Machado de Assis é frequentemente apontado como o maior expoente da literatura brasileira, reconhecido por sua versatilidade ao escrever obras que abrangem praticamente todos os gêneros literários. Dentro de seu vasto legado, os contos e crônicas ocupam um espaço essencial. "A Pianista", um conto romântico de sua autoria, teve sua estreia na publicação original do Jornal das Famílias em 1866.

Tinha vinte e dois anos e era professora de piano. Era alta, formosa, morena e modesta.
Fascinava e impunha respeito; mas através do recato que ela sabia manter sem cair na
afetação ridícula de muitas mulheres, via-se que era uma alma ardente e apaixonada,
capaz de atirar-se ao mar, como Safo ou de enterrar-se com o seu amante, como
Cleópatra.
Ensinava piano. Era esse o único recurso que tinha para sustentar-se e a sua mãe, pobre
velha a quem os anos e a fadiga de uma vida trabalhosa não permitiam já tomar parte nos
labores de sua filha.


Malvina (era o nome da pianista) era estimada onde quer que fosse exercer a sua
profissão. A distinção de suas maneiras, a delicadeza de sua linguagem, a beleza rara e
fascinante, e mais do que isso, a boa fama de mulher honesta acima de toda a
insinuação, tinha-lhe granjeado a estima de todas as famílias.
Era admitida nos saraus e jantares de família, não só como pianista, mas ainda como
conviva elegante e simpática, sendo que ela sabia pagar com a mais perfeita distinção as
atenções de que era objeto.
Nunca se lhe desmentira a estima que em todas as famílias encontrava. Essa estima
estendia-se até à pobre Teresa, sua mãe, que participava igualmente dos convites que
faziam a Malvina.


O pai de Malvina morrera pobre, deixando à família a lembrança honrosa de uma vida
honrada. Era um pobre advogado sem carta, que, à custa de longa prática, conseguira
poder exercer as funções da advocacia com tanto sucesso como se houvera cursado os
estudos acadêmicos. O mealheiro do pobre homem foi sempre um tonel das Danaides,
escoando-se por um lado o que entrava por outro, graças às necessidades de honra que
o mau destino lhe deparava. Quando pretendia começar a fazer pecúlio para garantir o
futuro da viúva e da órfã que deixasse, deu a alma a Deus.
Tinha, além de Malvina, um filho, principal causa dos danos pecuniários que sofreu; mas
esse, mal faleceu o pai, abandonou a família, e vivia, na época desta narrativa, uma vida
de opróbrio.


Era Malvina o único amparo de sua velha mãe, a quem amava com um amor de
adoração.
* * *


Ora, entre as famílias onde Malvina exercia as suas funções de pianista, contava-se, em
1850, a família de Tibério Gonçalves Valença.
Tenho necessidade de dizer em duas palavras quem era Tibério Gonçalves Valença para
melhor compreensão da minha narrativa.
Tibério Gonçalves Valença nascera com o século, isto é, contava na época em que se
passam estes acontecimentos, cinqüenta anos, e na época em que a família real
portuguesa chegou ao Rio de Janeiro, oito anos.
Era filho de Basílio Gonçalves Valença, natural do interior da província do Rio de Janeiro,
homem de certa influência na capital, nos fins do último século. Tinha exercido, a contento
do governo, certos cargos administrativos, em virtude dos quais teve ocasião de praticar
com alguns altos funcionários e adquirir por isso duas coisas: a simpatia dos referidos
funcionários e uma decidida vocação para adorar tudo quanto respirava nobreza de
duzentos anos para cima.


A família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1808. Nessa época Basílio
Valença estava retirado da vida pública, em virtude de várias moléstias graves, das quais,
todavia, já se achava restabelecido naquela época. Tomou parte ativa na alegria geral e
sincera com que o príncipe regente foi recebido pela população da cidade, e por uma
anomalia que muita gente não compreendeu, admirava menos o representante da real
nobreza bragantina do que os diferentes figurões que faziam parte da comitiva que
acompanhava a monarquia portuguesa.


Tinha queda especial para os estudos nobiliários; dispunha de uma memória prodigiosa e
era capaz de repetir sem vacilar todos os graus de ascendência fidalga deste ou daquele
solar. Quando a ascendência se perdia na noite dos tempos, Basílio Valença parava a
narração e dizia com entusiasmo que dali só para onde Deus sabia.
E este entusiasmo era tão espontâneo, e esta admiração tão sincera, que uma vez julgou
dever romper as relações de amizade com um compadre só porque este lhe objetou que
muito longe que fosse certa fidalguia nunca podia ir além de Adão e Eva.
Darei uma prova da admiração de Basílio Valença pelas coisas fidalgas. Para alojar os
nobres que acompanhavam o príncipe regente foi preciso, por ordem do intendente de
polícia, que muitos moradores das boas casas as despejassem incontinente. Basílio
Valença nem esperou que esta ordem lhe fosse comunicada; mal soube das diligências
policiais a que se procedia foi de moto próprio oferecer a sua casa, que era das melhores,
e mudou-se para outra de muito menor valia e de mesquinho aspecto.


E mais. Muitos dos fidalgos alojados violentamente tarde deixaram as casas. e tarde
satisfizeram os aluguéis respectivos. Basílio Valença não só impôs a condição de que não
se lhe devolveria a casa enquanto fosse necessária, senão que declarou
peremptoriamente não aceitar do fidalgo alojado o mínimo real.
Esta admiração que se traduziu por fatos era efetivamente sincera, e até morrer nunca
Basílio deixou de ser o que sempre foi.


Tibério Valença foi educado nestas tradições. O pai inspirou-lhe as mesmas idéias e as
mesmas simpatias. Com elas cresceu, crescendo-lhes entretanto outras idéias que o
andar do tempo lhe foi inspirando. Imaginou que a longa e tradicional afeição de sua
família pelas famílias afidalgadas dava-lhe um direito de penetrar no círculo fechado dos
velhos brasões, e nesse sentido tratou de educar os filhos e avisar o mundo.


Tibério Valença não era lógico neste procedimento. Se não queria admitir em sua família
um indivíduo que na sua opinião estava abaixo dela, como pretendia entrar nas famílias
nobres de que ele se achava evidentemente muito mais baixo? Isto, que saltava aos olhos
de qualquer, não era compreendido por Tibério Valença, a quem a vaidade de ver
misturar o sangue vermelho das suas veias com o sangue azul das veias fidalgas era
para ele o único e exclusivo cuidado.


Finalmente o tempo trouxe as necessárias modificações às pretensões nobiliárias de
Tibério Valença, e em 1850 já não exigia uma linha de avós puros e incontestáveis, exigia
simplesmente uma fortuna regular.


Eu não me atrevo a dizer o que penso destas preocupações de um homem que a
natureza fizera pai. Indico-as simplesmente. E acrescento que Tibério Valença cuidava
destes arranjos dos filhos como cuidava do arranjo de umas fábricas que possuía. Eram
para ele a mesma operação.


