Rua Espanha número 206, trinta anos depois

Ao passar em frente da casa, Alice viu Fernando sentado na cadeira da varanda. Já tinha dois dias do sepultamento da mãe dele, de forma que não deixou de ser uma surpresa ainda vê-lo ali. Desde que havia partido da cidade, quando ainda eram bastante jovens, ele jamais prolongara suas visitas por mais que um dia. O cirurgião requisitado que se tornara o fizera um homem de muitos compromissos.

Ela até titubeou, se deveria parar ou não. Três lotes adiante na rua estava a casa dos seus pais, onde a mãe a esperava para finalizarem a encomenda para o aniversário da filha da diretora do colégio estadual. Mas havia trocado somente duas ou três palavras com o antigo amigo durante o velório, além daquele caloroso abraço que imediatamente a fez lembrar dos tempos de meninice em que viviam grudados, tanto na escola quando nas brincadeiras de rua que iam até o sol desaparecer no horizonte; de forma que se sentiu impelida a voltar-se e parar diante do portão. Ele não percebeu sua presença até ouvir sua voz pedindo permissão para entrar, o que o fez dar um salto na cadeira.

_Claro, por favor, entre!

Empurrou com cuidado o portão e o fechou atrás de si. Subiu os três degraus que davam na varanda – não sem antes perceber as belas rosas do pequeno jardim à sua esquerda – e o abraçou assim que ficaram frente a frente. Deu-lhe um beijo suave na face, sentindo nos lábios a rudeza da barba por fazer em seu rosto.

_Como você está?

Ele deu de ombros, uma expressão de nítida desolação.

_Já era algo esperado, mas a gente nunca está realmente preparado quando acontece de fato, não é?

Ele tomou a sacola que ela trazia, colocou sobre uma mesinha que havia entre as duas cadeiras, e pediu para que se sentasse em uma, enquanto repousou o corpo na outra. Ela quase falou o que normalmente se diz em uma ocasião como aquela, que era uma lástima mas que enfim a dona Laura tivera o descanso merecido. Preferiu porém o silêncio, baixando os olhos e fazendo um gesto de concordância com a cabeça.

_Não esperava te ver ainda por aqui.

_Pois é, tive que resolver algumas pendências. Ainda vou precisar voltar em breve para terminar de resolver tudo, inclusive para vender essa casa. Estou só esperando a dona Josefa pegar as coisas dela, depois de levá-la pra casa pretendo pegar a estrada de volta...

_Nossa, tantos anos que a dona Josefa cuidou da sua mãe, deve estar sendo difícil pra ela também...

_Sim. Elas se tornaram praticamente irmãs com toda essa convivência. Eu só tenho a agradecer tudo que a dona Josefa fez por minha mãe. Até mesmo por essas rosas – e indicou com um gesto o pequeno jardim à sua frente.

_Dona Josefa é mesmo um anjo – ela arrematou.

_Alguém comentou que você e sua mãe estão fazendo sucesso na cozinha – disse, trocando abruptamente de assunto, com o que ela respondeu com um sorriso:

_Temos recebido algumas encomendas – e o sorriso logo se apagou com o que completou – depois que o Rubinho faleceu, eu tive que me virar, né...

Ele apertou os lábios, demonstrando pesar.

_Desculpe por não poder estar aqui para dar uma força. Não faz tanto tempo, faz?

_Três anos...

_Nossa, como o tempo passa rápido...

Ela mexeu nervosamente com as mãos, olhando para o chão.

_O Rubinho sempre trabalhou como autônomo. Deixou a gente desprevenida. No começo foi bem difícil, mas devagar as coisas foram entrando nos eixos.

Ele se mexeu na cadeira.

_Eu poderia ter ajudado. Aliás, se estiver precisando de alguma coisa, pode contar comigo.

Com um meio sorriso nos lábios, ela balançou a cabeça.

_Não, não precisa. Está tudo bem.

Então olhou em volta por toda a varanda, o número 206 pregado na parede entre a janela e a porta da sala, o jardim florido logo adiante. Inclinou ligeiramente o corpo para frente e apoiou os cotovelos nas pernas.

_A gente costumava conversar bastante sentados nessa varanda, você se lembra?

Agora foi a vez dele sorrir.

_Muitas ideias.

Sentiu então uma nostalgia profunda.

_Isso sim faz bastante tempo...

_Faz – ele concordou. E acrescentou: Parece que foi em outra vida.

Mentalmente, Alice fez as contas: trinta anos passados. Meu Deus, como a vida a tinha atropelado e ela nem se deu conta!

