O Jogo da Alvorada (Anna Summer)

Anna estava quase chegando a Madreterra. Um homem que falava italiano havia se oferecido para ser seu guia durante sua estadia na Itália. O nome dele era Henry Duncan. Tinha cabelos castanho-avermelhados longos – abaixo do ombro, perto do peito. Era branco como leite, com profundos olhos azuis que pareciam grandes lagoas no meio de um deserto. O rosto era fino e o queixo quadrado.

Mas Anna Summer achava que conhecia aquele homem de algum lugar, mas de onde lhe fugia a memória. Ela já havia vindo há Madreterra dois anos antes, talvez tenha sido aí que ela o viu.

- Estamos quase em Madreterra – Duncan disse, sua voz suave como veludo. – Tem um hotel para ficar ou quer que eu lhe indique um, senhora?

- Já tenho um lugar para ficar – ela respondeu. – Obrigado mesmo assim.

Anna já conseguia ver a Torre da Salvação, uma das principais construções da cidade. Tinha enormes vitrais que mostravam São Miguel lutando contra uma corja de anjos maldosos durante o que os materros chamavam de Rebelião Celestial.

Quando o jipe onde a Senhora Summer estava atravessou o Portão Negro, uma gigante construção de metal que serve para proteger a cidade quando o Rio de Pedra transborda, ela conseguiu ver uma gigantesca multidão de pessoas que gritavam por alguma coisa, mas de onde estava poucos eram os gritos que conseguia ouvir.

Onde está a ameaça que Brian falou? Não conseguia ver nada de suspeito ou diferente.

- Leve-me a este endereço – Anna entregou a Henry um pedaço de papel amassado com o nome de um hotel no centro, pequeno, porém, luxuoso.

- Sim.

Duncan seguiu com o jipe através de uma rua adjacente à rua principal, onde os milhares de manifestantes estavam reunidos. Anna olhava as velhas construções que fizeram de Madreterra um patrimônio da humanidade em 2009.

No alto dos prédios, nas enormes janelas em estilo vitoriano, Anna via pessoas olhando para ela quase insistentemente, como se ela fosse alguma celebridade digna de algum tipo de adoração, ou talvez a temessem por alguma coisa, muito embora essa coisa não viesse à cabeça da Summer.

Chegaram ao pequeno hotel onde ela ficaria hospedada. Henry a ajudou a pegar as malas, todas as três. Subindo a escadaria que daria na enorme porta de carvalho vermelho, Anna viu o Castelo de Donattelo esbelto e belo, erguido no alto da Colina Verdejante, caindo sua sombra sobre boa parte da cidade.

Depois, voltou a olhar para as portas. Estranho, tudo está tão silencioso. Ela não havia percebido o silêncio que emanava de dentro do hotel. Como não consegui perceber isso antes?

- Por que está tão silencioso? – ela perguntou, virando-se para Duncan.

- Não faço a mínima ideia – ele respondeu, empurrando a porta.

O salão do hotel estava vazio, silencioso e extremamente limpo. Não parecia haver nem mesmo uma mancha de pegada sujando o chão imaculado daquele lugar. Onde está todo mundo?

- Eles devem ter ido dar uma olhadela nos protestantes – Duncan disse, passando a frente de Anna. Ela acenou.

- Tem alguém aí? – ela chamou. Uma garota veio correndo através de uma porta lateral. – Olá.

- Quer um quarto, senhora? – perguntou a garota que não parecia ter mais de dezoito anos. Tinha os cabelos escuros cortados curtos, rosto no formato de coração e impenetráveis olhos castanhos.

- Tenho uma reserva – Anna disse, dando uma rápida olhada em Henry. – Anna Summer.

A garota abriu um enorme livro encapado com o que parecia ser couro fervido. Era mais parecido com um domo de magia do que com um livro propriamente dito. Correu todas as extensões das linhas rabiscadas com nomes, murmurando o nome de Anna quase infinitamente.

- Encontrei – ela disse. – Terceiro andar, quarto 43. É o terceiro à direita.

Ela entregou as chaves a Anna. Summer agradeceu e se dirigiu às escadas que subiam para o segundo andar. Henry vinha logo atrás, segurando as malas dela enquanto subiam mais um punhado de escadas para chegar ao terceiro andar.

- Eles bem que poderiam ter um elevador – reclamou Henry, chegando à porta do quarto 43.

- Eles têm – Anna respondeu e abriu a porta. – Apenas não quis subir usando-os.

Duncan fez uma expressão de quem não estava acreditando no que estava ouvindo.

