Um encontrão

O tesouro arqueológico há de bater-me à porta dia e noite, e jamais negarei suas visitas!

Aprendi a viver com esse depositário de evocações a casos remotos. Entretanto, tendo lido Freud, vos recomendo, senhores: não deixeis ─ ele, o tesouro arqueológico ─ provocar conflitos do tipo: consciência versus superego! Traduzindo ao canônico: “não nos deixeis cair em tentação”!

No final de semana, fui agraciada com um convite para um interessante evento artístico, uma exposição no Espaço Cultural, eu, como uma boa amante da arte e da boa cultura, declarei: “esse evento vai ser daqueles que alimentam os espíritos mais cultos”.

Primeiro, houve uma homenagem póstuma a uma sumidade da música erudita: Pavarotti. Aquele requinte de mistura perfeita, orientada a lá orquestra sinfônica: Mozart, Beethoven, Camargo Guarnieri, Villa-Lobos, Coltrane, Chopin... Uma bela exaltação à música clássica. Em seguida, o espumante foi servido em meio a uma galeria, relíquias à amostra.

De súbito... O galardão surgiu-me mais à frente: um encontrão, um susto, um olhar e um beijo. A seguir um papo cordial:

“Nossa! Olha só quem tá por aqui... Quanto tempo, heim?”

As respostas foram dissimulações faciais de surpresa, e perguntas: “veio alimentar sua paixão pela música clássica, não?! (risos)... Você sumiu baby! Que houve?”

Ah! Adoro a arte do ser humano de ser fazer de idiota. Este seu cinismo... Ah... Esta sua escandalosa ironia socrática!

“Sim. Claro, claro. Música erudita nem preciso dizer mais nada, como você já sabe...”

Fingi não ouvir a outra pergunta, para não comentar sobre o meu sumiço. Ora, há muito que você também se exilou em terras desconhecidas. Conclui muito rápido que a sua intenção era que eu questionasse também seu desaparecimento. Não questionei: “Bem-aventurados os que, na hora certa, sabem o precioso valor do silêncio”, esse possível versículo, que acrescentei ao Evangelho, soprou à minha mente.

“Ah, Lú, você e seu gosto erudito! Bom, de fato a orquestra fez uma belíssima apresentação. Mas, você já deu uma olhada na galeria de quadros? Viu todas as obras-primas? Se não viu... recomendo que dê uma passadinha antes de ir embora. Adorei contemplar a obra de Gustave Courbet. Tive ótimas lembranças. Ah! Não vá embora sem vê-la. Depois você me diz o que “Moças à Margem do Sena” te fez lembrar, ok? Vou esperar sua resposta...”

Dei-lhe um sorriso tímido... Anuir com gesto de cabeça. E dei de ombros, fingindo observar o ambiente a minha volta.

A provocação proferida na referência a obra de Courbet ganhou sentido ambíguo, ficou em entre linhas. A despeito de que nossa intimidade me revelava a sua intenção dissimulada. Suspeitei de um plano malicioso, principalmente, porque a linguagem não-verbal, que se seguiu na nossa interlocução, foi deveras mais provocativa.

A despedida: faíscas nos seus olhos exibiam um olhar insinuador, o beijo demorado no rosto me pareceu uma proposta indecente, refletida em olhos claros... Que tchau fatalista!

O cara já saiu rindo, confirmei que fazia parte de uma trama... Desta sua insistência em tentar me despertar certos estímulos.

Pronto. Todo o meu tesouro arqueológico veio à tona! A exposição foi manipulada as suas palavras, através dos seus dedos mágicos. A minha visita a galeria, com todas aquelas obras-primas, metamorfoseou-se em lembranças.

Numa parte do acervo eu vi uma réplica do afresco “A Criação de Adão”, de Michelangelo. Os dedos dos deuses ─ intocáveis ─ me faziam lembrar do nosso aparte: a sua presença física é diretamente proporcional a esta sutil distância que lhe separa de mim. Dois corpos esculpidos que se repelem e tendem a se encontrar no infinito. Oh os dedos dos deuses nunca mais se tocarão!

A guerra representada por Picasso num de seus quadros mais famosos, por acaso, não lhe parece com nosso convívio, nossa dialética, nossa ex-vida íntima: meu peito contra o seu; suas pernas amarradas em minha cintura, minhas garras enroscadas em seus cabelos, sua respiração sufocada, romance bélico: “Guernica”?

