Schützen Deutschtum e a cláusula secreta de Joinville

Capítulo 1

6 Horas da manhã. O Relógio desperta e Carlo senta em sua cama. Ainda se sente um pouco cansado da palestra na noite anterior, proferida por seu amigo Sidnei. “Os homens do passado definem o futuro” pensou ele, relembrando o tema da palestra.

Como jornalista novato em Joinville, claro que Carlo gostava de aumentar seu conhecimento sobre a história da cidade que o acolheu. Uma empresa de comunicações da capital do estado havia comprado o jornal da cidade, e Carlo havia recentemente se transferido de Florianópolis para Joinville, ou “a maior cidade do estado” como ele era constantemente lembrado.

Tomando seu desjejum, Carlo ficou pensando em como alguns joinvilenses era ciumentos da condição de Florianópolis como capital. Ele mesmo já sentira na pele algumas provocações. Ligou a TV e no noticiário matinal vira que o Avaí, time de futebol da capital, perdera sua partida. O Figueirense (outro time de futebol de Florianópolis), porém, vencera e isso era bom, porque o Joinville Esporte Clube havia vencido sua partida e os “aborígenes” (como Carlo chamava os joinvilenses nascidos na cidade) não perderiam tempo em perguntar “o que aconteceu com aqueles times da capital?”.

Seguindo sua rotina matutina, Carlo foi para a academia e depois se dirigiu ao seu trabalho, no jornal. Achava engraçado todas aquelas espécies de aves designando os nomes das ruas do início de seu percurso. Chegou a perguntar a Sidnei se Joinville carecia de pessoas importantes na história, que pudessem emprestar o nome às ruas. Sidnei, joinvilense nato (ou “aborígene”), não se ofendia, e se divertia com as observações do colega. Sidnei era professor de história e tinha paixão pelo assunto, de forma que se Carlo permanecesse para ouvir sua resposta, ouviria uma longa narrativa de personagens dos primórdios da cidade.

Carlo saía todo dia da sua residência na Rua Jaó, pegava a Rua Águia e entrava na Rua Inambu. Virava à direita na Rua Codornas e, depois dos pássaros, entrava na confusa e segmentada rua que era a Almirante Jaceguay, mas se tornava Rua Guilherme.

Naquela manhã, Carlo tinha um importante compromisso: cobrir a visita de Hans Ingo Volcker, cônsul da Alemanha em Porto Alegre. O consulado Geral de Porto Alegre tem jurisdição no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Em Santa Catarina, subordinados ao consulado de Porto Alegre, há dois cônsules honorários, um em Blumenau e outro em Joinville. Ocorreu, porém, que o cônsul de Joinville, por motivos de saúde, solicitou sua exoneração do cargo. E o cargo de Cônsul honorário passou a ser avidamente desejado por duas ilustres figuras do cenário municipal. Então, o Ministério das Relações Exteriores da República Federal da Alemanha através da Embaixada em Brasília solicitou que o Cônsul em Porto Alegre viesse em pessoa conhecer os candidatos à Cônsul Honorário e dar seu parecer sobre eles.

8h30m da manhã: Depois de passar no jornal, Carlo chegou ao Blue Tree Hotel.

“Bom Dia, não lhe avisaram, Senhor?” - Disse a atendente, por trás de um balcão, ao ver o rosto conhecido do jornalista. Carlo não apreciou o aviso e pressentiu que o evento havia sido adiado.

“Bom Dia, não me disseram nada. O que deveriam ter-me avisado?”

“O encontro do Cônsul foi transferido para o Tannenhof. Pediram-me para informar a quem interessar possa que o horário fora mantido”

“Faz sentido. Um hotel ao estilo germânico. Obrigado, ainda bem que cheguei cedo”

Carlo deu um sorriso à atendente, educadamente correspondido, e depois se dirigiu ao outro Hotel. “Estilo e tradição, bem condizente com o encontro de alemães”, pensou Carlo, lembrando do lema do hotel para onde se dirigia. “Ainda bem que estou adiantado”. Carlo ainda não sabia, mas naquele evento, um pedido incomum lhe seria feito.

Capítulo 2

Wagner Reiss estava um pouco descontente com o rumo dos eventos. Ele, de origem germânica, de família tradicional na cidade e amante da pátria de seus antepassados, ansiava o cargo de cônsul honorário da Alemanha em Joinville. Porém, seu rival na disputa ao cargo parecia estar com certas vantagens: Poder econômico maior, amizades mais influentes e até mesmo apoio do Cônsul-Geral do Rio de Janeiro.

Wagner já estava um tanto conformado com a nomeação de seu rival para o posto, mas de qualquer forma o compromisso estava marcado, e ele não desejava ser indelicado.

Wagner se vestiu impecavelmente e, dirigindo seu Pajero, tomou a Rua XV de Novembro, em direção ao centro da cidade. Wagner vez por outra imaginava as pessoas abrindo aquela picada. A diferença entre ruas abertas aos poucos, a facão e ruas planejadas era que, no primeiro caso, as ruas estavam cheias de curvas; algumas até mesmo perigosas para os meios de transporte atuais. Wagner dedicava algum interesse à história da cidade, mas como empresário, pouco tempo lhe sobrava para hobbies.

O rádio estava na freqüência de certo jornalista que estava mencionando justamente essa reunião prestes a ocorrer. O jornalista insistia nas suas divagações e seus comentários chegaram a respingar no nazismo. Não que ele associasse os descendentes de alemães ou à própria Alemanha atual ao antigo regime, mas sua prosa chegou a mencionar o desejo de alguns teuto-brasileiros, décadas atrás, de ver uma porção do Brasil fazer parte do III Reich de Hitler.

Wagner conhecia um pouco dessa história. Seus pais relatavam detalhes de como lhes foi difícil o período da segunda Grande Guerra. Enquanto dirigia, lembrou com tristeza de que sua mãe contava-lhe um ocorrido em que uma piada foi contada na privacidade do lar de um vizinho. Quando a piada foi contada na língua portuguesa não teve impacto. Mas depois a mesma foi contada em seu formato original, no idioma alemão e muitos presentes passaram a rir muito, e outros só então entenderam o espírito da brincadeira. A língua alemã, porém estava proibida e, passando por ali um guarda, ouviu a conversa no “odiado” idioma. Pessoas foram detidas e o simples bate-papo entre vizinhos e amigos que ocorria num belo entardecer, sem nenhuma intenção dos envolvidos em cometer delitos contra as leis do país, virou um caso de polícia.