- Obrigado – ela disse quando Henry colocou as malas sobre a cama. – Sairei a noite, posso contar com você para me guiar pela cidade?

- Claro, senhora – até na forma como ele responde me lembra alguém.

Anna Summer ficou no quarto, olhando todos os mínimos detalhes daquele cômodo do século XVIII. Viu as maravilhosas pinturas que se prendiam as paredes em molduras de madeira ornamentadas com detalhes em ouro e prata, alguns até em bronze. Tudo naquele lugar eram relíquias incrivelmente importantes para que a história de Madreterra fosse bem contada para os turistas.

Sentou-se naquela macia cama e pôr-se a pensar: Brian me enviou para cá por que soube que rebeldes estavam lutando contra forças do Governo Italiano, mas a única coisa que consegui ver ou perceber que se parece com algo como uma guerra, foi a manifestação. Então, porque estou aqui se não consigo ver nada?

Ela não sabia.

Quando Anna voltou a abrir os olhos, o ocaso já havia há muito se abatido sobre a cidade. Agora, as luzes das ruas estavam iluminando a escuridão. Porém, o quarto continuava envolto em uma penumbra descomunal; Anna mal conseguia ver as mãos diante dos seus olhos.

Quando foi que dormi?, ela se perguntou.

BOOM

Uma explosão a fez pular da cama com o coração nas mãos. Girando, correu para a sua janela para dar uma espiada no que estava acontecendo. Seus olhos de cores diferentes conseguiram ver alguns carros que passavam em alta velocidade pela rua, quase como se fossem carros de corrida.

BOOM

Anna conseguiu ver a segunda explosão. Veio de uma lojinha de lembranças do outro lado da rua. Alguém gritava, mas nenhuma das pessoas que estavam correndo freneticamente pela rua parou para ajudá-la. O que está acontecendo?

Apoiou-se sobre o parapeito da janela, buscando enxergar a esquina daquela rua com chão de pedra. Uma árvore frondosa lhe cobria quase toda a vista, mas ainda conseguiu ver um homem correndo como se fosse um maratonista, descendo a rua como se sua vida dependesse disso.

AHHH!

Girando o rosto na direção do grito, a Senhora Summer viu uma mulher sob um dos pneus dianteiros de um carro prateado. Ela gritava num frenesi absurdo, com ruídos quase ensurdecedores. O que diabos está acontecendo aqui?

Uma buzina incrivelmente alta fez a cabeça de Anna girar novamente.

Um gigantesco caminhão de lixo branco com manchas vermelhas que Anna estava torcendo para que não fosse o que estava pensando, surgiu descendo a rua. O ronco do seu motor estava ecoando – e foi nesse momento que ela percebeu que a cidade estava gritando em toda a sua extensão.

A mulher sob o carro ainda gritava quando o pneu do caminhão esmagou a sua cabeça, fazendo o sangue jorrar através dos filamentos das pedras no chão. Anna estava horrorizada. Eu devo estar tendo um pesadelo, ela estava dizendo para si, só pode estar acontecendo isso.

Toc Toc

Ela girou sobre os calcanhares e olhou para a porta. Alguém... Quem...

- Senhora Anna! – alguém estava gritando. – Senhora... Ahhh!

Grunhidos animalescos soaram do outro lado da porta. Havia também um ruído suave de carne sendo arrancada de algum lugar. Gritos da garota soavam e ecoavam como se fosse uma sinfonia macabra.

Girando para olhar a janela novamente, uma massa escura entrou através desta voando como se fosse um pássaro. Anna olhou a criatura perplexa, sem saber o que fazer. Viu o sangue que corria da parte faltante da mandíbula dele, a língua pendente e vermelha de tanto sangue que derramava; os olhos estavam vidrados e altamente negros, as veias estavam evidentes naquela pele branca. Mas a parte inconfundível naquele ser infernal, eram os tentáculos que cortavam o ar de um lado a outro, tão violentamente quanto a ventania de um furação.

- O que... – uma poderosa pancada na porta lhe arrancou as palavras da garganta, o ar dos pulmões e o chão de sob seus pés.

A criatura sem mandíbula caminhou cambaleante até Anna Summer. Seu coração palpitava, sua mente gritava por alguma explicação Isso não pode estar acontecendo, dizia o seu cérebro. Não pode acontecer novamente, respondeu o coração. Como isso aconteceu enquanto eu dormia?, perguntou Anna para ambos, mas não obteve resposta.

Outra forte pancada na porta... E Anna não tinha mais quarto para andar. Já estavam sobre as malas que ela trouxera, sobre a cama onde dormira... Sobre as armas que eu trouxe!

