O porta-retratos

Ouvi por alto uma frase que, de onde eu estava, ecoava bem distante “Você pode levar a melhor” aparentemente a frase foi dada com tanta ênfase, que até em mim, pôs expectativas e a quem estava marcando os números de “arroba” vinte, trinta, quarenta,… Um bingo clássico, pós missa, beneficente. Nesse interiorzinho, o cenário é simples, como as pessoas, luzes extremamente laranjas em torno da capela, bancos de madeiras pintados de marrom escuro e brilhante por causa do verniz. Eram preenchidas por crianças e idosos que mal enxergavam,provavelmente já passaram batido, portanto, não ganhariam aquele bode. Em frente à capela, uma mesinha que continha o jogo de bingo, o locutor e meu velho pai conferindo os números.

E eu tinha o João.

E eu sabia que depois daquele bingo, ele ia roubar um beijo meu depois que aquelas luzinhas se apagassem, não iria roubar não, porque eu também estava querendo aquele beijo.

''Marta, presta atenção, tu quer passar batido, é?!'' - Diz ele debochado.

''Oxe, mas eu to prestando atenção- falei olhando para João, enquanto ele está vidrado no pequeno papel quadrado, e complementei- Aliás… eu presto atenção em tudo, tudo mesmo.''

Ele não respondeu, mas me olhou de soslaio. Eu voltei a falar, só que desta vez, eu estava prestando atenção no meu papel quadrado.

''Sabe… quando eu ficar mais velha, não quero esquecer de nada, nada mesmo! Quero me lembrar de tudo que me faz sentir viva… ao menos os belos cenários que gosto de contemplar.''

"Você é tão audaciosa que não duvido se lembre de tudo que quiser quando for mais velha.''

Eu ri por um momento, mas logo continuei.

''Eu não sou audaciosa Jão. Aliás, a audácia pode se perder depois de um tempo, sabia?''

''A memória também, Marta. ''

''Não seja ridículo.''

''Não sou, agora pare de olhar para meu bingo e volte a se concentrar no seu, está quase terminando. ''

''Eu não quero esse bode mesmo!''

Eu realmente não queria, só estava interessada no que viria depois daquele bingo. Então fiquei calada até o final. Minutos depois, alguém ganhou o bingo e saiu arrastando o bode numa felicidade só. Eu queria guardar aquilo na memória também. Como esperado, as luzes estavam sendo apagadas, estava esperando muito para isso, apesar de ter acontecido outras vezes. As pessoas estavam se recolhendo para suas moradias, não muito da capela, porém, perto o suficiente para meu velho se distrair antes de irmos para a nossa casa. Como outras vezes, iria distraí-lo fingindo que estava distraída conversando com o João e ele iria indo na frente conversando com os outros, sempre deu certo.

Eu realmente estava distraída.

''Marta, lembra que ano passado meu pai nos fotografou em uma dos bancos da capela? ''- disse ele, entretanto, eu permanecia distraída com a luz do luar que parecia pairar como o ar entre nós.

''Lembra? -Repetiu ele. ''

"Ah sim, sim. Por onde estão essas fotografias dele hein?"

'Bom… ele me prometeu revelá-la, mas eu quero que você fique com a foto.'

''Eu adoraria ter uma foto nossa, para poder contemplá-la quando você não estiver comigo.- Eu senti ele se aproximar. A hora que espero todo fim de mês chegou. Então completei baixinho - Vou pôr em um porta-retratos bem bonito.''

“Vamos, Marta. Já está ficando tarde” Ouvi por alto uma frase que, de onde eu estava, ecoava bem distante era o meu pai . Larguei o porta-retratos, com os olhos cheios de lágrimas, queria poder dizer-lhe, João: “Talvez as memórias podem tornar-se apenas um apagão com o passar do tempo. Aliás estou indo para a missa, como fazíamos, dessa vez eu vou observar o cenário e não esperar para lembrá-la”.E voltei para a capela com a infeliz certeza de que ele não estaria lá.

Rayssa styles
Enviado por Rayssa styles em 02/02/2024
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