Wagner emergiu de seus pensamentos e voltou ao mundo atual. Já estava na esquina da Rua XV de Novembro com a Rua Blumenau, esperando o semáforo abrir. Olhando para a luz verde do semáforo de quem seguia pela Rua Blumenau, que insistentemente não queria ceder lugar à luz amarela, Wagner teve um lampejo: Alemanha, Brasil, separação... Uma história antiga de seu avô voltou à tona. Algo que ele jurava ter sido verdade, mas que Wagner nunca dera muita atenção, agora entrou em sua mente atropelando seus pensamentos tal qual um caminhão carregado e sem freios. O sobrenome Haltenhof talvez tivesse vínculos com muita verdade ocultada de todos. Ou talvez tivesse apenas sido associada a divagações de idosos desvairados como seu avô! Não... seu avô era homem lúcido e dado a falar sobre coisas que tinha certeza... Para levantar isso tudo valia a pena uma investigação!

Capítulo 3

Erwin Paulo Haltenhof, empresário bem-sucedido, deu um sorriso cortês ao avistar Wagner Reiss adentrar no salão Bayern, uma sala de eventos do Hotel Tannenhof de 213 metros quadrados. O Auditório montado ali, com lugar para 250 pessoas, estava aos poucos sendo preenchido. Alguns teuto-brasileiros se deliciam com tudo o que remete à Alemanha, e os nomes dos salões para eventos do Tannenhof eram adequados a esta predileção: Bayern, Hamburg e Frankfurt.

Ao avistar seu rival sorrindo, Reiss respondeu a cortesia e ambos deram um aperto de mãos. O Cônsul Volcker, próximo a cena, fingiu estar olhando para outro lado, mas testemunhou o cavalheirismo de ambos (forçado ou natural?). Aos seus olhos, pelo menos nesse quesito, ambos empatav+am.

Em seguida, Carlo entrou no salão Bayern. Na entrada, pegou um panfleto com a programação da manhã: O próprio Volcker falaria sobre o governo alemão e os relacionamentos teuto-brasileiros. Depois, Reiss falaria sobre quem tem direito e como solicitar a cidadania Alemã. Em seguida, para a surpresa de Carlo, seu amigo Sidnei falaria sobre a imigração alemã no sul do país e em Joinville. Outras breves palestras se seguiriam: Haltenhof falaria sobre a prosperidade de Joinville, Volcker voltaria para falar de algo mais e, enfim, o espaço seria aberto a perguntas de jornalistas. “Perguntar o que?” pensou Carlo.

Enquanto pensava em como escreveria tal matéria para o jornal, uma mão puxou de leve seu ombro. Carlo virou-se e viu que seu amigo Sidnei havia chegado. Os assentos no salão já estavam quase todos tomados.

“Você nunca teve tempo para ouvir uma palestra minha antes, mas agora encontrou tempo para ouvir uma a cada dia?”

“Sidnei, você sabe que sempre quis ouvi-lo, mas a história das classes trabalhadoras no Brasil é um assunto muito chato. A história jurídico-social do Brasil no século XX é outro assunto entediante. Só agora você falou sobre a história de sua cidade... algo chato também, mas mais útil para mim”

“Pensei que jornalistas se interessassem por tudo”

“Temos que dar atenção a tudo que vira notícia. Mas nem tudo o que vira notícia é de meu interesse pessoal. Além disso... ”

Carlo fora interrompido por uma voz ao microfone. O evento iria começar.

Assim a manhã foi se esvaindo. Alemanha isso, Brasil aquilo, Imigrante mais aquilo... Mas algo intrigou Carlo. Wagner, de tempo em tempo, olhava para ele. Após sua própria participação, Wagner, ou o “senhor Reiss” como era costumeiramente chamado, parecia perdido em alguns pensamentos.

A manhã escoou-se um pouco mais, e logo Volcker abria espaço para os repórteres. Um perguntou sobre a possibilidade de a Alemanha, sede da copa do Mundo de 2006, ajudar o Brasil a sediar a sua. Outro perguntou sobre as relações bi-laterais dos países e alguém mais perguntou algo que Carlo nem quis escutar. Então, quando apontado após erguer sua mão, ele perguntou:

“Sr. Volcker, se dependesse do senhor, quem assumiria o cargo de cônsul honorário, O Sr. Reiss ou o Sr. Haltenhof?”

Volcker ficou visivelmente incomodado com a pergunta. Começou a responder com um demorado “éééééé...” e depois continuou:

“Ambos os cavalheiros são aptos a tomar posse da função. Herr Haltenhof, bem como Herr Reiss são homens competentes e compromissados com nossa linha de pensamento e história. Como podem imaginar, a decisão não compete a mim.”

Carlo sabia que Volcker daria em público uma resposta evasiva, mas ele gostava de perguntar justamente o que colocava seus interrogados contra a parede. Às vezes, sutilmente uma opinião fazia-se transparecer em meio a tentativa de ser vago. Por exemplo, Volcker, ao mencionar o Sr. Haltenhof, procurou-o no salão e o apontou com o braço, mas quanto ao Sr. Wagner Reiss, foi simplesmente citado. Outra vez, curiosamente, Reiss fitou Carlo demoradamente.

Capítulo 4

Terminada a sessão da imprensa, Volcker pediu que os repórteres dessem licença a ele e aos Senhores Haltenhof e Reiss. Os dois e alguns assessores foram convidados a entrar no salão Frankfurt, um salão menor que ficava ao lado. Antes de Wagner Reiss sair do salão Bayern, porém, aproximou-se de Carlo e disse-lhe:

“Preciso pedir-lhe que faça algo. Na verdade, quero contratá-lo para investigar um assunto”

Carlo ficou um pouco perplexo com o pedido. “Investigar? O que precisaria ser investigado? Haltenhof?”

“Carlo, conheço suas matérias e leio com atenção suas reportagens. Você descobre muito sobre coisas que nem deveria saber que ocorreram. Como você faz não me interessa, mas o importante é que você consegue fazer”

“O segredo é simples: Usar a pessoa certa para tarefa certa. Se sinto cheiro de sonegação, conheço bons contabilistas, se houve assassinato, tenho um contato na Delegacia de Polícia e por aí vai. Confesso que estou curioso Sr. Reiss, o que precisa ser investigado?”

Wagner parou por instante, como quem analisa uma última vez os passos que está dando, e falou:

“Carlo, Haltenhof vem de uma família antiga e tradicional de Joinville. Conheço-o bem, e não sei de nada que possa desmerecê-lo para o cargo que desejamos.”