Quando o kifafa avançou contra ela, Anna saltou e caiu sobre a cama. Girando, abriu a maleta de mão e puxou a única arma que fora autorizada a levar: sua Beretta 92f com balas de 9mm.

- Fique parado onde está! – Porque ainda estou falando com eles como se essas coisas ainda fossem humanas? Anna sabia a verdade, sabia desde Oblivion. Desde as suas perdas descomunais, desde as trágicas mudanças na sua perspectiva de vida. Desde a morte da minha juventude.

Ela apertou o gatilho prateado, sentindo cada parte do seu corpo gritando pelo tiro, pedindo a morte daquele ser inumano. E quando a arma cuspiu aquele pedaço de metal quente como o inferno na cara daquele monstro, sentiu um whoop da sua respiração começando a desacelerar.

BOOM

A porta de madeira despencou no chão do cômodo como se fosse uma fruta madura. O barulho fez An girar na direção da porta com a arma apontada, quando viu dois infectados entrando correndo como o diabo na direção dela.

A kifafa corria com os braços estendidos como se fosse uma sonâmbula. Girando sobre os calcanhares, com a mente gritando, o coração palpitando aceleradamente, a respiração lhe saindo pesada do peito, Anna abaixou-se por um milésimo de segundo, passando por baixo dos braços da criatura, sentindo náuseas por causa do odor que saia da carne dela.

Mas ela acabou de morrer, Anna disse para si, atravessando a porta e chegando ao corredor. Havia marcas de sangue por todo ele; manchas marcavam as paredes de cor areia, o teto estava cheio de respingos e o chão estava marcado com vísceras ensanguentadas, uma jogada sobre a outra.

Respirando o mais rápido que pôde, Anna seguiu correndo pelo corredor. Atrás dela, os resmungos aborrecidos da criatura que deixou no quarto começaram a persegui-la, como se Anna fosse algum tipo de rato.

Summer correu freneticamente pelo corredor, descendo as escadas de madeira que dariam no andar de baixo tão rápida quanto uma corça quando perseguida. Suas pernas começaram a gritar por um momento de pausa quando ela chegou ao saguão do hotel, com aquela infinidade de criaturas.

Vinte e seis...

Não havia tempo para ficar parada. Apertando a arma muito bem entre os dedos, Anna Summer mergulhou no chão, apertando o gatilho o máximo de vez que conseguiu. Ouviu uivos de dor, mas só conseguiu ver oito daqueles monstros caírem por causa deles. Droga!

Levantou-se do chão sob um frenesi de gritos animalescos que ecoavam pelo saguão de teto alto daquele lugar. Atravessou pelo meio de dois deles, colocou mais força nas pernas e empurrou a porta, saindo no vento refrescante do ar da noite.

Não fique parada, corra mulher!

Anna desceu as escadas que levavam à porta do hotel como se fosse um raio numa noite de tempestade. Desceu, chegou até a rua destruída e queimada, e correu por sua vida.

Atravessando uma esquina, viu o caminhão branco que pisara a cabeça da mulher que gritava quando olhou pela janela. É um pesadelo, estou sonhando, disse alguma coisa lá no fundo da mente dela. Não pode estar acontecendo novamente, Oblivion não pode ter ressurgido aqui, não comigo!

Uma multidão de criaturas se formou às suas costas. Anna virou o rosto para ver quantos eram, e desistiu de contar quando percebeu a infinidade de seres errantes e inumanos que mergulhava pelo chão tentando arrancar os pedaços dela. Assim como aconteceu em Oblivion...

Eles estavam chegando cada vez mais perto dela. Anna Summer sabia que se eles chegassem perto o suficiente, ela logo seria um cadáver. E isso não conseguia aceitar de bom grado. Então, a Senhora Summer entrou em uma viela estreita que apenas as cidades italianas possuem.

Olhando para trás, viu quando a multidão entrou de uma única vez. Parecia um tsunami enfurecido assolando uma cidade costeira, entrando com alto poder mortal, com fome e sede de sangue.

Percorreu a viela com as pernas ficando dormentes, gritando por uma parada. Pareciam estar dizendo: Se não parar agora, nós mesmas iremos parar você! Mas Anna não estava querendo dar ouvidos a ela, não poderia mesmo se quisesse. Parar ali, naquele momento e naquele lugar, significa a sua morte.

E correu, correu mais do que algum maratonista correu na vida. Virou à direita no fim da viela, depois à esquerda e novamente à direita, voltando para mais um grupo de estreitas vielas. Estava grata pelas vielas estarem vazias, sem movimento, nem vida. Ou morte.