“Primavera”, do estonteante Botticelli, moldou-se aos seus bailes, nossa dança particular. A análise da obra veio-me muito passional: aparecemos na imagem de duas das três “Graças” pintadas, minhas mãos ao encontro das suas, unidas; e, o cupido de olhos vendados, sobre a deusa Vênus ─ que mediava à cena ─ se adianta com sua flecha contra meu peito. Mas, o alvo não seria Hermes?! Cloris, assustada, tentou impedir o deslize do querubim, não obstante Zérfis a toma em seus braços, segurando-a. Essa, então, transforma-se numa figura florida; o que informa a chegada da primavera, assim, a flecha já percorreu seu percurso. Cravou-se no meu peito. Nem a terceira das “Graças”, tão próxima de nossa presença, não impediu o desvio. O velho caso de Hamlet: acidente de percurso ou tragédia grega? “Eis a questão”, digamos. E tudo isso se passou muito rápido dentro da minha imaginação, não mais do que um minuto.

Desenhei uma rosa num papel avermelhado, simbolizando o raríssimo vinho orgânico, que você derramou: o transbordar da minha inocência. Dou-lhe essa rosa de papel, aceita?!

No quadro “O Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosh, vi o limbo espiritual em que estive, quando me entreguei ao seu mundo: o paraíso terreno de um lado e o inferno de outro. A passagem de um para outro: dois curtos passos. Porque com você a vida sempre foi a festa de comemoração ao deus Baco. Sua voz me corroia o pensamento, e o seu calor insinuava-se nos meus lábios. Tínhamos um relacionamento culto-afetivo muito intenso, cenas de “Eclipse de uma Paixão” passavam sobre nossas vidas. Ó poesia extremada: a afeição íntima entre Verlaine e Rimbaud! Semelhante a essa poesia, foi nossa intimidade: sufocamos-nos e nos apartamos. “Mui cruel”, diriam. Tudo muito efêmero.

Desfiz o triângulo estabelecido. Rumei a outro mundo. Estou muito longe da sua ponte. Muito embora, você não exerça mais aquele magnetismo sobre a minha pessoa, o seu charme espetacular continua muito vivo. As suas provocações e sua tentativa de ser indiferente me levam a crer que para você a vida será sempre um palco. Mas, quem sabe um dia você conheça a mulher que me tornei. Oh eu também sei arranhar!

“Mona Lisa”, do grandioso Da Vinci, com seu jeito esquisitão, assim misteriosa... Deu-me um risinho sarcástico, o que me fez lembrar seu sorriso sem vergonha.

Chego, enfim, ao cume da exposição: “Moças à Margem do Sena” bem a minha frente.

Um relance de olhar: a paisagem florida ao tênue solar de um verão dá uma harmonia graciosa as moçoilas, pareceu-me um eufemismo em relação à idéia do que o observador mais conservador possa imaginar, é ─ de qualquer maneira ─ um piquenique de criaturas angelicais ...

Um olhar compenetrado: a mão de uma das moças, que tinha perfil de francesa, encostada na face. Uma expressão de tranqüilidade, de quem está em paz com deuses e damas... Outra dorme em sono profundo, revelando satisfação.

A análise final: grande obra-prima! Concordo, mas a mim não estimula os instintos. Seu plano de me arrancar devaneios ─ através da visão de uma obra realista ─ não surtiu efeito, simplesmente, porque aquelas minhas antigas vontades chegaram ao seu dia de cinzas. (ao passo que sei reconhecer o espaço generoso que você ganhou dentro do baú guardião do meu tesouro arqueológico. Obrigada por pertencer a minha “pré-história!”).

Recordar não dói, muito menos se a lembrança for agradável: o menos mau é a saudade. Agora, ninguém se distancie da felicidade presente, a partir daí uma gota de veneno amargará sua vida. Não há importância; para o tempo, no segundo que se foi, mas sim, no segundo que se vem e no que se passa agora mesmo. Estes são viçosos, magníficos, supõem trazer a esperança; não obstante aquele é, por vezes, imutável.

Quem vive sabe o quanto é necessário aprender com pretérito. No entanto, sabemos que “o amor não se conjuga no passado: ou se ama para sempre, ou nunca se amou de verdade”. É preciso transformar, a fim de não morrer dentro de si mesmo. E aquele que não se estabelece, sai de cima. O que fazemos na vida perdura a eternidade. Você viverá dentro de mim, como diz o poeta: “na perpétua saudade de um minuto”.

Não há dúvidas: minha rosa de papel (assim como todas) não exalará perfume, e nem transmitirá algum sentimento, murchará antes mesmo de desabrochar. É o fim!

Se por sina eu me esbarrar com você; novamente, em outro encontro fortuito, Buarque que me perdoe o trocadilho, mas eu hei dar-lhe a resposta: “Pai, afasta de mim esse CA-LE-SE (que não quer calar... e também não calo!)... De vinho tinto de sangue”.

Tenho uma rosa de papel a lhe dar, aceita?

Luana Zenaide
Enviado por Luana Zenaide em 30/01/2024
Código do texto: T7988199
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