Ora, apesar de toda a vigilância, o filho de Tibério Valença, Tomás Valença, não
comungou com as idéias do pai, nem assinou os seus projetos secretos. Era moço,
recebia a influência de outras idéias e de outros tempos, e podia recebê-la em virtude da
liberdade plena que gozava e da companhia que escolheu. Elisa Valença, sua irmã, não
estava, talvez, no mesmo caso, e muitas vezes teve de comprimir os impulsos do coração
para não contrariar as idéias acanhadas que Tibério Valença lhe introduzira na cabeça.
Mas fossem ambos com as suas idéias ou não fossem absolutamente, era o que Tibério
Valença não cuidava de saber. Ele tinha a respeito da paternidade umas idéias especiais;
entendia que estava na sua mão regular, não só o futuro, o que era justo, mas ainda o
coração dos seus filhos. Nisto enganava-se Tibério Valença.

 

Malvina ensinava piano a Elisa. Ali, como nas outras casas, era estimada e respeitada.
Havia já três meses que contava a filha de Tibério Valença entre as suas discípulas e já a
família Valença prestava-lhe um culto de simpatia e afeição.
A afeição de Elisa por ela foi mesmo muito longe. A discípula confiava à professora os
segredos mais íntimos do seu coração, e para isso era levada pela confiança que lhe
inspirava a mocidade e os modos sérios de Malvina.


Elisa não tinha mãe nem irmãs. A pianista era a única pessoa do seu sexo com quem a
moça tinha ocasião de conversar mais freqüentemente.
Assistia às lições de piano o filho de Tibério Valença. Da conversa ao namoro, do namoro
ao amor decidido não mediou muito tempo. Um dia Tomás levantou-se da cama com a
convicção de que amava Malvina. A beleza, a castidade da moça obravam este milagre.
Malvina, que até então se conservara isenta de paixões, não pôde resistir a esta. Amou
perdidamente o rapaz.


Elisa entrava no amor de ambos como confidente. Estimava o irmão, estimava a
professora, e esta estima dupla fez esquecer-lhe por algum tempo os preconceitos
inspirados por seu pai.
Mas o amor tem o grande inconveniente de não guardar a discrição necessária para que
os estranhos não percebam. Quando dois olhares andam a falar entre si todo o mundo
fica aniquilado para os olhos que os desferem; parece-lhes que têm o direito e a
necessidade de viverem de si e por si.


Ora, um dia em que Tibério Valença voltou mais cedo, e a pianista demorou a lição até
mais tarde, foi obrigado o sisudo pai a assistir aos progressos de sua filha. Tentado pelo
que ouviu Elisa tocar, exigiu mais, e mais, e mais, até que veio notícia de que o jantar
estava na mesa. Tibério Valença convidou a moça a jantar, e esta aceitou.
Foi para o fim do jantar que Tibério Valença descobriu os olhares menos indiferentes que
se trocavam entre Malvina e Tomás.


Apanhando um olhar por acaso não deixou de prestar atenção mais séria aos outros, e
com tanta infelicidade para os dois namorados, que desde então não perdeu um só.
Quando se levantou da mesa era outro homem, ou antes era o mesmo homem, o
verdadeiro Tibério, um Tibério indignado e já desonrado só com os preliminares de um
amor que existia.


Despediu a moça com alguma incivilidade, e retirando-se para o seu quarto, mandou
chamar Tomás. Este acudiu pressuroso ao chamado do pai, sem cuidar, nem por
sombras, do que se ia tratar.
— Sente-se, disse Tibério Valença.
Tomás sentou-se.


— Possuo uma fortuna redonda que pretendo deixar aos meus dois filhos, se eles forem
dignos de mim e da minha fortuna. Tenho um nome que, se se não recomenda por uma
linha ininterrompida de avós preclaros, todavia pertence a um homem que mereceu a
confiança do rei dos tempos coloniais e foi tratado sempre com distinção pelos fidalgos do
seu tempo. Tudo isto impõe aos meus filhos uma discrição e um respeito de si mesmo,
única tábua de salvação da honra e da fortuna. Creio que me expliquei e me
compreendeu.


Tomás estava aturdido. As palavras do pai eram grego para ele. Olhou fixamente para
Tibério Valença, e quando este com um gesto de patrício romano mandou-o embora,
Tomás deixou escapar estas palavras em tom humilde e suplicante:


— Explique-se, meu pai; não o compreendo.
— Não compreende?
— Não.
Os olhos de Tibério Valença faiscavam. Parecia-lhe que tinha falado claro, não querendo
sobretudo falar mais claro, e Tomás, sem procurar a oportunidade daquelas observações,
perguntava-lhe o sentido das suas palavras, no tom da mais sincera surpresa.
Era preciso dar a Tomás a explicação pedida.


Tibério Valença continuou
— As explicações que lhe tenho a dar são mui resumidas. Quem lhe deu o direito de me
andar namorando a filha de um rábula?
— Não compreendo ainda, disse Tomás.
— Não compreende?
— Quem é a filha do rábula?


— É essa pianista, cuja modéstia todos são unânimes em celebrar, mas que eu descubro
agora ser apenas uma rede que ela arma para apanhar um casamento rico.
Tomás compreendeu enfim de que se tratava. Tudo estava descoberto. Não
compreendeu nem como nem desde quando, mas compreendeu que o seu amor, tão
cuidadosamente velado, já não era segredo.


Todavia, ao lado da surpresa que lhe causaram as palavras do pai, sentiu um desgosto
pela insinuação brutal de que vinha acompanhada a explicação: e, sem responder nada,
levantou-se, curvou a cabeça e encaminhou-se para a porta.
Tibério Valença fê-lo parar dizendo:
— Então que é isso?
— Meu pai...
— Retirava-se sem mais nem menos? Que me diz em resposta às minhas observações?
Veja lá. Ou a pianista sem a fortuna, ou a fortuna sem a pianista: é escolher. Eu não
ajuntei dinheiro nem o criei com tanto trabalho para realizar os projetos atrevidos de uma
mulher de pouco mais ou menos...


— Meu pai, se o que me retivesse na casa paterna fosse simplesmente a fortuna, minha
escolha estava feita: o amor de uma mulher honesta bastava-me para amparar minha
vida: eu saberei trabalhar por ela. Mas eu sei que acompanhando essa moça perco a
afeição de meu pai, e prefiro perder a mulher a perder o pai: fico.