Saiu das vielas com as costas ardendo, sentindo todo o peso daquele esforço excessivo. Olhando em volta, viu uma escada de metal na lateral de um prédio em estilo vitoriano. Correu até lá, sentindo o hálito daquela multidão infernal.

Correu e saltou, agarrando-se a um dos degraus daquele pedaço de metal que era a sua salvação. Tentou subir, mas a mão com a arma escorregou, fazendo Anna se segurar apenas com uma das mãos. Tentou levar a mão novamente para o degrau, mas não conseguiu.

Os kifafas surgiram sob os pés dela, tentando agarrá-los o máximo que podiam. Oh Jesus, não me deixe morrer num lugar como esse. Apoiou o pé na cabeça de um infectado que tentou morder o pé dela e se içar, mas outra criatura lhe agarrou o pé, fazendo Anna gritar de terror.

Sentiu os dedos gélidos de uma das criaturas lhe percorrer canela, um grito de terror mudo se formando dentro da sua garganta. E a escada foi puxada para cima com tanta força e velocidade que Anna quase não teve tempo de se manter segura. Quando parou de subir, uma mão lhe surgiu diante dos olhos.

- Me dê a mão, senhora!

Era Henry Duncan. Igual a Cody em Oblivion, ela pensou quando ele a puxou para a plataforma de metal que seguia o prédio até o topo. Anna olhou para baixo, para ver as criaturas. Quando as viu gritando, abriu a boca para dizer a Henry que...

- Corre!

Quando se virou para olhar do que Henry estava falando, tremeu nas bases ao ver a horda de kifafas que saltava do prédio vizinho para onde ela e Duncan estavam. E viu Henry correndo para o outro lance de escadas de metal que daria no andar de cima. Ela o seguiu.

De repente sentiu todas as forças do seu corpo restauradas, as pernas não doíam mais e a mente agora estava calada. A testa estava suada, a mão dolorida de tanta força para agarrar a arma, e as costas gritando em um misto de dor surda e medo de morte súbita caso caísse como nos filmes.

Subiram de andar em andar, ouvindo os passos e os gritos ecoantes daqueles seres inumanos, bestiais, ou filhos do inferno! Quando chegaram ao terraço, Anna vislumbrou a cidade que estava agora ardendo em chamas. Viu o Portão Negro tão fechado quanto nos velhos livros de História.

Pela primeira vez desde que começou a correr, ouviu os gritos desesperados de pessoas que insistiam em pedir ajuda. Pessoas que gritavam para um ser celestial, para o Universo, mas parecia não ser atendidos.

Tudo isso ocorreu em apenas um segundo, um mísero segundo. E ela já estava correndo novamente, atrás de Duncan e se preparando para saltar no prédio seguinte. A beretta estava tão apertada às mãos dela que Anna Summer não conseguia mais senti-la ali. Será que caiu?

Mergulhou no ar com as gotas de suor saindo do seu rosto, caiu no chão do outro lado, girou, ficou de pé e voltou a correr sob uma saraivada de gritos enfurecidos, ruídos animalescos e uivos por comida.

Virou o rosto apenas para ver a multidão saltando do outro prédio como leões no meio da sua caçada matinal. Quando voltou a girar o rosto, uma porta despencou no chão e um infectado mergulhou no ar contra o corpo dela, com aquela boca enorme, cheia de dentes vermelhos de sangue misturado com saliva. Os olhos vidrados nela, as veias azuladas sob a pele branca pulsavam, e os tentáculos se agitavam como milhões de enguias no mar.

Preparou as mãos para se defender, mas um tiro vindo da frente dela fez a criatura voltar a mergulhar no chão como uma fruta em época de colheita. Girou o rosto e viu Henry segurando uma Beretta 93r apontada para a criatura caída.

- Continue correndo!

E foi o que ela fez.

Estavam na beirada para saltar para o próximo prédio, quando o pé de Anna deslizou e ela mergulhou para o chão lá embaixo como se fosse uma pedra quando jogada para o ar. Mergulhou, e voltou a mergulhar, sentindo o chão indo na direção dela para esmagá-la em um abraço macabro.

Os gritos de Henry continuaram, mas foram os saltos daquela multidão que deixou seu coração em pedaços. Vê-los pulando como atletas numa caixa de areia deixou a mente de Anna inquieta. Isso e a ideia de morrer numa queda de uma altura de seis andares.

E ela encontrou o chão escuro do que lhe pareceu ser um beco antes de perder completamente todos os seus sentidos e a dor lhe gritar por espaço.

Bruno Sheen
Enviado por Bruno Sheen em 27/08/2013
Código do texto: T4454091
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.