Duas Vidas

 

Era uma vez, ao pé dos Andes, uma jovem tecelã chamada Acilla. Ela não era bela, nem sábia, tampouco possuía riquezas. Mas podia sonhar. Da varanda do seu humilde casebre, Acila avistava a estrada real. E o seu maior sonho era ver o imperador de perto. Apenas ver, ela não ousava desejar mais que isso. Uma vez por ano, a corte  do sapa inca percorria a estrada rumo a Cuzco. Era o dia mais feliz da vida de Acila, vê-lo ainda que ao longe. Nunca contemplara sua face (o que a poucos era permitido), mas imaginava ser mais luminosa que o próprio Inti.

 

Um dia, o imperador não passou pela estrada. Forasteiros de uma terra longínqua haviam-no assassinado. Acilla enlouqueceu de tristeza e passou a vagar pelas montanhas olhando direto para Inti, na esperança de vislumbrar o sapa. Essa compulsão a foi cegando aos poucos e um dia, sem quase nada ver, ela despencou de um penhasco e morreu. Mama Quilla, enternecida com a tristeza daquele afeto, prometeu ao espírito de Acilla que ela voltaria para ver de perto o rosto do seu irmão cósmico. E assim se fez.

 

 

Julho de 2023

 

"Você é alta, né?", foi a primeira coisa que ele disse quando ela entrou no consultório. "Eu sou", ela respondeu, um pouco aborrecida pela demora na sala de espera. Não reparou muito nele. Baixinho, um típico boyzinho Unifor, daqueles que se balança uma árvore na universidade de elite e eles caem aos montes. Definitivamente não a atraíra. No entanto houve algo, uma conexão, ela que não confiava em homens e evitava-os surpreendeu-se de repente em alegre conversa com o jovem oftalmologista. Falaram sobre as fotos na parede, ele recém-formado, o irmão "doidinho" que queria ser psiquiatra, a irmã que ainda não sabia o que seria. Todos médicos como o pai. E um sobrenome diferente, latino. Nada de mais.

- Você vai fazer pálpebra?

- Não, algum problema com elas?

- Não, nenhum...

 

Ele pareceu se retrair diante daquela mulher que impunha silêncio com o olhar e não estava interessada nas opiniões dele. Aconselhou-a que voltasse para fazer o procedimento na retina que estava deslocada. Ela não ficou preocupada nem nada. Retirou-se, precisava voltar com a colega para o trabalho. 

Ao sair do consultório, ela leu o nome do procedimento: fotocoagulação a laser. "Que bom", pensou, "nada invasivo". Tinha horror a cirurgias, agulhas e médicos em geral. Comentou amenidades com a colega e voltaram para a agência de publicidade onde trabalhavam. Sim, lembrou-se, ele havia recomendado fazer a cirurgia refrativa, um método supermoderno de corrigir a miopia. Isso a interessou um pouco. Nada a interessava muito. Era reservada ao mesmo tempo que alegre, indiferente embora meiga. Enquanto as colegas tinham momentos passageiros com os homens que encontravam nas baladas, ela vivia um amor platônico pelo chefe que preenchia seu coração de suave ternura. Amava-o deveras. Mas era um amor que nada esperava, nada exigia, apenas era feliz em sua livre manifestação. O chefe era lindo, tinha olhos sedutores e um sorriso arrebatador. Queria bem a ela.

 

E os dias se passaram. Do céu, Mama Quilla observava sua Acilla, agora uma publicitária solteirona convicta que criava seis gatos e adorava ler e escrever. Contente em sua plenitude, a deusa comprazia-se que Acilla pudesse finalmente ver de perto o rosto do seu Sapa Inca que, aos seus olhos antigamente apaixonados, brilhava mais que o próprio Sol. Ela não o reconhecera, o imperador, séculos depois reencarnado em um jovem peruano naturalizado brasileiro.

 

Na data marcada, ela retornou à clínica para realizar o procedimento. Dessa vez não houve demora. Quando chegou sua vez, mandaram-na sentar-se em frente a uma máquina. De costas, ela ouviu a voz aguda dele. E algo mágico aconteceu. Não um alinhamento de planetas nem o nascimento de uma estrela. Aconteceu o despertar de um coração que há muito tinha se esquecido de como era estar apaixonado.

Ele se aproximou. Ficou de frente para ela. Apertou os olhos. "Lindo", ela pensou, sorrindo para ele como em outra vida, delirante, fitava o deus Inti em toda a sua luminosidade. Seus olhares se encontraram finalmente. As águas do rio do esquecimento não foram fortes o bastante para fazer Acilla esquecer aquela paixão. Agora tudo estava de volta, as montanhas, o desejo, o sonho. A mulher madura se tornara de novo uma adolescente. Aquele rosto desenhado na superfície da face a pincel fino, os olhos pequenos de rinoceronte, a boca fina e o ar jovial enlevavam-na como um feitiço. O cabelo espetado, a pele de louça, um breve início de barba. Ela acompanhava cada detalhe daquele homem como se ele fosse o único no mundo.

Dias e noites testemunharam aquela paixão. Não era silenciosa nem secreta. Mas também não era correspondida. Acilla mais uma vez sentiu-se enlouquecer por amor ao sapa. Mandava mensagens pelo instagram, pelo WhatsApp, sentia-se inclusive invadindo a privacidade dele e isso a fazia sofrer. Tomou gosto pela bebida, o álcool turvava-lhe os sentidos e ela não sentia aquela dor de amar sem ser amada. E ele paciente, príncipe que sempre fora, não reclamava das investidas por escrito daquela que lhe era estranha, pois que não a tinha conhecido na outra vida. Acilla estava confusa demais, a cabeça mandava que ela fosse embora, aquilo era ruim, era tóxico e ele acabaria por desprezá-la mas o coração implorava que ela ficasse, que não perdesse o seu amor de novo.

Mas ele nunca fora seu. Acilla, Pachacuti não a conhecia. O médico não a conhecia e principalmente não a amava nem viria a amar. Pobre criança. Depois da cirurgia refrativa, os olhos passaram a doer, só não doíam mais que o coração. E toda vez que ela o via, que pensava nele, a dor se renovava, de modo que estava sempre ferida de amor. Como há tantos séculos atrás seus olhos doíam de fitar o Sol, era um fogo ardente que fazia-a derramar rios de lágrimas. Ela já não suportava mais. Em seu orgulho ferido de mulher rejeitada, passou a odiá-lo e a comprazer-se nesse sentimento. Não queria mais olhar os stories dele, odiava sua vida perfeita onde nunca haveria lugar para ela. Ela tentou odiá-lo. Percebeu a mentira dos homens, a que eles contam uns aos outros como se fossem anjos. O amor não se bastava. O amor exigia, era tirano e poderia mesmo ser cruel. Decidiu que trocaria de médico. Aquilo não podia mais continuar. E ele disse que sim, que era melhor.

Viram-se ainda uma última vez, no consultório. Ela, com uma tristeza pesada no peito. Ele, pleno de beleza, felicidade e juventude, como um verdadeiro filho do Sol. Abraçaram-se mais uma vez e os deuses antigos se entreolharam em mútua compreensão. "Enfim”, disse Inti a Mama Cilla, sua protegida é humana e completa. Agora ela pertence a Pachamama e sua verdade será o seu guia."

 

 

 

 

 

Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 04/09/2023
Reeditado em 18/09/2023
Código do texto: T7877843
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