Esta resposta de Tomás desconcertou Tibério Valença. O pobre homem passou a mão
pela cabeça, fechou os olhos, franziu a testa, e depois de dois minutos, disse, levantandose:
— Pois sim, de um ou de outro modo, estimo que fique. Poupo-lhe um arrependimento.
E fez um gesto a Tomás para que saísse. Tomás saiu, de cabeça baixa, e dirigiu-se para
o seu quarto, onde ficou encerrado até o dia seguinte.
* * *


No dia seguinte, na ocasião em que Malvina ia sair para dar as suas lições, recebeu um
bilhete de Tibério Valença. O pai de Tomás dava o ensino de Elisa por acabado e
mandava-lhe o saldo de contas.
Malvina não compreendeu esta despedida tão positiva e tão humilhante. A que podia
atribuí-la? Em vão indagou se a memória lhe apresentava um fato que pudesse justificar
ou explicar o bilhete, e não achou.


Resolveu ir à casa de Tibério Valença e ouvir da própria boca dele as causas que faziam
dispensar tão bruscamente as suas lições à menina Elisa.
Tibério Valença não estava em casa. Estava só Elisa. Tomás estava, mas encerrara-se
no quarto, de onde só saíra à hora do almoço por instâncias do pai.
Elisa recebeu a pianista com certa frieza que bem se via ser estudada. O coração pedialhe
outra coisa.


À primeira reclamação de Malvina acerca do estranho bilhete que recebera, Elisa
respondeu que não sabia. Mas tão mal fingiu a ignorância, tão difícil e doloroso lhe foi a
resposta, que Malvina, compreendendo que alguma coisa havia no fundo com que não
queria contrariá-la, pediu positivamente a Elisa que o dissesse, prometendo nada referir.
Elisa disse à pianista que o amor de Tomás por ela estava descoberto, e que o pai levava
a mal esse amor, tendo lançado mão do meio da despedida para afastá-la da casa e da convivência de Tomás.
Malvina, que amava sincera e apaixonadamente o irmão de Elisa, chorou ao ouvir esta
notícia.


Mas as lágrimas que faziam? O ato estava consumado; a despedida estava feita; só havia
uma coisa a fazer: sair e não pôr mais os pés na casa de Tibério Valença.
Foi o que Malvina resolveu fazer.
Levantou-se e despediu-se de Elisa.
Esta, que, apesar de tudo, tinha um fundo de afeição pela pianista, perguntou-lhe se não
ficava mal com ela.
— Mal por quê? perguntou a pianista. Não, não fico.
E saiu enxugando as lágrimas.
* * *
Estava desfeita a situação que podia continuar a avassalar o coração de Tomás. O pai
não parou, e procedeu, no ponto de vista em que se colocava, com uma lógica cruel.
Tratou primeiramente de afastar o filho da corte por alguns meses, de maneira que a ação
do tempo pudesse apagar no coração e na memória do rapaz o amor e a imagem de
Malvina.
— É isto, dizia consigo Tibério Valença, não há outro meio. Longe esquece-lhe tudo. A tal
pianista não é lá essas belezas que impressionem muito.


O narrador protesta contra esta última reflexão de Tibério Valença, que, de certo, na idade
que contava, já se esquecera dos predicados da beleza e dos milagres da simpatia que
fazem amar às feias. E até quando as feias se fazem amar, é sempre doida e
perdidamente, diz La Bruyère, porque foi de certo por filtros poderosos e vínculos
desconhecidos que elas souberam atrair e prender.


Tibério Valença não admitia a hipótese de amar a uma feia, nem de amar muito tempo
uma bonita. Era desta negação que ele partia, como homem sensual e positivo que era.
Resolveu, portanto, mandar o filho para fora, e comunicou-lhe o projeto oito dias depois
das cenas que acima narrei.
Tomás recebeu a notícia com aparente indiferença. O pai ia armado de objeções para
responder às que lhe dispensasse o rapaz, e ficou muito admirado quando este curvou-se
submisso à ordem de partir.


Entretanto aproveitou a ocasião para usar de alguma cordura e generosidade.
— Fazes gosto em ir? perguntou-lhe.
— Faço, meu pai, foi a resposta de Tomás.
Era à Bahia que devia ir o filho de Tibério.
Desde o dia desta conferência Tomás mostrou-se mais e mais triste, sem todavia
manifestar a ninguém com que sentimento recebera a notícia de deixar o Rio de Janeiro.

 

Tomás e Malvina só se tinham encontrado duas vezes depois do dia em que esta foi
despedida da casa de Tibério. A primeira foi à porta da casa dela. Tomás passava na
ocasião em que Malvina ia entrar. Falaram-se. Não era preciso nenhum deles perguntar
se sentiam saudades com a ausência e a separação. O ar de ambos dizia tudo. Tomás,
às interrogações de Malvina, disse que passava ali sempre, e sempre via as janelas
fechadas. Cuidou um dia que ela estivesse doente.
— Não estive doente: é preciso que nos esqueçamos um do outro. Se eu não puder,
seja...


— Eu? interrompeu Tomás.
— É preciso, respondeu a pianista suspirando.
— Nunca, disse Tomás.
A segunda vez que se viram foi em casa de um amigo cuja irmã recebia lições de
Malvina. Estava lá o moço na ocasião em que a pianista entrou. Malvina pretextou
doença, e disse que só para não ser esperada em vão tinha ido lá. Depois do que, retirouse.

Tomás resolveu ir despedir-se de Malvina. Seus esforços, porém, foram inúteis. Em casa
sempre lhe diziam que ela tinha saído, e as janelas constantemente fechadas pareciam
as portas do túmulo do amor dos dois.

Na véspera de partir Tomás convenceu-se de que era impossível despedir-se da moça.
Desistiu de procurá-la e resolveu-se, com mágoa, a sair do Rio de Janeiro sem dar-lhe o
adeus de despedida.
— Nobre moça! dizia ele consigo; não quer que do nosso encontro resulte atear-se o
amor que me prende a ela.
Enfim Tomás partiu.
Tibério deu-lhe todas as cartas e ordens necessárias para que nada lhe faltasse na Bahia,
e soltou do peito um suspiro de consolação quando o filho saiu à barra.
* * *

 

Malvina soube da partida de Tomás logo no dia seguinte. Chorou amargamente. Por que
sairia? Ela acreditou que dois motivos seriam: ou resolução corajosa para esquecer um
amor que lhe trouxera o desgosto do pai; ou uma intimação cruel do pai. De um ou outro
modo Malvina, estimava esta separação. Se ela não esquecia o rapaz, tinha esperanças
de que o rapaz a esquecesse, e então não sofria com esse amor que só podia trazer
desgraças ao filho de Tibério Valença.
Este nobre pensamento denota claramente o caráter elevado e desinteressado e o amor
profundo e corajoso da pianista. Tanto bastava para que ela merecesse casar com o
rapaz.

