mais outro, me mostrando, por fim, aqueles que fazia questão que eu soubesse quais que amava, comentando e lendo para meus ouvidos as passagens sublinhadas, aquelas que encontrou beleza; por meio da filosofia, da gramática, ou das lágrimas que estragaram as folhas ou por felicidade ou por tristeza. Mas também me mostrou os livros que odiou, que achou ruim, horrível; por serem mal escritos, de péssima qualidade literária ou porque não foi de encontro com seu gosto pessoal. Houveram outros que julguei serem insignificantes à minha sabedoria; uma leitura por tédio, para entreter, sem aprendizado profundo, sem algoz. Tão importante quanto o gosto, é o desgosto que carregamos sobre o que quer que achemos importante.

     “Caramba,” eu disse assustado. “Você já leu mesmo tudo isso?”

     “Sim,” ele sorriu e baixou a cabeça. “Por quê?” Mas perguntou-me olhando em meus olhos.

     “Eu acho que não li nem metade,” eu respondi acanhado, fugindo de seus olhos para todo aquele esplendor que via. 

     “Vem cá.” 

     Eu o segui para o sofá que ficava de frente para a estante, e logo notei que não havia televisão. Para ele, além do celular, o entretenimento estava nos mundos que visitava através dos verbos e dos parágrafos, e as pessoas que conhecia e que dialogavam internamente, em uma leitura silenciosa ou declamada para ele mesmo; o que me confessou outro dia, quando o sono batia, mas a estória era tão boa, tinha o costume de ler andando pela casa, falando em voz alta para se manter acordado, para as baratas escondidas, para os fantasmas interessados.

     “Como você gosta de ser beijado?”

     “Como assim?” eu respondi perguntando um pouco confuso.

     “É uma pergunta simples, ora.”

     “Mas tem outra forma de beijar que não seja pela boca?”

     “Posso te mostrar, se me deixar.”

     Senti meu rosto esquentar, e fiquei ainda mais envergonhado ao perceber que ele poderia estar me vendo corado. Baixei minha cabeça sorrindo e ele se aproximou de meu rosto, até que colocou uma de suas mãos em volta de meu pescoço e a subiu devagar para meu queixo e me fez encarar, novamente, seus olhos. Me despindo de minha carne à medida que o tempo passava, deixando amostra todo o meu sentimento e meus desejos, como se eu fosse um dos livros de sua estante, para enfim me beijar ternamente.

Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 13/06/2023
Reeditado em 20/07/2023
Código do texto: T7812634
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.