_Foi numa dessas conversas que você me perguntou como eu imaginava que estaríamos quando fizéssemos sessenta anos. Depois eu fiquei com aquilo na cabeça, e então percebi que eu precisava fazer alguma coisa da vida. E aqui, nessa cidade, eu não tinha perspectiva nenhuma. Foi naquela ocasião que decidi ir pra São Paulo morar com meu irmão.

Alice o olhou fixamente. Ao contrário dele, ela jamais tivera qualquer perspectiva de fazer algo diferente. De fato, a sua vida foi simplesmente uma sucessão de acontecimentos que ela não teve absolutamente nenhum controle ou poder de decisão sobre coisa alguma. O namoro com o Rubinho, a gravidez não planejada, o casamento às pressas, as noites de solidão com as crianças enquanto o marido festava com os amigos – o casamento não foi motivo para fazê-lo deixar de ser o festeiro que sempre havia sido – a doença que apareceu do nada, enfim, a viuvez precoce. Tudo agora parecia ter sido como um sopro de vento, que passa e vai, se perdendo no ar.

_Que bom que as coisas deram certo pra você – ela disse enfim com a voz embargada, quase num sussurro. Mas saiba que eu fiquei muito triste por você ter ido embora daqui.

Ele a olhou com ternura, e em sua mente surgiram lembranças de um passado longínquo, mas marcante. Iria dizer que foi um tempo bom, que trazia consigo boas recordações dos anos em que conviveram ali, na rua Espanha. Mas naquele instante a porta da sala se abriu, e dela surgiu a figura corpulenta da dona Josefa.

_Já podemos ir, seu Fernando. Ah, Alice! Não percebi que você estava aqui.

Elas se abraçaram carinhosa e demoradamente, e quando se afastaram havia uma lágrima nos olhos da simpática senhora. Então ele se voltou para a porta e pegou as duas bolsas cheias de roupas e pertences que ela trazia de dentro da casa.

_Está tudo aí, seu Fernando. E a casa já está toda fechada. Podemos ir.

Ele retirou a chave posta na fechadura do lado de dentro, puxou a porta e girou o trinco.

_Venha sempre nos fazer uma visita, dona Josefa. Pode ter certeza que eu e a mamãe estaremos lá na sua casa sempre que der.

_Venho sim, Alice. Mande um beijo pra dona Suzana, diga a ela que eu estarei sempre esperando vocês lá para um cafezinho da tarde.

Sorriram, mas na verdade sentindo uma grande tristeza. Era de fato o fim de anos de uma convivência muito próxima. Sentiriam saudades daqueles tempos.

_Então podemos ir – disse ele enfim.

Alice tomou sua sacola posta sobre a mesinha.

_Deixe eu ir pra não atrapalhar vocês.

Deu outro abraço na velha amiga.

_Vá com Deus, dona Josefa.

_Amém Alice. Fique com Deus também, minha querida.

As duas sorriram quase como num lamento. Então voltou-se para o antigo amigo. Com seu braço direito, enlaçou-o pelo pescoço, e lhe deu outro beijo na face.

_Se cuide, Fer. Se puder, venha me fazer uma visita de vez em quando.

Ela sabia que aquele pedido não passava de uma ilusão. Tinha certeza de que provavelmente seria a última vez que o veria. A única coisa que o fazia voltar àquela cidade, àquela casa, era sua mãe. Agora que ela havia partido, seguramente nada mais o traria ali, muito menos os meros laços de uma amizade que se perdera no passado.

_Venho sim, pode deixar.

Sorriram. Passou naquele instante em sua mente que ela poderia se jogar em seus braços, num ímpeto de desespero, e soluçando pedir para levá-la com ele, que mesmo depois daqueles trinta anos ela ainda o tinha como o seu melhor amigo. Mas simplesmente se virou na direção da rua. Só as rosas do pequeno jardim puderam ver as lágrimas que rolaram em seu rosto quando atravessou o portão.

Logo depois entrou pela porta da cozinha da casa da mãe, e deparou-se com ela mexendo em uma panela no fogão aceso.

_Nossa, até que enfim. Que demora com esse leite!

Alice depositou a sacola na mesa, um aperto nos lábios em sua face lívida antes de dizer:

_Desculpe, mãe. Acabei me distraindo no caminho.

_Distraindo com o quê?

Ela olhou desoladamente para a janela, de onde pode contemplar toda a placidez da rua. Respirou fundo, um desalento tomando-lhe a alma, e com um fio de voz respondeu:

_Com as rosas de um pequeno jardim perto daqui...