 

Quanto a Tomás, partiu com o coração apertado e o ânimo abatido. À última hora foi que
ele sentiu quanto amava a moça e como nesta separação lhe sangrava o coração. Mas
devia partir. Afogou a dor em lágrimas e partiu.
* * *
Correram dois meses.
Durante os primeiros dias de sua residência na Bahia, Tomás sentiu as grandes saudades
do grande amor que nutria por Malvina. Fez-se-lhe em torno maior solidão ainda que a
que já tinha. Parecia-lhe que ia morrer naquele desterro, sem a luz e o calor que lhe dava
vida. Estando, por assim dizer, a dois passos do Rio de Janeiro, afigurava-se-lhe achar-se
no cabo do mundo, longe, eternamente longe, infinitamente longe de Malvina.

 

O correspondente de Tibério Valença, previamente informado por este, procurou todos os
meios de distrair o espírito de Tomás. Tudo foi em vão. Tomás olhava para tudo com
indiferença, isto mesmo quando lhe era dado olhar, porque quase sempre passava os
dias encerrado em casa, recusando toda a espécie de distração.
Esta mágoa tão profunda tinha eco em Malvina. A pianista sentia do mesmo modo a
ausência de Tomás; não é que tivesse ocasião ou procurasse vê-lo, na época em que se
achava na corte, mas é que, separados pelo mar, parecia que estavam separados pela
morte, e que nunca mais tinham de ver-se.

 

Ora, Malvina desejava ver Tomás amando outra, estimado pelo pai, mas queria vê-lo.
Este amor de Malvina, que se apascentava com a felicidade da outra, e só com a vista do
objeto amado, este amor não diminuiu, cresceu na ausência, e cresceu muito. A moça
nem já podia conter as suas lágrimas; vertia-as insensivelmente todos os dias.
* * *
Um dia Tomás recebeu uma carta de seu pai participando-lhe que Elisa se ia casar com
um jovem deputado. Tibério Valença fazia do futuro genro a pintura mais lisonjeira. Era a
todos os respeitos um homem distinto e digno da estima de Elisa.
Tomás aproveitou a ocasião, e na resposta que deu a essa carta apresentou a Tibério

Valença a idéia de fazê-lo voltar para assistir ao casamento de sua irmã. E procurou
lembrar isto no tom mais indiferente e frio deste mundo.
Tibério Valença quis responder positivamente que não; mas, forçado a dar
minuciosamente as razões da negativa, e não querendo tocar no assunto, tomou a
resolução de não responder senão depois de concluído o casamento, a fim de lhe tirar o
pretexto de novo pedido da mesma natureza.

 

Tomás estranhou o silêncio do pai. Não escreveu outra carta pela razão de que a
insistência fá-lo-ia desconfiar. Demais, o silêncio de Tibério Valença, que ao princípio lhe
pareceu estranho, tinha uma explicação própria e natural. Essa explicação foi a
verdadeira causa do silêncio. Tomás compreendeu e calou-se.
Mas, passados os dois meses, nas vésperas do casamento de Elisa, apareceu Tomás no
Rio de Janeiro. Saíra da Bahia inopinadamente, sem que o correspondente de Tibério
Valença pudesse obstar.

 

Chegando ao Rio de Janeiro foi o seu primeiro cuidado ir à casa de Malvina.
Naturalmente não lhe podiam negar a entrada, visto não haver ordem neste sentido por
saber-se que ele estava na Bahia.
Tomás, que dificilmente se pudera conter nas saudades que sentiu por Malvina, chegara
ao estado de lhe ser impossível continuar ausente. Procurou iludir a vigilância do
correspondente de seu pai, e na primeira ocasião pôs em execução o projeto concebido.

 

Durante a viagem, à proporção que se aproximava do porto desejado, expandia-se o
coração do rapaz e nasciam-lhe ânsias cada vez maiores de pôr o pé em terra.
Como já disse, a primeira casa a que Tomás se dirigiu foi a de Malvina. O fâmulo disse
que esta se achava em casa, e Tomás entrou. Quando a pianista soube que Tomás
estava na sala soltou um grito de alegria, manifestação espontânea do coração, e correu
ao encontro dele.

 

O encontro foi como devia ser o de dois corações que se amam e que tornam a ver-se
depois de longa ausência. Pouco disseram, na santa efusão das almas, que falavam em
silêncio e se comunicavam por esses meios simpáticos e secretos do amor.
Depois, vieram as indagações sobre as saudades de cada um. Era aquela a primeira vez
que tinham ocasião de dizerem francamente o que sentiam um pelo outro.
A pergunta natural de Malvina foi esta:
— Abrandou-se a crueldade de seu pai?
— Não, respondeu Tomás.
— Como, não?
— Não. Vim sem ele saber.
— Ah!
— Não podia mais estar naquele desterro. Era necessidade para o coração e para a
vida...
— Oh! fez mal...
— Fiz o que devia.
— Mas, seu pai...
— Meu pai ralhará comigo; mas paciência; acho-me disposto a afrontar tudo. Depois de
consumado o fato, meu pai é sempre pai, e nos perdoará...
— Oh! nunca!
— Como, nunca? Recusa ser minha mulher?
— Essa seria a minha felicidade; mas quisera sê-lo com honra.
- Que mais honra?
— Um casamento clandestino não nos ficaria bem. Se ambos fôssemos pobres ou ricos,
sim; mas a desigualdade das nossas fortunas...
— Oh! não faças essa consideração.
— É essencial.
— Não, não digas isso... Há de ser minha mulher ante Deus e ante os homens. Que
valem as fortunas neste caso? Uma coisa nos iguala: é a nobreza moral, é o amor que
nos liga. Não entremos nessas miseráveis considerações do cálculo e do egoísmo. Sim?

— Isto é o fogo da paixão... Dirás sempre o mesmo?
— Oh! sempre!
Tomás ajoelhou aos pés de Malvina. Tomou-lhe as mãos entre as dele e beijou-as com
beijos de ternura...
Teresa entrou na sala, justamente na ocasião em que Tomás se levantava. Uns minutos
antes que fosse encontraria aquele quadro de amor.

 

Malvina apresentou Tomás a sua mãe. Parece que Teresa já alguma coisa sabia dos
amores da filha. Na conversa com Tomás deixou escapar palavras equívocas que deram
lugar a que o filho de Tibério Valença expusesse à velha os seus projetos e os seus
amores.
As objeções da velha foram idênticas às da filha. Também ela via na situação esquerda
do rapaz em relação ao pai uma razão de impossibilidade para o casamento.
Desta primeira entrevista saiu Tomás, alegre por ver Malvina, triste pela singular oposição
de Malvina e de Teresa.
* * *

Em casa de Tibério Valença faziam-se preparativos para o casamento de Elisa.
O noivo era um jovem deputado de província, se do Norte ou do Sul, não sei, mas
deputado cujo talento supria os anos de prática, e que começava a influir na situação.