“Desculpe-me senhor. Acho que falou com o cara errado. Quer que eu vire a vida de alguém de cabeça para baixo só para ver se há algo de errado?”

“Não, não é isso. Deixe-me falar. Há rumores, hoje esquecidos, de que lideranças de origem germânica em Joinville desejaram por muito tempo separar-se do Brasil e unir-se politicamente à pátria-mãe ultramarina. Não pense que falo do desejo de um ou outro louco... alguém que não oferecia perigo à integridade do território nacional. Carlo, estou falando de uma organização com certo poder na comunidade local. Uma organização com fins nocivos aos interesses brasileiros. Alguns homens duas gerações antes da sua ainda falavam nessa organização. Não adianta sair perguntando a qualquer um, porque obviamente esse era um assunto que só alguns entre as elites conheciam.

Pois bem. Segundo uma fonte, a família Haltenhof esteve fortemente envolvida nessa organização, por gerações. Vê onde quero chegar? Imagine a notícia: ‘Membro de família separatista assume posto de Cônsul’. Daria um bom furo de reportagem, não acha? ”

“Certamente, uma reportagem de sucesso, não é seu objetivo final!”

“Claro que não! Mas seria bom para você, não seria? Porém, seria bom para mim também. Não quero que nenhuma mentira venha a me beneficiar, mas a verdade é sempre a verdade. Ninguém tem culpa dela existir. E... Carlo... como o resultado pode me beneficiar, caso realmente exista um elo entre os Haltenhof e essa organização separatista, lhe ofereço uma boa soma em dinheiro.”

Wagner escreveu num papel o valor que estava disposto a pagar e Carlo primeiro arqueou as sobrancelhas em sinal de espanto e depois fez uma carranca, sentindo-se como se estivesse sendo subornado. Wagner percebeu no ar os pensamentos do outro e arrematou:

“Não me ofenda! Não estou te pedindo nenhum favor por baixo dos panos. Você fará um trabalho sério e legal. E será pago por ele.”

Carlo pensou mais um pouco. O valor era bom. O assunto era singular e valia a pena uma investigação por si só. E ele conhecia “a pessoa certa para trabalho certo”.

“Senhor Reiss, o senhor nos acompanha?”

Perguntou uma assistente do Sr. Volcker.

Wagner percebeu que entre os convidados para o salão Frankfurt, somente ele ainda não havia se dirigido ao local. Wagner tornou a olhar para Carlo. Olhou para a moça e tornou a olhar para Carlo. Suspirou e deu três passos em direção à saída do salão Bayern quando ouviu Carlo se expressar:

“Negócio fechado. Por você e por mim!”

Wagner se reanimou. Começou a apostar no seu avô e esqueceu-se de que ele mesmo tinha alguma dúvida sobre aquela história. A mente humana é poderosa quando quer acreditar. Alguns acreditam na própria mentira. Mas seria inverdade o que o avô de Wagner lhe contara? Carlo teria que descobrir. Mentira ou verdade, o rumor existia... E não fora Wagner Reiss quem o criara! Mas que ele poderia usá-lo a seu favor... Ah! Isso poderia.

Capítulo 5

Mauro estava “tocando a vida”. Tinha uma revenda de automóveis na Rua Iririú, mas os negócios estavam muito ruins desde que o governo reduziu impostos sobre carros novos.

“Então colega, nesse teu carro aí dá pra dar uns doze contos”

O cliente olhou com descrédito. Estava tentando vender seu carro usado por este valor nos classificados e não teve sucesso. Agora uma revenda estava lhe oferecendo os mesmos doze mil reais. Mauro e seu cliente estavam numa conversa animada, seu cliente observava as opções de carros usados oferecidas por Mauro e parou num vectra. “Leva essa tranqueira, rapaz” pensava Mauro. Ele sabia que além de ganhar dinheiro em cima desse negócio, ficar com um carro popular e retirar da loja um carro mais difícil de vender, proporcionaria mais liquidez.

Mauro ia propagandear melhor o Vectra a ser vendido quando seu celular tocou. “Mas que droga Carlo, sempre ligando em hora ruim”.

“Alô. Claro que sou eu, você ligou para o meu celular... Quando?....Tá maluco Carlo!... Cara, eu não eu não ganho como jornalista para poder perder uma tarde de trabalho!... Que rua? Itaiópolis? É a rua que sai da João Colin, na altura da Koehntopp (revenda de automóveis Chevrolet). Você está indo pra lá?... Então, assim que terminar um assunto aqui eu e o Mano vamos ali no SESC... como o que é que tem? Esqueceu que o SESC é na esquina da Rua Itaiópolis com a Avenida?... Daí que se você estiver por ali, me procura.”

Carlo e Mauro eram bons amigos. Na verdade, Mauro já era amigo de Sidnei, quando foi apresentado por este a Carlo. Os três e o irmão de Sidnei, Oliver, apelidado de Mano, formavam um quarteto que se reunia com muita freqüência. Oliver trabalhava com Mauro na revenda e os dois eram chamados de unha e carne.

Mauro era, além de amigo, uma espécie de GPS humano de Carlo. Sempre que o “forasteiro” se perdia no trânsito ou não conhecia uma rua, Mauro era acionado. Entregar pizzas em cima de uma moto quando era rapaz foi um trabalho de alguns desafios, mas lhe deu uma vantagem: Ele conhecia como poucos as ruas da cidade.

Carlo lhe devia uma parcela do Volkswagen Polo Semi-novo que havia comprado de Mauro, e este pretendia cobrar do amigo, já que estariam tão próximos naquela manhã. Por isso Mauro disse no fim da conversa telefônica: “... Daí que se você estiver por ali, me procura.” O encontro entre os quatro amigos em plena manhã de dia útil deveria ser rápido, mas Mauro e Oliver levariam mais tempo para voltar ao trabalho do que planejaram.

Capítulo 6

No Hotel Tannehof, dentro do Salão Frankfurt, Volcker elogiava o desejo de ambos de trabalhar em prol da união Brasil-Alemanha.

“... O Brasil está em primeiro lugar na lista dos países da América Latina beneficiários de recursos no âmbito da Cooperação Técnica e Financeira, tendo recebido até hoje mais de 1,5 bilhão de euros, incluindo os recursos de entidades privadas e eclesiásticas...”

Wagner mal ouvia o cônsul. Sua mente estava focada em outro assunto.

