DAS PERTINÊNCIAS QUE DERAM RAZÃO A MINH'ALMA

Era a razão de minh’alma aquele campo imenso e a casa grande onde semeei meus sonhos e falquejei minha vida nos exemplos de meu pai, no amor de minha mãe, no companheirismo de meu irmão e nas lições de minha avó. A simplicidade do ambiente emoldurava riquezas que a natureza nos deu: um tapete de “adálias” e margaridas, um salso-chorão (que eu nunca vi triste), uma cerca viva, figueira, uva do Japão, hortênsias e um pinheirito robusto que eu mesmo plantei, selecionando a semente, o local e o momento. Que fortuna a gente tinha e como se não bastasse para sermos felizes Deus nos deu um gato preto.

Lembro num canto da casa o fogão a lenha onde se “ponhava” fogo. Nas proteções de ferro as cascas de laranja para o chá ou arroz de leite secavam esturricadas e enquanto a água fervia a mãe fazia “bonecros” de massa de pão com braços, pernas e os olhos “estralados” com grãozinhos de feijão. E a canjica cozinhava e o pinhão estralava sobre a chapa do fogão. Eram indícios de fartura que brotavam irrigados pela força do trabalho e do suor de meu pai.

Na horta alguns canteiros, quando as galinhas deixavam, faziam surgir da terra os mistérios da criação. Tinha couve, espinafre, salsinha, alface e outras coisinhas mais que nos ajudavam a crescer sadios e fortes, mas confesso (que a mãe não escute), eram ruins e tão amargas que nem mesmo o meu gato comia.

Nos dias fortes de inverno, (não do espírito, mas do tempo) eu botava minhas botas, a bombachinha, uma touca, a minha capa campeira e me bandeava para o colégio. Muita neve eu enfrentei e nos rigores da Serra, pelo frio que eu sentia, me moldei valente e rijo.

Nas primaveras latentes tinha cavalos de lida onde com a ajuda da taipa velha, de pedras, aprendi a montar e assim a enxergar de longe as belezas das coxilhas e vertentes, das flores e rebanhos de ovelha. Mas não pensem os senhores que tudo era alegria, as vezes eu e o mano éramos recrutados para defesa do rincão e, com lanças de “eucalito” e espadas de guamirim defendíamos nossos domínios contra o ataque fulminante dos malevas em forma de girassóis.

Era a razão de minh’alma. Os brinquedos ainda me lembro, a gente mesmo fazia, outras vezes arquitetava esperando a folga do pai. Tinha mangueira de cascotes, bretes de taquara, faitos de caixas de fósforo puxados por cascudos, cavalitos de sabugo e tropas de osso. O pião, que coisa linda, com minha avó numa tarde aprendi a modelar. Sentada à beira da cama de mantilha no pescoço, falquejava um rude toco com a mesma magnitude de um inventor a criar e eu ajoelhado a seu lado, com os olhos quase parados ficava a observar.

Aos domingos a gente ia à missa. Capelinha de madeira, de uma torre e uma cruz e aqueles bancos compridos, tão cheios que a maioria dos fiéis ficavam de pé, mas todo mundo rezava e agradecia a Deus pela vida, o trabalho, a saúde e a comida. A gente tinha respeito pelas coisas tão sagradas.

Tudo era simples como simples era a vida. Nas noites de Natal preparávamos tudo. A mãe fazia quitutes, bolo e até salgadinhos e antes da meia noite saíamos em caminhada em direção a um cipreste iluminado com luzes coloridas onde esperávamos a hora chegar e meditávamos pedindo paz ao mundo e igualdade a seus habitantes. O pai sempre ficava para trás e quando nos encontrava anunciava que tinha falado com o Papai Noel e ele tinha deixado sob nosso pinheirinho presentes e conselhos. A gente se abraçava com ternura e ia jantar seguindo em festa até o sono chegar (pro gato preto sempre chegava primeiro). Os presentes ficavam no pinheirinho para receberem as bênçãos de Natal. A vida era simples como simples era tudo.

Um dia o tempo largou-se em carreira e tudo mudou. Eu me fiz “mais grande” e o mundo que eu tinha deixou de existir talvez sufocado pelos compromissos e atitudes que a vida hoje me faz invadir e eu descobri penosamente que existe um mundo bem maior do que aquele onde eu vivia com meus pais, minha avó, meu irmão e meus sonhos (existem problemas muito maiores do que os protagonizados pelos girassóis).

Foi-se a razão de minh’alma deixando lacunas que só a saudade atreveu-se a preencher. Nas noites frias de inverno (não do tempo, mas do espírito) eu relembro minha infância, minha vida e meu mundinho enquanto os olhos apojam lágrimas de um saudosismo cruel.

Por que será que o homem sofre tanto deste jeito sentindo-se insatisfeito com os percursos da vida? Depois que passa o tempo sente-se sem alegria e o viver, o dia-a-dia lhe mostram outro matiz e, lembrando sua gente descobre assim, num repente, que era muito feliz.

Enxergo meu pai chegando cansado, mas sempre contente; a mãe fazendo bolachas e o mano tomando café com o gato preto no colo. Então, a alegria se torna presente e além das lembranças eu constato que muita riqueza me restou: as minhas raízes, as minha origem, minha educação e o amor eterno e fraterno que minha família plantou em meu peito, em minha razão, pra eu encontrar na essência a maior explicação.

A vida muda a nossa querência, mas jamais muda nosso coração.