 

Acrescia que era dono de uma boa fortuna pela recente morte do pai.
Tais considerações decidiram Tibério Valença. Ter por genro um homem abastado,
gozando de uma certa posição política, talvez ministro dentro de pouco tempo, era um
partido de grande valor. Neste ponto a alegria de Tibério Valença era legítima. E como os
noivos se amavam deveras, condição que Tibério Valença dispensaria se necessário
fosse, esta união tornou-se aos olhos de todos uma união natural e propícia.

 

A alegria de Tibério Valença não podia ser maior. Tudo lhe corria às mil maravilhas.
Casava a filha ao sabor dos seus desejos, e tinha longe o filho desnaturado, que talvez
aquela hora já começasse a arrepender-se das veleidades amorosas que tivera.
Preparava-se enxoval, faziam-se convites, compravam-se mil coisas necessárias à casa
do pai e à da filha, e tudo esperava ansioso o dia aprazado para o casamento de Elisa.
Ora, no meio dessa satisfação plena e geral, caiu subitamente como um raio o filho
desterrado, conviva que se não contara para a festa.

 

A alegria de Tibério Valença ficou assim um tanto aguada. Apesar de tudo não quis
romper absolutamente com o filho, e, sinceramente ou não, o primeiro que falou a Tomás
não foi o algoz, foi o pai.
Tomás disse que viera para assistir ao casamento da irmã e conhecer o cunhado.
Apesar desta declaração Tibério Valença determinou sondar o espírito do filho no capítulo
dos amores. Guardou-se para o dia seguinte.
E no dia seguinte, logo depois do almoço, Tibério Valença deu familiarmente o braço ao
filho e levou-o para uma sala retirada. Aí, depois de fazê-lo sentar, perguntou-lhe se o
casamento, se outro motivo o trouxera tão inopinadamente ao Rio de Janeiro.
Tomás hesitou.
— Fala, disse o pai, fala com franqueza.
— Pois bem, vim por dois motivos: pelo casamento e por outro...
— O outro é o mesmo?
— Quer franqueza, meu pai?
— Exijo.
— É...
— Está bem. Lavo as mãos. Casa-te, consinto; mas nada mais terás de mim. Nada,
ouviste?

 

E dizendo isto Tibério Valença saiu.
Tomás ficou pensativo.
Era um consentimento aquilo. Mas de que natureza? Tibério Valença dizia que, em se
casando, o filho não esperasse nada do pai. Que não esperasse os bens da fortuna,
pouco ou nada era para Tomás. Mas aquele nada estendia-se a tudo, talvez à proteção
paterna, talvez ao amor paterno. Esta consideração de que perderia a afeição do pai
calava muito no espírito do filho.

 

A esperança nunca abandonou os homens. Tomás concebeu a esperança de convencer
o pai com o andar dos tempos.
Entretanto, passaram-se os dias e concluiu-se o casamento da filha de Tibério Valença.
No dia do casamento, como nos outros, Tibério Valença tratou o filho com uma sequidão
nada paternal. Tomás sentia-se por isso, mas a vista de Malvina, a cuja casa ia
regularmente três vezes por semana, dissipava as aflições para dar-lhe novas
esperanças, e novos desejos de completar a ventura que procurava.

 

O casamento de Elisa coincidiu com a retirada do deputado para a província natal. A
mulher acompanhou o marido, e, a instâncias do pai, ficou convencionado que no ano
seguinte viriam estabelecer-se definitivamente no Rio de Janeiro.

 

O tratamento de Tibério Valença em relação a Tomás continuou a ser o mesmo: frio e
reservado. Em vão procurava o moço um ensejo para tocar de frente a questão e trazer o
pai a sentimentos mais compassivos; o pai esquivava-se sempre.
Mas se era assim por um lado, por outro os desejos legítimos do amor de Tomás por
Malvina cresciam mais e mais, dia por dia. A luta que se dava no coração de Tomás,
entre o amor de Malvina e o respeito aos desejos de seu pai, foi fraqueando, cabendo o
triunfo ao amor. Os esforços do moço eram inúteis, e finalmente um dia chegou em que
foi-lhe necessário decidir entre as determinações do pai e o amor pela pianista.
E a pianista? Essa era mulher e amava perdidamente o filho de Tibério Valença. Também
uma luta interna se dava no espírito dela, mas à força do amor que alimentava ligavam-se
as instâncias continuadas de Tomás. Este objetava-lhe que, uma vez casados, a
clemência do pai reapareceria, e tudo se terminaria em bem. Tal estado de coisas
prolongou-se até um dia em que não foi mais possível a ambos recuar. Sentiram que a
existência dependia do casamento.

 

Tomás encarregou-se de falar a Tibério. Era o ultimatum.
Uma noite em que Tibério Valença pareceu mais alegre que de ordinário, Tomás deu um
passo afoitamente para a questão, dizendo-lhe que, depois de vãos esforços,
reconhecera que a paz da sua existência dependia do casamento com Malvina.
— Então casas-te? perguntou Tibério Valença.
— Venho pedir-lhe...
— Já disse o que devias esperar de mim se desses semelhante passo. Não passarás por
ignorante. Casa-te; mas quando te arrependeres ou a necessidade te bater à porta,
escusas de voltar o rosto para teu pai. Supõe que ele está pobre e nada te pode dar.

 

Esta resposta de Tibério Valença agradou em parte a Tomás. Não entrava nas palavras
do pai a consideração do afeto que lhe negaria, mas o auxílio que lhe não havia de
prestar em caso de necessidade. Ora, este auxilio era o que Tomás dispensava, uma vez
que se pudesse unir a Malvina. Contava com algum dinheiro que possuía e tinha
esperanças de arranjar dentro de pouco tempo um emprego público.
Não deu outra resposta a Tibério Valença senão a de que estava determinado a realizar o
casamento.

 

Diga-se em honra de Tomás, não foi sem algum remorso que ele tomou uma
determinação que parecia contrariar os desejos e os sentimentos do pai. É certo que a
linguagem deste excluía toda a consideração de ordem moral para valer-se de uns
preconceitos miseráveis, mas ao filho não competia, de certo, apreciá-los e julgá-los.
Tomás hesitou mesmo depois da entrevista com Tibério Valença, mas a presença de
Malvina, a cuja casa foi logo, dissipou todos os receios e pôs termo a todas as hesitações.
O casamento efetuou-se pouco tempo depois, sem comparecimento do pai, nem de
parente algum de Tomás.
* * *


O fim do ano de 1850 não trouxe incidente algum à situação da família Valença.
Tomás e Malvina viviam no gozo da mais deliciosa felicidade. Unidos depois de tanto
tropeço e hesitação, entraram na estância da bem-aventurança conjugal coroados de
mirto e de rosas. Eram moços e ardentes; amavam-se no mesmo grau; tinham chorado
saudades e ausências. Que melhores condições para que aquelas duas almas, no
momento do consórcio legal, achassem uma ternura elevada e celeste, e se
confundissem no ósculo santo do casamento?