“...Na área de proteção ambiental, a Alemanha é o maior doador. O Governo alemão financiou, com recursos da ordem de 250 milhões de euros, praticamente a metade do Programa-Piloto Internacional para Proteção das Florestas Tropicais...”

“Cidadão enrolado.” Wagner continuava divagando e ouvindo somente a metade do que Volcker falava. “Toda essa enrolação para dizer que não serei cônsul.”

“Então senhores, quero agradecer por vossa decisão de se colocar à disposição do governo alemão.”

Volcker agora assumia um tom de finalização.

“Só isso? Trouxe-nos aqui para não dizer nada? Senhor Volcker, agradeço toda a delicadeza que o senhor tem em não menosprezar nenhum dos dois candidatos ao posto de cônsul honorário. Mas, como sabe, eu e o senhor Haltenhof temos vidas privadas e profissionais que lotam nossas agendas. Apreciaria muito se o senhor dissesse hoje quem de nós dois será o escolhido, para que o outro possa dedicar-se novamente aos demais assuntos sem maiores perturbações ou ansiedade.”

Haltenhof pareceu surpreso. Volcker mais ainda.

“Herr Reiss, o senhor não entendeu o propósito de minha visita. Não vim aqui escolher um dos dois. Vim conhecê-los e dar um parecer ao Ministério das Relações Exteriores da República Federal da Alemanha. Os dossiês enviados sobre suas atividades e relações com a Alemanha, bem como seus currículos, e o perfil desejado pelo governo alemão é que decidirão isso. Meu relatório será somente mais uma engrenagem nessa máquina toda.

“União Brasil-Alemanha você disse. Será que essa união inclui ter nas relações bi-laterais homens de famílias cujo histórico denunciam tentativas de tornar Joinville parte da nação Alemã?”

Volcker arqueou as sobrancelhas e fitou estupefato Reiss. Um silêncio pairou no ar por alguns segundos. Volcker então olhou para Haltenhof, com ar de surpresa. Erwin Paulo Haltenhof, com o cenho franzido, parecia mais intrigado ainda. Volcker olhou novamente para Wagner e perguntou:

“O que disse Herr Reiss?”

“Temos aqui à mesa um membro de uma família que lutara para separar Joinville do restante do Brasil. Não acha que isso merece ser analisado e mencionado em seu relatório?”

Reiss notou que um membro da comitiva de Volcker, um homem que havia sido cônsul francês, ficou alarmado com a insinuação dele. Deschamps era seu sobrenome.

“Senhor Reiss,” passou a dizer Haltenhof, “acho que o senhor deve ter ouvido falar de uma lenda, um mal entendido que envolveu o nome de minha tradicional família. Já ouvi esse conto, mas entre os círculos esclarecidos, ninguém dá importância a isso.” Haltenhof sentiu-se como se uma antiga e esquecida história, que não pertencesse a este tempo, pulasse do passado para assombrá-lo num momento totalmente inoportuno.

Volcker pareceu ainda mais assustado ao ouvir do próprio Haltenhof que de fato havia tal rumor.

“Herr Reiss, do que você está falando? ... Herr Haltenhof, que assunto é esse?”

Erwin Paulo Haltenhof não calou-se, estupefato! Wagner Reiss não conseguiu mais encarar ninguém e cabisbaixou. Volcker, percebendo o momento de tensão, passou a arrumar suas coisas. Se avião não esperaria que resolvesse esse assunto repentino. Mas agora a certeza já virara dúvida...

Capítulo 7

Carlo olhava Wagner deixar o salão Bayern enquanto pensava no curioso assunto. Depois, voltando-se para o amigo Sidnei que vinha em sua direção, disse:

“Fala aí, pessoa certa!”

“O que você está planejando Carlo? Alguma travessura? Que assunto privado é esse com o Sr. Reiss?”

“Sidnei, o Sr. Wagner está desconfiado de que o Sr. Haltenhof é membro de uma família que queria entregar Joinville e arredores de presente para os alemães.”

“Já ouvi falar sobre esse antigo caso. Ouvi inclusive um rumor de que tanto franceses quanto alemães tinha planos similares de absorver esse pedaço de terra em que moramos.”

“O cara certo para o trabalho certo. Eu queria estudar o assunto, mas nem sei por onde começar...”

“Então vamos visitar o Sr. Ludwig Wöhl. Ele é um historiador amador, mas é um idoso que sabe muito sobre os tempos antigos. Talvez ele nos dê uma pista inicial para perseguirmos. Podemos ir no meu carro, se você quiser. A casa dele fica ali na Rua Itaiópolis...”

“Não sei onde fica essa rua... espera aí...”

Carlo, na força do hábito, pegou seu telefone e ligou para um amigo seu.

“Alô, é o Mauro?... Mauro, eu preciso visitar uma pessoa, e talvez precise ir a outros lugares. O que você acha de ser meu guia hoje à tarde?... Está bem, onde fica a Rua Itaiópolis?... I-tai-ó-po-lis. Sim, estou indo para lá agora!... O que é que tem o SESC?... E daí?..”. Ambos desligaram os telefones.

“Para ajudar não pode, mas para cobrar dívida o sujeito é ligeiro. Não é sem interesse que ele quer me ver no SESC.”

“Carlo, que mania de perguntar nome de rua para o Mauro hein! Eu sou joinvilense sabia? Acha que eu não sei onde fica essa rua? Quer uma carona no meu carro?”

Carlo aceitou a oferta de Sidnei. A carona deixaria suas mãos livres para escrever no notebook a matéria sobre a visita do cônsul e enviá-la por email ao jornal. A caminho da residência de Ludwig Wöhl, Carlo recebeu uma mensagem de Wagner: “Investigação extremamente necessária. Favor continuar com perseverança.”

Logo estavam os dois diante de uma residência com ar de décadas. À frente da residência havia um edifício com o nome “Hans Dieter Schmidt”. Carlo comentou com Sidnei, em tom de brincadeira, que o prédio deveria pertencer ao hospital regional. O mesmo empresário emprestou o nome ao hospital e ao edifício. Sidnei, enquanto descia do carro, passou a explicar a Carlo quem foi Hans:

“Hans Dieter Schmidt foi presidente da empresa Tupy e o criador da escola técnica Tupy, em 1959. Morreu em 1981 de uma forma um tanto prematura, levando a empresa a uma grave crise. Seu pai foi Albano Schmidt.”

“O nome daquela rua no bairro Boa Vista, não é mesmo?”

