UMA SIMPLES CERTEZA

Uma barba incipiente cobria-lhe o rosto, talvez uma tentativa de esconder as espinhas que teimavam em querer aparecer. Magro e tímido tinha dificuldades em olhar de frente as pessoas. Quando conversava com alguém que não fosse conhecido sempre dava um jeito de desviar discretamente o olhar.

Alto e magro perdeu a conta de quantas vezes se imaginava ganhando uns poucos quilos a mais. Estava quase sempre vestindo uma calça jeans surrada e camisas de meia que quase sempre ficavam folgadas em seu corpo esquálido.

Contava dezoito anos e dentro de poucos meses faria vestibular para medicina. Seu cotidiano consistia em ir para o cursinho pré-vestibular e estudar. Todos os dias eram a mesma coisa: aulas, textos, baterias e mais baterias de exercícios. Não havia fim-de-semana livre para fazer outra coisa que não fosse estudar.

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Todos os dias pegava o mesmo ônibus. Como morava no subúrbio e estudava no centro da cidade o percurso era longo, consistindo em uma hora mais ou menos de viagem. Esse era um dos poucos momentos em que relaxava a mente e, às vezes, aproveitava para dormir.

Algumas vezes ficava olhando as pessoas que seguiam no mesmo ônibus. Para passar o tempo ele gostava de criar mentalmente historinhas para elas. Certa vez criou um roteiro para um senhor de meia idade que consistia em imaginá-lo como um mago dotado de superpoderes e que controlava com mãos de ferro o povo de um reinado distante. De outra feita imaginou que uma senhora gordinha era uma extraterrestre disfarçada que espionava os humanos.

Em uma dessas viagens seus olhos depararam-se com uma moça que talvez fosse um ou dois anos mais jovem que ele. Nunca a havia visto pegar aquele ônibus. Observou-a mais atentamente. Cabelos castanhos cacheados, altura mediana, pele um tanto quanto pálida. Reparou que ela usava a farda de algum colégio particular. Achou-a bonita. Ela carregava uma mochila jeans com um girassol bordado. Ele encantou-se com o jeito que os cabelos dela ficavam quando o vento batia neles.

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Passou a procurá-la com os olhos todos os dias. Ficava ansioso quando ia aproximando-se da parada onde sabia que ela pegaria o coletivo. Passava a viagem procurando-a com os olhos. Certa vez acordou tarde e pegou o ônibus atrasado e não a viu. Ficou sentindo-se triste o resto do dia.

Quando ia dormir ficava pensando nela, imaginando quais eram as coisas que a menina do ônibus gostava. Qual seria o nome dela? Ela tinha cara de quem possuía um nome como Aline, Larissa ou Ana Carolina. Ou seria algo como Maria Luiza, Renata ou Fernanda? Que músicas ela escutava? Será que gostava de chocolate? Ela não era como ele que não podia comer por causa das espinhas, então ela gostava ... esses e outros pensamentos todas as noites faziam-lhe companhia.

Certa vez aconteceu algo que o deixaria maravilhado por um bom tempo. Estava em mais uma de suas viagens, só que dessa vez em pé, pois o ônibus estava razoavelmente cheio, quando eis que surge, e fica ao seu lado, a menina bonita com a sua farda de colégio particular e a mochila jeans. Sentiu sua respiração ficar entrecortada e seu coração pareceu querer dar uma leve acelerada.

Os movimentos e sacolejos do ônibus algumas vezes faziam com que ele ficasse mais próximo dela. Chegou a sentir o cheiro do perfume discreto que ela usava e isso foi uma sensação que ele guardaria por muito tempo. O que mais marcaria para ele naquela manhã maravilhosa foi quando sua mão ficou roçando a dela quando ambos passaram a se segurar em um dos ferros que compunham o encosto de uma poltrona. Sentiu sua pele macia e delicada, observou que tinha mãos pequenas e bem-feitas. O encantamento com aquele pequeno momento fez seu coração sentir uma coisa inominável, algo que jamais havia experimentado em seus poucos anos de existência.

Naquela noite roteirizou uma história absurda em que uma bomba termonuclear explodia a cidade toda e ele se protegia entrando em um abrigo. Quem ele encontrava lá? A menina dos cabelos castanhos ...ambos agora iriam lutar juntos para sobreviverem em um ambiente hostil. Pensando nisso ele adormeceu.

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Certa manhã o ônibus chegou no ponto em que a menina da mochila jeans costumava subir. Ela não entrou. Uma viagem solitária dessa vez. Um gosto de frustração ficou no rosto do rapaz de dezoito anos. Outra manhã e novamente ela não sobe. Uma semana completou-se sem a presença daquela que era a personificação da maravilha para os seus sentidos.

Os dias, as semanas e os meses passaram e a menina da mochila jeans nunca mais entrou naquele ônibus.

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As páginas do tempo foram sendo viradas em seu padrão eterno e o rapaz, que todos os dias pegava sempre o mesmo ônibus, concluiu duas residências profissionais: Clínica médica e Medicina intensiva.

Ele já não era tão tímido e a vida havia-lhe deixado marcas indeléveis em sua existência. Paixões, amores feitos e desfeitos, avanços e retrocessos, coisas construídas e destruídas. Agora ele era um adulto.

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O médico que chefiava o serviço de UTI daquele grande hospital estava escrevendo no computador a admissão de um novo paciente quando foi interrompido por uma colega intensivista.

- Doutor Marcelo esta é a nova fisioterapeuta que irá compor nossa equipe de UTI.

Demorou menos de um segundo para o rapaz que gostava de criar historinhas reconhecê-la. Um discreto sorriso invadiu seu semblante, talvez atravessado pela simples certeza que ali a sua frente estava a garota da mochila jeans.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 08/05/2024
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