 

Todas as luas-de-mel se parecem. A diferença está na duração. Dizem que a lua-de-mel
não pode ser perpétua, e para desmentir este ponto não tenho o direito da experiência.
Todavia, creio que a asserção é arriscada demais. Que a intensidade do amor do primeiro
tempo diminua com a ação do mesmo tempo, isso creio: é da própria condição humana.
Mas essa diminuição não é de certo tamanha como se afigura a muitos, se o amor
subsiste à lua-de-mel, menos intenso é verdade, mas ainda bastante claro para dar luz ao
lar doméstico.
A lua-de-mel de Tomás e Malvina tinha certo caráter de perpetuidade.
* * *

 

No princípio do ano de 1851 adoeceu Tibério Valença.
Foi ao princípio moléstia passageira, em aparência ao menos; mas surgiram
complicações novas, e ao cabo de quinze dias declarou-se Tibério Valença gravemente
enfermo.

 

Um excelente médico, que era de muito tempo o médico da casa, começou a tratá-lo no
meio dos maiores cuidados. Não hesitou, no fim de alguns dias, em declarar que nutria
receios pela vida do doente.
Apenas soube da moléstia do pai, Tomás foi visitá-lo. Era a terceira vez, depois do
casamento. Nas duas primeiras Tibério Valença tratou-o com tal frieza e reserva que
Tomás julgou dever deixar que o tempo, remédio a tudo, modificasse um tanto os
sentimentos do pai.

 

Mas agora o caso era diferente. Tratava-se de uma moléstia grave e do perigo de vida de
Tibério Valença. Tudo desaparecera diante deste dever.
Quando Tibério Valença viu Tomás ao pé do leito de dor em que jazia manifestou certa
expressão que era sinceramente de pai. Tomás chegou-se a ele e beijou-lhe a mão.
Tibério mostrou-se satisfeito com esta visita do filho.

 

Os dias correram e a moléstia de Tibério Valença, em vez de diminuir, lavrava e
começava a destruir-lhe a vida. Houve consultas de facultativos. Tomás indagou deles
sobre o estado real de seu pai, e a resposta que teve foi que se não era desesperado, era
ao menos gravíssimo.
Tomás pôs em atividade tudo quanto podia tornar à vida o autor dos seus dias.
Dias e dias passava junto do leito do velho, muitas vezes sem comer e sem dormir.
Um dia, em que voltava para casa, após longas horas de insônia, veio Malvina saindo-lhe
ao encontro e abraçá-lo, como de costume, mas com ar de ter alguma coisa a pedir-lhe.
Com efeito, depois de abraçá-lo, e indagar do estado de Tibério Valença, pediu-lhe que
desejava ir, poucas horas que fossem, cuidar como enfermeira do sogro.
Tomás acedeu a esse pedido.

 

No dia seguinte Tomás disse ao pai quais eram os desejos de Malvina. Tibério Valença
ouviu com sinais de satisfação as palavras do filho, e, depois de este concluir, respondeulhe
que aceitava contente a oferta dos serviços da nora.
Malvina foi no mesmo dia começar os seus serviços de enfermeira.
Tudo em casa mudou como por encanto.
A doce e discreta influência da mulher deu nova direção aos arranjos necessários à casa
e à aplicação dos medicamentos.
Tinha crescido a gravidade da moléstia de Tibério Valença. Era uma febre que o trazia
constantemente, ou delirante, ou sonolento.


Por isso durante os primeiros dias da estada de Malvina em casa do doente, este de nada
pôde saber.
Foi só depois que a força da ciência conseguiu restituir a Tibério Valença as esperanças
de vida e alguma tranqüilidade, que o pai de Tomás descobriu a presença da nova
enfermeira.

 

Em tais circunstâncias os preconceitos só dominam os espíritos inteiramente pervertidos.
Tibério Valença, apesar da exageração dos seus sentimentos, não estava ainda no caso.
Acolheu a nora com um sorriso de benevolência e de gratidão.
— Muito obrigado, disse ele.
— Está melhor?
— Estou.
— Ainda bem.
— Há muitos dias que está aqui?
— Há alguns.
— Nada sei do que se tem passado. Parece que acordo de um longo sono. Que tive eu?
— Delírios e constantes sonolências.
— Sim?
— É verdade.
— Mas estou melhor, estou salvo?
— Está.
— Dizem os médicos?
— Dizem e vê-se logo.
— Ah! graças a Deus.

 

Tibério Valença respirou como um homem que aprecia a vida no grau máximo. Depois,
acrescentou:
— Ora, quanto trabalho teve comigo!...
— Nenhum...
— Como nenhum?
— Era preciso haver alguém que dirigisse a casa. Bem sabe que as mulheres são
essencialmente donas de casa. Não quero encarecer o que fiz; eu pouco fiz, fi-lo por
dever. Mas quero ser leal declarando qual foi o pensamento que me trouxe aqui.
— A senhora tem bom coração.
Tomás entrou neste momento.
— Oh! meu pai! disse ele.
— Adeus, Tomás.
— Está melhor?
Estou. Sinto e dizem os médicos que estou melhor.
— Está, sim.
— Estava a agradecer à tua mulher...
Malvina acudiu logo:
— Deixemos isso para depois.

 

Desde o dia em que Tibério Valença teve este diálogo com a nora e o filho a cura foi-se
operando gradualmente. No fim de um mês entrou Tibério Valença em convalescença.
Estava excessivamente magro e fraco. Só podia andar apoiado a uma bengala e ao
ombro de um criado. Tomás substituiu muitas vezes o criado a chamado do próprio pai.
Neste ínterim foi Tomás contemplado na pretensão que tinha a um emprego público.
Progrediu a convalescença do velho, e os facultativos aconselharam uma mudança para o
campo.

 

Faziam-se os preparativos da mudança quando Tomás e Malvina anunciaram a Tibério
Valença que, dispensando-se agora os seus cuidados, e devendo Tomás entrar no
exercício do emprego que obtivera, tornava-se necessária a separação.
— Então não me acompanham? perguntou o velho.
Ambos repetiram as razões que tinham, procurando do melhor modo não ofender a
suscetibilidade do pai e do enfermo.


Pai e enfermo cederam às razões e efetuou-se a separação no meio dos protestos
reiterados de Tibério Valença que agradecia d’alma os serviços que os dois lhe haviam
prestado.
Tomás e Malvina seguiram para casa, e o convalescente partiu para o campo.
* * *

 

A convalescença de Tibério Valença não teve incidente algum.
No fim de quarenta dias estava pronto para outra, como se diz popularmente, e o velho
com toda a criadagem voltou para a cidade.
Não fiz menção de visita alguma da parte dos parentes de Tibério Valença durante a
moléstia deste, não porque eles não tivessem visitado o parente enfermo, mas porque
essas visitas não trazem circunstância alguma nova no caso.