“Sim, seu pai foi um dos fundadores da Tupy. Na verdade, o fato da Tupy se transferir em 1954 para onde se encontra hoje foi o que deu início ao bairro Boa Vista.”

Depois desta breve lição do nascimento de um bairro, Sidnei bateu palmas na casa à frente do edifício. Carlo não pôde deixar de notar ao lado um templo religioso que tinha reuniões em português e em espanhol.

Um senhor já bastante castigado pela idade avançada os atendeu. Ao ver Sidnei, abriu um amistoso sorriso. Vagarosamente foi até o portão e convidou os dois amigos a entrar. Wöhl gostava de narrar o passado, e Sidnei sempre se mostrara um ouvido atento. Mas desta vez, Sidnei e seu amigo perguntaram algo que Wöhl preferia deixar no esquecimento.

Carlo não pôde deixar de notar certo nervosismo no senhor que bem os recebeu na sua sala.

“Digam-me, garotos, que situação se desenrolou para fazer vocês vir à minha casa perguntar sobre idéias de separar Joinville do Brasil?”

“Estamos simplesmente investigando um assunto” – arrematou Carlo

“Entendo” – o tom de voz de Wöhl ficou severo. “Sidnei, gostaria que você mantivesse-me no anonimato. Falarei-lhes sobre o assunto. Mas vocês precisam saber que o tema levou a ameaças em décadas passadas, e ninguém mais fala sobre isso. Então reforço meu pedido: não quero meu nome revelado nem associado a esse assunto.”

Cada vez mais, o assunto deixava Carlo intrigado.

“Tudo começou, até onde sei, nos primórdios da colônia Dona Francisca. Como sabem, tudo teve início com o casal de príncipes François Ferdinand, da França e Francisca Carolina, do Brasil...”

Enfim, Wöhl iria começar a dar um fio para Carlo seguir a fim de encontrar a meada.

Capítulo 8

D. Jean Henrique estava entusiasmado com seu hóspede. “Encontrar alguém apaixonado pelas monarquias sem ter nenhum elo familiar com elas é espantoso”.

D. Jean Henrique era anfitrião de Otto Wendell, presidente da associação “Tradition und Adel” uma associação que desde 1952 se engaja pelo restabelecimento da monarquia na Alemanha.

“Não é uma pena” dizia ele à D. Jean Henrique, “que o casamento do príncipe inglês William teve tanta pompa e circunstância, e o casamento do príncipe Georg Friedrich da amada Prússia não teve transmissão por sequer uma TV? Sem trono para herdar, esse casamento não teve o mesmo glamour”.

D. Jean Henrique suspirou e disse “É sim... uma pena.”

Enquanto a conversação continuava ambos continuavam caminhando por um salão belamente decorado, com móveis antigos, um rococó aqui, um retrato a óleo acolá, uniformes reais e vitrines com medalhas de mérito e comendas.

D. Jean Henrique se autoproclamava chefe da Casa Imperial Brasileira, herdeiro do trono do Império do Brasil, vago desde a deposição de D. Pedro II. A julgar por essa pretenção, D. Jean Henrique bem que poderia ser um desafeto de seu hóspede, que apóia pretenções de herdeiros alemães ao redor do mundo.

Foi senão em 1864 que dois nobres primos chegaram ao Brasil para se casarem com as filhas do imperador D. Pedro II; seus nomes eram Gastão de Orléans, conde D’Eu, e Luís Augusto, príncipe de Saxe-Coburgo-Gota. Apesar de ambos serem aparentados com a nobreza de Saxe-Coburgo-Gota, o segundo é que ostentava o título nobiliárquico do ducado alemão, situado no atual estado de Turíngia. A princípio, o príncipe de Saxe-Coburgo-Gota se casaria com D. Isabel, herdeira do trono brasileiro, e o conde D’Eu estava prometido à D. Leopoldina, filha mais moça. Porém, após conhecer melhor os primos, D. Pedro II resolveu inverter os casais, e o príncipe de Saxe-Coburgo-Gota casou-se com D. Leopoldina, perdendo sua descendência a preeminência ao trono brasileiro.

Sem dúvidas, Otto Wendell preferia que a inversão de casais não tivesse ocorrido, mas esse é um assunto que não deveria discutir com D. Jean Henrique, descendente do Conde D’Eu e da princesa Isabel.

D. Jean Henrique, ou Sua Alteza Imperial e Real, como exigia ser conhecido, chefiava o que ele chamava de legítima Casa Imperial do Brasil e mantinha vívido interesse em reaver a monarquia. Sua linhagem é das mais nobres, e casa que ele diz chefiar teve sua origem na família Real portuguesa, e descende diretamente da Casa de Bragança, em comunhão com as tradicionais casas de Habsburgo e Bourbon.

A família imperial brasileira fora fundada por D. Pedro I e foi soberana de 1822 a 1889. Derrubada a monarquia, foi criado o título de Chefe da casa imperial brasileira para o herdeiro ao extinto trono. Após a morte de D. Pedro II, sua filha D. Isabel tornou-se a chefe da casa até sua morte. O primogênito do casal Conde D’Eu e D. Isabel, D. Pedro de Alcântara fora príncipe imperial, aquele que, caso D. Isabel fosse rainha, ele seria o herdeiro aparente. Este é o avô de D. Jean Henrique e por isso este considera-se herdeiro do extinto trono e Chefe da casa imperial brasileira.

Seu hóspede, Otto Wendell, deliciava-se com a narrativa da família de D. Jean, e cheio de nostalgia pela antiga realeza, calculava ligações genealógicas, comentava de como os Saxe-Coburgo-Gota são aparentados com o Conde D’Eu e fazia algumas anotações. Nesse ínterim, o mordomo pediu licença e quase sussurrando avisou D. Jean Henrique que alguém o chamava ao telefone. Aquela ligação alteraria a calma rotina do dia.

Capítulo 9

Terminada a reunião no salão Frankfurt, o sr. Wagner Heiss levantou-se e foi beber água. Estava um tanto nervoso com o que ele mesmo incitara. Acabara de conspurcar a fama da tradicional família Haltenhoff. Estando de pé com um copo de água gaseificada na mão, percebeu-se levemente trêmulo. A alguma distância sua um homem falava em francês ao telefone celular. Wagner não sabia falar aquele idioma, mas observou que o homem estava notadamente preocupado... era Deschamps.

Wagner não podia saber, mas do outro da linha estava ninguém menos que o auto-proclamado chefe da casa imperial brasileira, D. Jean Henrique. Nascido na França, em Mandelieu, D. Jean falava o idioma de Deschamps com muita fluência. A conversa abaixo aconteceu em francês:

“Senhor” – disse Deschamps – “Temos um sério problema aqui”

“Deschamps, meu bom amigo, como faz muito tempo que não nos falamos, entendo que você ligou por um motivo realmente importante. No entanto, estou com visita agora... poderia ligar mais tarde?”

“Não aconselho esperar. Estou numa comitiva alemã numa cidade no sul do Brasil, chamada Joinville. Estamos indo ao aeroporto e por bom tempo não terei a privacidade necessária para conversarmos.”

Sentindo o nervosismo de Deschamps, D. Jean Henrique sentou-se. Olhou ao seu redor e certificou-se de estar só. Franziu o cenho e suspirou.

“Diga amigo Deschamps. O que tem a relatar?”

“O assunto do ataque à soberania e ao território brasileiro pode vir à tona.”

“O ataque ao território?” – D. Jean Henrique ajeitou-se na cadeira. Quando seu pai o preparou para chefiar seu ramo da casa da família imperial deu-lhe várias instruções. Entre elas mencionou algo que lhe chamou muito a atenção: Um plano francês para abocanhar uma fatia do território brasileiro. O Brasil era imenso, mal administrado, com gigantescos vazios demográficos, e uma mordida nessas terras não fariam tanto estrago assim, pensavam alguns. Era o local ideal para a realização do sonho francês de instalar-se nos trópicos americanos.

Fora em 1612 que os franceses adentraram em solo brasileiro e fundaram a cidade de São Luís, hoje capital do Maranhão. A cidade foi assim nomeada para homenagear seu monarca, o afamado rei Luís IX. Mas o sonho francês durou pouco, pois tropas lusitanas vindas de Pernambuco os expulsaram em 1615.

Mais tarde fora fundada no norte do Brasil a Guiana Francesa, e alguns a consideravam um bom trampolim para novas aventuras em solo brasileiro. Um sonho da coroa francesa, que segundo o pai de D. Jean Henrique, não morreu com a independência do Brasil. Mas tais assuntos são atualmente um mero desgaste à imagem dos que defendem a volta da monarquia francesa. E D. Jean Henrique, apoiador das monarquias francesa e brasileira, faria de tudo para evitar tal desgate.

“Como isso aconteceu, Deschamps? Quem ressuscitaria um assunto desses?”

“Como fui por muito tempo cônsul da França na Alemanha, terminado meus serviços pela primeira, a segunda me contratou para atuar no ministério das relações exteriores. Isso me trouxe a auxiliar num assunto aqui no sul do Brasil, em Joinville, onde estamos para empossar um novo Cônsul. Disseram que como a cidade tem esse nome francês e tem laços históricos com o francês príncipe de Joinville, eu provavelmente gostaria mais da missão.

Mas na rodada de negociações, um candidato ao consulado levantou acusações sobre seu rival e mencionou planos de separar Brasil e Alemanha, e nós sabemos bem onde tudo isso pode levar...”

O já idoso Deschamps fora amigo do pai de D. Jean Henrique e também defende a volta da monarquia na França. Engajado nessa causa e com bons contatos, ele sempre fora um bom informante. D. Jean Henrique sempre fora grato por seu auxílio, mas naquele momento despediu-se com brevidade e desligou abruptamente.

“Que noticia ruim!” Pensou D. Jean.

Com a idade avançada, Deschamps prestava agora menos atenção a detalhes importantes: Sem ser percebido, Wagner Reiss gravara a conversa, ou pelo menos a parte que Deschamps falava. Reiss ouviu-o dizer ao mordomo que queria falar com D. Jean Henrique, mas não sabia quem seria esse desconhecido ser humano. Quando percebeu a mudança para o francês, acionou se celular e passou a gravar tudo, para encontrar posteriormente um tradutor.

D. Jean Henrique voltou sua atenção ao seu visitante, mas não conseguia mais se concentrar. Divagava na conversa e mostrava estar com a cabeça em outro lugar. D. Jean sempre achou inconveniente para as monarquias francesa e brasileira, ligadas por laços matrimoniais, os relatos que apontam para tal interesse francês em terras brasileiras. Seu coração gelou quando pensou onde isso respingaria: No próprio François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans, conhecido deste lado do Atlântico como Príncipe de Joinville. Para D. Jean Henrique isso era algo terrível, pois as suas pretensões não eram em nada minúsculas. Ele considerava-se o legítimo herdeiro ao extinto trono brasileiro, mas suas reivindicações atravessavam fronteiras.

Capítulo 10

Wöhl estava explicando a Carlo o que Sidnei já sabia... que Joinville devia muito o casamento de um príncipe francês com uma princesa do Brasil.

“Certa vez meu neto reclamou de suas aulas de histórias, dizendo ‘Vô, que diferença faz pra nós uma revolução ocorrida na França, no fim do século 18?’ ‘Muita diferença’, eu respondi. Caso aquela revolução não tivesse ocorrido, o terreno não teria sido preparado para levar Bonaparte ao poder. Sem Bonaparte no cenário, a busca do príncipe de Joinville por seu corpo não teria ocorrido e...”

Carlo interrompeu: “Busca por seu corpo?”

“Sim, como talvez saiba, os restos mortais de Napoleão estavam sob os cuidados britânicos na ilha de Santa Helena. O rei Luís Felipe manifestou interesse em reaver o corpo e teve autorização inglesa para isso. Seu filho, o príncipe de Joinville, educado militarmente para serviços navais, foi destacado para a tarefa.

Ocorreu, porém, que o príncipe de Joinville fizera uma escala no Brasil, e fora hóspede do imperador D. Pedro II, que na época não passava de um pré-adolescente. Francisco Fernando demonstrou maior interesse nas irmãs deste, e mais tarde voltou ao Brasil para casar-se com Dona Francisca. Dessa maneira, a casa imperial brasileira ligou-se a casa real francesa do Orléans. Como dote da casamento, D. Pedro II presenteou-os com algumas léguas no sul do Brasil, próximo de um local conhecido por São Francisco... ou seja, as terras onde hoje moramos.