 

Todavia pede a fidelidade histórica que eu as mencione agora. Os parentes, últimos que
restavam à família Valença, reduziam-se a dois velhos primos, uma prima e um sobrinho,
filho desta. Estas criaturas foram algum tanto assíduas durante o perigo da moléstia, mas
escassearam as visitas desde que tiveram ciência de que a vida de Tibério não corria
risco.
Convalescente, Tibério Valença não recebeu uma só visita desses parentes. O único que
o visitou algumas vezes foi Tomás, mas sem a mulher.
Estando completamente restabelecido e tendo voltado à cidade, a vida da família
continuou a mesma que anteriormente à moléstia.

 

Esta circunstância foi observada por Tibério Valença. Apesar da sincera gratidão com que
ele acolheu a nora apenas tornara a si, Tibério Valença não pôde afugentar do espírito um
pensamento desonroso para a mulher do seu filho. Dava o desconto necessário às
qualidades morais de Malvina, mas interiormente acreditava que o procedimento dela não
fosse isento de cálculo.

 

Este pensamento era lógico no espírito de Tibério Valença. No fundo do enfermo
agradecido havia o homem calculista, o pai interesseiro, que olhava tudo pelo prisma
estreito e falso do interesse e do cálculo, e a quem parecia que não se podia fazer uma
boa ação sem laivos de intenções menos confessáveis.
Menos confessáveis é paráfrase do narrador; no fundo, Tibério Valença admitia como
legítimo o cálculo dos dois filhos.

 

Tibério Valença imaginava que Tomás e Malvina, procedendo como procederam, tinham
tido mais de um motivo que os determinasse. Não eram só, no espírito de Tibério
Valença, o amor e a dedicação filial; era ainda um meio de ver se lhe abrandavam os
rancores, se lhe armavam à fortuna.
Nesta convicção estava, e com ela esperava a continuação dos cuidados oficiosos de
Malvina. Imagine-se qual não foi a surpresa do velho, vendo que cessada a causa das
visitas dos dois, causa real que ele tinha por aparente, nenhum deles apresentou o
mesmo procedimento anterior. A confirmação seria se, pilhada a aberta, Malvina
aproveitasse para fazer da sua presença em casa de Tibério Valença uma necessidade.
Isto pensava o pai de Tomás, e pensava, neste caso, com acerto.
* * *

 

Correram dias e dias, e a situação não mudou.
Tomás lembrara uma vez a necessidade de visitar com Malvina a casa paterna. Malvina,
porém, recusou, e quando as instâncias de Tomás a obrigaram a uma declaração mais
peremptória, declarou ela positivamente que a continuação das suas visitas poderia
parecer a Tibério Valença uma pretensão ao esquecimento do passado e aos conchegos
do futuro.
— Melhor é, disse ela, não irmos; antes passemos por descuidados que por ávidos ao
dinheiro de teu pai.
— Meu pai não pensará isso, disse Tomás.
— Pode pensar...
— Creio que não... Meu pai está mudado: é outro. Ele já te reconhece; não te fará
injustiça.
— Está bom, veremos depois.
E depois desta conversa nunca mais se falou nisso, sendo que Tomás não encontrou na
resistência de Malvina senão um motivo mais para amá-la e respeitá-la.
* * *
Tibério Valença, desenganado a respeito da expectativa em que estava, resolveu ir um
dia em pessoa visitar a nora.
Era isto nem mais nem menos o reconhecimento solene de um casamento que
desaprovara. Esta consideração, tão intuitiva em si, não se apresentou ao espírito de
Tibério Valença.

 

Malvina estava só quando à porta parou o carro de Tibério Valença.
Esta visita inesperada causou-lhe verdadeira surpresa.
Tibério Valença entrou com um sorriso nos lábios, sintoma de bonança do espírito, que
não escapou à ex-professora de piano.
— Não me querem ir ver, venho eu vê-los. Onde está meu filho?
— Na repartição.
— Quando volta?
— Às três e meia.
— Já não posso vê-lo. Há muitos dias que ele não vai. Quanto à senhora, creio que
decididamente nunca mais lá volta...
— Não tenho podido...
— Por quê?
— Ora, isso não se pergunta a uma dona-de-casa.
— Então tem muito que fazer?...
— Muito.
— Oh! mas nem meia hora pode dispensar? E que tanto trabalho é esse?

 

Malvina sorriu-se.
— Como lhe hei de explicar? Há tanta coisa miúda, tanto trabalho que não aparece, enfim
coisas de casa. E se nem sempre estou ocupada, estou muitas vezes preocupada, e
outras simplesmente cansada...
— Creio que um bocadinho mais de vontade...
— Falta de vontade? Não creia nisso...
— É ao menos o que parece.
Houve um momento de silêncio. Malvina, para mudar o rumo da conversação, perguntou
a Tibério como se achava e se não tinha receios da recaída.
Tibério Valença respondeu, com ar de preocupação, que se achava bom e que não tinha
receios de nada, antes se achava esperançado de gozar ainda longa vida e boa saúde.
— Tanto melhor, disse Malvina.

 

Tibério Valença, sempre que Malvina se distraía, corria os olhos em redor da sala para
examinar o valor dos móveis e avaliar por eles a posição do filho.
Os móveis eram singelos e sem essa profusão e multiplicidade dos móveis das salas
abastadas. O chão tinha um palmo de palhinha ou uma fibra de tapete. O que se
destacava era um rico piano, presente de alguns discípulos, feito a Malvina no dia em que
esta se casou.
Tibério Valença, contemplando a modéstia dos móveis da casa de seu filho, era levado a
uma comparação forçada entre eles e os de sua casa, onde o luxo e o gosto davam as
mãos.
Depois deste exame minucioso, interrompido pela conversação que continuava sempre,
Tibério Valença deixou cair um olhar sobre uma pequena mesa ao pé da qual se achava
Malvina.

Sobre essa mesa estavam umas roupas de criança.
— Cose para fora? perguntou Tibério Valença.
— Não, por que pergunta?
— Vejo ali aquela roupa...
Malvina olhou para o lugar indicado pelo sogro.
— Ah! disse ela.
— Que roupa é aquela?
— É de meu filho.
— De seu filho?
— Ou filha; não sei.
— Ah!