Continuei explicando ao meu neto de como outros acontecimentos na Europa foram importantes para a cidade de Joinville. Por exemplo, as revoluções que varreram a Europa em 1848 acabaram por destronar Luís Felipe, o rei francês e sogro de Dona Francisca. Agora, a família real francesa teve que viver no exílio e ficou privada de seus fartos rendimentos advindos da coroa. O príncipe de Joinville, com sérios problemas financeiros, outrora não dera importância ao seu dote de casamento, mas agora voltava sua atenção para as terras perto de São Francisco.

Precisando de dinheiro, uma negociação seria feita com um agente alemão.

Meu Neto compreendera que sem o fim da monarquia francesa, a colonização de Joinville não teria ocorrido. Pelo menos não daquela forma e naquele tempo.”

Carlo começou a achar aquilo tudo muito curioso. Claro que como jornalista conhecia um pouco da família imperial. Mas agora, ouvindo aqueles nomes, percebeu como o nome Joinville fazia sentido para a cidade. Não pôde deixar de pensar também na longa estrada que corta a cidade e leva o nome da princesa, irmã do imperador.

“Tudo bem Sr. Wöhl, mas estou curioso... porque o senhor relembrou estes feitos?” – arrematou Sidnei. Sem dúvida, alguns pontos eram novidade para Carlo, mas Sidnei conhecia muito bem tudo isso. Então Sidnei imaginou que Wöhl faria essa narrativa para chegar em algum lugar.

“Meu bom homem, esse assunto é um pouco perigoso. Na verdade hoje em dia não é muito, mas causou muito sofrimento em tempos passados.” Seu tom ficou grave. Wöhl encurvou-se e calou-se como se revivesse mentalmente um momento ruim. Cerrou um pouco os olhos e sua idade avançada pareceu pesar ainda mais. “Francisco Fernando de Orléans, príncipe de Joinville, aquele que emprestou seu título para nomear nossa gloriosa cidade, na verdade não tinha as melhores das intenções para com a integridade do solo brasileiro, e isso é algo que alguns poderosos gostariam que ninguém hoje soubesse”.

Capítulo 11

Mauro estava feliz por ter feito uma venda. Com os zero-quilômetro a preços mais módicos, vender carros usados estava sendo desafiador nestes dias de IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) reduzido.

Agora, deixando a revenda sob os cuidados de um funcionário, ele e Mano se encaminhavam para a sede do Serviço Social de Santa Catarina em Joinville, o SESC, para cobrar uma dívida. Saindo do bairro Iririú, passaram pelo que todos chamam de Avenida Beira-Rio. Parados num semáforo, Mano notou pela primeira vez que a placa de rua dizia “Avenida José Vieira”. Ficou intrigado por ver que a Beira-Rio não tem esse nome e imaginou que a maioria dos joinvilenses sequer saberiam que havia uma avenida com o nome de José Vieira na sua cidade. Testou sua teoria com Mauro:

“Você sabe onde fica a Avenida José Vieira?”

“José Vieira... já ouvi falar... fica no... poxa Mano, tá de sacanagem comigo, essa aqui é a José Vieira.”

A teoria de Mano, apesar de certa, não passou no primeiro teste, mas lhe valeu uma risada. Mas com Mauro não valia o teste, ele conhecia as ruas de cor. Agora, porém, Mano pensava em quem poderia ter sido esse tal de José Vieira... algum empresário de antigamente, um vereador ou até quem sabe um prefeito! Sidnei, seu irmão saberia.

Mano continuou pensando em seu irmão, um bom historiador em Joinville, homem culto, palestrante, enquanto ele “não passava de um vendedor de carros”. Essa comparação sempre lhe garantiu uma censura do mais velho, que sempre dizia que todo trabalho tem seu valor e preenche uma necessidade da sociedade. Sidnei não gostava de ver seu próprio irmão menosprezar seu ganha-pão.

Um pouco avesso à leitura quando mais moço, Oliver, o Mano, estava dando indícios nos últimos tempos de interessar-me mais por história. Frequentemente fazia perguntas ao irmão mais velho e passou a ler mais. Indagações como esta, sobre José Vieira, ficaram mais frequentes.

Quando chegaram aos SESC, adentrando numa das salas Mano pôde ver uma exposição sobre a escravidão negra no Brasil. Passeando por painéis explicativos e quadros, ele deparou-se com um quadro que reproduzia uma pintura de Jean-Baptiste Debret chamada “O Pelourinho”. Olhando aterrorizado para o castigo que o homem amarrado sofria, Mano sentiu imensa tristeza por imaginar quão egoísta alguém pode ser, ao ponto de tratar seu semelhante como animal, despindo-o das roupas a da dignidade. Olhando para um janela, percebeu que Mauro já se encaminhara para outras obrigações mais lucrativas do que ver quadros. Mano voltou sua atenção para a exposição novamente e indagou-se se tal horror chegou a conspurcar as terras joinvilenses. Afinal de contas, nunca ouvira falar de um alemão ou um suíço escravizar outro.

Findados os negócios de Mauro, este chegou-se a Mano e pegou seu celular. Ligou para Carlo e perguntou se ele tinha esquecido que marcaram encontro ali. Findada a ligação, Mauro disse a Mano:

“O folgado do Carlo pediu que fôssemos até ele. Parece que seu irmão está junto. Então vamos lá, afinal de contas, quem quer receber sou eu.”

Capítulo 12

D. Jean Henrique queria enfim livrar-se de seu hóspede e gentilmente o encaminhar ao seu hotel, pois esse assunto que era revolvido em Joinville lhe tirara o ânimo. Agora ele pensava em uma saída para a situação, pois uma coisa era certa: O assunto começaria por falar em um pedaço da Alemanha no Brasil, mas mais tarde respingaria no antigo interesse Francês pelo território do Brasil.

Wendell, no entanto, notou que D. Jean Henrique estava estranhamente preocupado. Disse que não perguntaria o que seu anfitrião não desejava compartilhar, mas D. Jean Henrique foi tomado de súbito por uma vontade de desabafar a situação.

“Sabe senhor Wendell, nunca perdi a esperança de ver a causa monárquica ganhar cada vez mais espaço nos corações brasileiros. Estamos todos nós muito fartos de tanta corrupção e da demagogia que grassa por aí. Dizem que o Brasil não tem imperador, mas tem: O corrupto impera por estas terras. A ladroagem reina. Mas meus sonhos não se limitam a esse país de proporções continentais.”

Wendell olhou curiosamente para D. Jean Henrique.

“Bem, meu caro hóspede, dizer que minhas reivindicações atravessam fronteiras suaviza muito minhas pretensões. Elas atravessam o Oceano Atlântico e repousam sobre nada menos que um dos tronos mais afamados e cheios de glória do mundo: O trono Francês.”