 

Tibério Valença olhou fixamente para Malvina, e quis falar. Mas causou-lhe tal impressão
a serenidade daquela mulher cuja família se ia aumentar e que olhava tão impavidamente
para o futuro, que a voz se lhe embargou e não pôde pronunciar palavra.
— Efetivamente, pensava ele, aqui há alguma coisa especial, alguma força sobre-humana
que sustenta estas almas. Será isto o amor?
Tibério Valença dirigiu algumas palavras à nora e saiu deixando lembranças para o filho e
instando para que ambos fossem visitá-lo.
Poucos dias depois da cena que acabamos de contar chegaram ao Rio de Janeiro Elisa e
seu marido.
Vinham estabelecer-se definitivamente na corte.
A primeira visita foi para o pai, de cuja moléstia tinham sabido na província.
Tibério Valença recebeu-os com grande alvoroço. Beijou a filha, abraçou o genro, com
uma alegria infantil.
* * *

 

Nesse dia houve em casa grande jantar, para o qual não se convidou ninguém além dos
que habitualmente freqüentavam a casa.
O marido de Elisa, antes de pôr casa, devia ficar em casa do sogro, e quando comunicou
este projeto a Tibério Valença, este acrescentou que não se iriam mesmo sem aceitar um
baile.
O aditamento foi aceito.

 

O baile foi marcado para o sábado próximo, isto é, exatamente oito dias depois.
Tibério Valença estava contentíssimo.
Tudo andou logo na maior azáfama. Tibério Valença queria provar com o esplendor da
festa o grau de estima em que tinha a filha e o genro.
Desde então filha e genro, genro e filha, tais foram os dois pólos em que volteava a
imaginação de Tibério Valença.
Enfim o dia de sábado chegou.
À tarde houve um jantar dado a alguns poucos amigos, os mais íntimos, mas jantar
esplêndido, porque Tibério Valença não quis que um só ponto da festa desdissesse do
resto.

 

Entre os convidados para o jantar veio um que informou o dono da casa de que outro
convidado não vinha, por ter grande soma de trabalho a dirigir.
Era exatamente um dos mais íntimos e melhores convivas.
Tibério Valença não se deu por convencido com o recado, e resolveu escrever-lhe uma
carta exigindo a presença dele no jantar e no baile.
Em virtude disto foi ao gabinete, abriu a gaveta, tirou papel e escreveu uma carta que
mandou incontinenti.
Mas, no momento de guardar de novo o papel que tirara da gaveta, reparou que entre
duas folhas se resvalara uma cartinha por letra de Tomás.
Estava aberta. Era uma carta, já antiga, que Tibério Valença recebera e atirara para
dentro da gaveta. Foi a carta em que Tomás participava ao pai o dia do seu casamento
com Malvina.

 

Essa carta, que em mil outras ocasiões lhe estivera debaixo dos olhos sem maior
comoção, desta vez não deixou de impressioná-lo.
Abriu a carta e leu-a. Era de redação humilde e afetuosa.
Veio à mente de Tibério Valença a visita que fizera à mulher de Tomás.

 

O quadro da vida modesta e pobre daquele jovem casal apresentou-se-lhe de novo aos
olhos. Comparou esse quadro mesquinho com o quadro esplêndido que apresentava a
casa dele, onde um jantar e um baile iam reunir amigos e parentes.
Depois viu a doce resignação da moça que vivia contente no meio da parcimônia, só
porque tinha o amor e a felicidade do marido. Esta resignação afigurou-se-lhe um
exemplo raro, tanto lhe parecia impossível sacrificar o gozo e o supérfluo às santas
afeições do coração.

 

Enfim o neto que lhe aparecia no horizonte, e para o qual Malvina já confeccionava o
enxoval, tomou mais viva e decisiva ainda a impressão de Tibério Valença.
Uma espécie de remorso fez-lhe doer a consciência. A nobre moça, a quem ele tratara
tão desabridamente, o filho, para quem ele fora um pai tão cruel, tinham cuidado com
verdadeiro carinho o mesmo homem de quem receberam a ofensa e o desagrado.
Tibério Valença refletia tudo isto passeando no gabinete. Dali ouvia o rumor dos fâmulos
que preparavam o lauto jantar. Enquanto ele e os seus amigos e parentes iam apreciar os
mais delicados manjares, que comeriam naquele dia Malvina e Tomás? Tibério Valença
estremeceu diante desta pergunta que lhe fazia a consciência. Aqueles dois filhos que ele
expelira tão desamorosamente e que com tanta generosidade lhe haviam pago não
tinham naquele dia nem a milésima parte do supérfluo da casa paterna. Mas esse pouco
que tivessem era, com certeza, comido em paz, na branda e doce alegria do lar
doméstico.

 

As idéias dolorosas que assaltaram o espírito de Tibério Valença fizeram com que ele
esquecesse inteiramente os convivas que se achavam nas salas.
Isto que se operava em Tibério Valença era uma nesga da natureza, ainda não tocada
pelos preconceitos, e bem assim o remorso de uma ação má que havia cometido.
Isto e mais a influência da felicidade de que atualmente era objeto Tibério Valença
produziram o melhor resultado. O pai de Tomás tomou uma resolução definitiva; mandou
aprontar o carro e saiu.
Foi direito à casa de Tomás.

 

Este sabia da grande festa que se preparava em casa do pai para celebrar a chegada de
Elisa e seu marido.
Assim que a entrada de Tibério Valença em casa de Tomás causou a este grande
expectação.
— Por aqui, meu pai?
— É verdade. Passei, entrei.
— Como está a mana?
— Está boa. Ainda não foste vê-la?
— Contava ir amanhã, que é dia livre.
— Ora, se eu lhes propusesse uma coisa...
— Ordene, meu pai.
Tibério Valença dirigiu-se a Malvina e tomou-lhe as mãos.
— Escute, disse ele. Vejo que há na sua alma grande nobreza, e se nem a riqueza, nem
os antepassados ilustram o seu nome, vejo que resgata estas faltas por outras virtudes.
Abrace-me como pai.
Tibério, Malvina e Tomás abraçaram-se em um só grupo.
— É preciso, acrescentou o pai, que vão hoje lá a casa. E já.
— Já? perguntou Malvina.
— Já.
Daí a meia hora apeavam os três à porta da casa de Tibério Valença.

 

O pai arrependido apresentava aos amigos e aos parentes, aqueles dois filhos que tão
cruelmente quisera excluir da comunhão da família.
Este ato de Tibério Valença veio a tempo de reparar o mal, e assegurar a paz futura dos
seus velhos anos. A conduta generosa e honrada de Tomás e de Malvina valeram esta
reparação.

 

Isto prova que a natureza pode comover a natureza, e que uma boa ação tem a faculdade
muitas vezes de destruir o preconceito e restabelecer a verdade do dever.
Não pareça improvável ou violenta esta mudança no espírito de Tibério. As circunstâncias
favoreceram essa mudança, para a qual o principal motivo foi a resignação de Malvina e
de Tomás.

 

Fibra paternal, mais desvencilhada, naquele dia, dos liames de uma consideração social
mal entendida, pôde palpitar livremente e mostrar em Tibério Valença um fundo melhor do
que as suas aparências cruéis. Tanto é verdade que, se a educação modifica a natureza,
a natureza pode em suas exigências mais absolutas readquirir os seus direitos e
manifestar a sua força.
Com a declaração de que foram sempre felizes os heróis deste conto deita-se-lhe um
ponto final.