Wendell franziu o cenho e ficou estupefato.

“O que disse senhor?”

“Eu sei, eu sei... como um brasileiro poderia ter tal pretensão? Como sabe, descendo do casal Dona Isabel e de Gastão de Orléans, o Conde d’Eu. Ocorre que o Conde D’Eu era neto de Luís Filipe, o último rei francês, deposto em 1848. Quando da deposição, o filho mais velho de Luís Filipe, Fernando Filipe, já havia falecido, tornando Luís Carlos Filipe Rafael, duque de Nemours, o herdeiro ao trono francês. Este é o pai do Conde D’Eu, que casara-se com Dona Isabel, formando a casa de Orléans e Bragança, que herda o trono orleanista francês através do Conde e o brasileiro através de Dona Isabel, princesa imperial e filha de Dom Pedro II.

Claro que existem muitas linhas de sucessão ao trono da França, mas nenhum tem melhores argumentos e legitimidade que a linha orleanista, da qual eu sou o primeiro entre os herdeiros.”

Wendell perdeu-se em seus pensamentos. Tal ideia nunca lhe ocorrera, ver um descendente da família imperial brasileira pretender o trono francês... mas agora que ouvira D. Jean Henrique, tudo fazia sentido.

“No entanto senhor Wendell, um assunto no sul do país tirou-me a alegria.”

D. Jean Henrique passou a narrar o plano francês de abocanhar uma parcela das terras brasileiras. Mencionou também um plano que saiu do controle francês e tomou vida própria entre os alemães, e isso afetaria negativamente a Alemanha de Wendell e seus migrantes em solo brasileiro. Então mencionou o assunto que estava vindo à tona em Joinville, no norte catarinense, conforme alertado por Deschamps.

“Logo em Joinville, a cidade que leva o nome do tio do Conde D’Eu, meu antepassado. O príncipe de Joinville, que emprestou seu nome ao município, era filho do último rei da França.”

Wendell ficou pensativo. Não gostaria que os teuto-brasileiros fossem vistos com maus olhos. Mas considerou que um assunto tão antigo não traria consequências ruins para a Alemanha e nem para alemães e achou exagerada a declaração do seu hospedador. No entanto, estava se deliciando com toda essa narrativa de vínculos genealógicos e casas reais. Pensou mais um pouco e arriscou:

“Talvez se possa calar quem sabe alguma coisa. Ficaria maravilhado em saber como isso (mexendo as pontas dos dedos sinalizando dinheiro) resolve muitos problemas.”

D. Jean Henrique olhou pensativo para Wendell. Ele gostara da ideia. Pensou um pouco e ligou para o mesmo Deschamps, na esperança de que ainda estivesse em Joinville.

Capítulo 13

O celular de Carlo tocou. “Quem é uma hora dessas?” Mauro ligara numa hora em que ele estava morrendo de curiosidade pela narrativa, cobrando a presença de Carlo no local previamente combinado, mas Carlo não iria. Pediu que Mauro se deslocasse até onde estavam, na residência do Sr. Woehl. A conversa estava muito interessante para abandoná-la agora.

Wöhl então continuou:

“O príncipe de Joinville fizera desgastante negociação pelo dote a ser recebido, implorando ao cunhado que cedesse terras contíguas à Guiana Francesa, no norte. Bem assessorado, D. Pedro não atendeu seu insistente solicitante. Aqui, meus amigos, está um detalhe importante em todo esse assunto: Hoje, aquela Guiana é parte da França e um pedaço da união europeia na América do Sul, usando inclusive o Euro como moeda. Não é difícil imaginar um plano Francês para unir o dote em solo brasileiro a essa Guiana. Então, na verdade, a insistência do príncipe de Joinville era uma severa ameaça a integridade do território nacional. Mas, como mostra a localização de nossa cidade, o príncipe de Joinville não teve seu pedido atendido.”

“O príncipe de Joinville é um inimigo da soberania nacional?” – Perguntou Carlo.

“Acho que podemos chamar assim. Mas, como sabem, a coroa escorregou da cabeça de seu pai e Joinville e Dona Francisca tiveram que ir ao exílio, na Inglaterra. Mas linhagens reais destronadas sempre se apegam ao sonho de voltar a reinar, e Joinville ainda se considerava um dos senhores da França, e ainda defendia os interesses da França e o engrandecimento de seu país.

Mas agora, já empobrecido por ficar privado de muitos dividendos advindos da coroa de seu pai, Joinville teve que se virar. As 25 léguas na província de Santa Catarina foram escolhidas por seu procurador, Leonce Aubé, e Joinville agora queria ganhar dinheiro com essas terras.

Joinville, através de Aubé, assinara um contrato com um senador alemão chamado Mathias Schroeder, objetivando a implantação de um colônia agrícola nas terras de seu dote, na então comarca de São Francisco do Sul. Estavam plantadas as sementes da nossa pujante cidade e foram resolvidos os problemas financeiros do príncipe.

Porém, esse contrato continha duas cláusulas secretas... Motivo de muito estudo e especulação até hoje tem sido tais cláusulas. Mas eu vim a saber o que são!”

Wöhl parou e olhou ao redor. Todos sentiram-se como se estivessem submerso no passado e repentinamente foram trazidos ao presente. A curiosidade de Carlo estava o matando e Sidnei estava sentindo que enfim, Wöhl chegaria na conclusão do assunto e faria uma declaração espantosa.

“Tais cláusulas” Disse um hesitante Wöhl enquanto Carlo se projetava para a frente na poltrona. “Tais cláusulas eram: A primeira uma indenização em caso de desistência da Sociedade Colonizadora e a segunda era que o Príncipe assumiria o controle direto da Colônia dez anos depois de sua fundação. E isso não era nada bom. Numa carta ao duque D’aumalle, seu irmão, Joinville mencionou que sua situação financeira melhorara. Mas numa folha a parte, desconhecida do público, ele conta ao irmão que o contrato fora assinado com a inclusão de sua exigência, e que ambos, Joinvillle e o irmão, poderiam começar a planejar como seria o que ele chegou a chamar de “a tomada do poder na colônia do sul do Brasil”. Suas notas ainda apontavam para um imigração de franceses depois de 10 anos de imigração alemã e o favorecimento de suíços no período inicial, pois muitos suíços falam francês.

Êferos Masopias
Enviado por Êferos Masopias em 12/07/2013
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