Amor Quase Impossível

Chovia muito. Era de manhãzinha. O cavaleiro arrochava o macho na espora, tinha pressa de chegar logo a beira do rio Urucuia. As vagens estavam cheias e a lama era bem pegajosa. Quando atravessava alguma vazante, cardumes de piabas, piaus e curimatãs nadavam formando nuvens, na frente do cavalo. O chapéu de couro estava encharcado. Do Saco dos Poldros até a vila de Porto de Manga, eram quatro léguas e ele tinha pressa de chegar. Precisava buscar a Ritinha, ela havia dado a luz a seu primeiro filho, lá em São Francisco. Parto difícil, ela lhe escrevera, mas agora, estavam bem, o menino e ela. Finalmente veria o filho. Dura a briga para ficar com a Ritinha, seu pai havia jurado matá-lo por tê-la roubado na sede da fazenda do Poleiro dos Patos. Não aceitava sua filha casar com um urucuiano sem eira nem beira. Briga de parabelo com papoamarelo. Saiu vencedor. Escorara o velho na carabina. Fora buscá-la no Saco dos Poldros, com mais dois ou três cabras. Se o velho tivesse ousado atravessar a cerca da frente da casa, teria o alvejado. Apesar de orgulhoso, o velho tinha juízo, sabia que estava mexendo com homem de coragem. A Ritinha era a modos que um passarinho de grande boniteza, desses difíceis de ver. Conheceram-se numa ferra de bezerros, quando o velho contratava gente do arredor para ajudar a ferrar a bezerrada nova. E eram muitos bezerros. Ela passou perto do curral para ir ao rego buscar água, coisa rara, já que lá havia muitos empregados para fazer esse serviço. Depois ela lhe disse que passou por ali para ver de perto o que acontecia no curral. Eles se olharam e foi diferente. Ela, com cabelinho cor de milho e olhos cor do céu e ele um urucuiano queimado de sol. Aqueles olhos azuis pareciam encantados, ele ficou preso naquele mundo azul dos olhos dela. Procuraram formas de se ver. Era difícil, o velho trazia tudo debaixo de suas mãos e tinha olhos em todo lugar. Triste coisa é querer bem a quem nos é impossível... À noite quando estavam todos na casinha dos arreios esperando a janta, percebeu o aceno de uma conhecida que trabalhava na casa, moça nova. Achegou-se com cuidado, era um recado de Ritinha, queria vê-lo perto do rego, de madrugada. Quando o galo cantasse. Iria de qualquer jeito, tinha que tirar sua alma de dentro daqueles olhos azuis, ou ficar lá para sempre. Quando o galo cantou, estava debaixo do pé de limão galego a mais de hora. Ela apareceu vinda dos fundos da casa com a sua conhecida. Vestida com uma capa. Chegou segura de si e foi perguntando lhe o nome. Portava-se feito uma princesa, disse que se agradara dele e queria saber ser ele tinha sentido alguma coisa por ela quando se olharam. Dissera que sim. Ela disse-lhe que havia gostado dele e se ele se portasse, namorariam. Pediu que falasse ao velho, pedisse consentimento. Ficaram acertados. Antes de partir, beijou-lhe o rosto e saiu correndo. Ficou a modos que abobalhado. Iria conversar com o velho. No dia seguinte, recebeu um pingentezinho em forma de coração, sentiu-se ainda mais encorajado para encarar o coronelzão. No dia de se receber a paga do serviço, enrolou bastante para ser o último a tratar com o velho, demorou a pegar o baio no pastinho, levou mais um tempão para arrumar as coisas na casinha dos arreios. Quando foi ter com o velho, já era o último. Ficaram a sós no alpendre do casarão. O velho era sério, mas tratava a todos com jeito. Quando acertaram o preço do serviço, tocou no assunto do namoro com a filha do fazendeiro. O velho transformou - se, urrou feito onça, disse-lhe impropérios, escorraçou-lhe dali, ameaçou-lhe de morte e disse que a filha não era para ele. Estava na casa dele, tinha muitos cabras armados. Foi-se. Engoliu a desfeita, desceu-lhe queimando tudo por dentro. Dali a alguns dias recebeu uma carta da Ritinha, queria vê-lo na beira do ribeirão, fosse com cuidado. Encontraram-se num domingo, debaixo das gameleiras. A Ritinha jurou-lhe amor, fugiria com ele se fosse preciso. Estavam decididos, fugiriam para o Saco dos Poldros, uma porçãozinha de terra que ele havia herdado do pai na beira do Urucuia. Terra boa pra se criar gado. Marcaram para o fim da quaresma, na sexta-feira da paixão. Quando ninguém esperava. Preparou tudo. Arrumou a casinha que iriam ficar, consertou a cerca do quintal, podou as árvores frutíferas, encomendou móveis do São Romão, limpou a carabina, comprou munição e agendou um juiz de paz para casá-los no sábado de aleluias, lá mesmo no Saco dos Poldros. No dia marcado, esperou no passa - um no fundo da casa-grande. Meia-noite, ela apareceu. Só trazia uma sacola na mão. Quando pulou em sua garupa e encostou-se a ele, sentiu seu coraçãozinho batendo forte e rápido. Ele também sentia seu coração batendo forte e uma brasa de fogo percorria-lhe o corpo. Cavalgaram duas léguas na escuridão daquela noite, sem trocar uma palavra. Na madrugada alta chegaram ao Saco dos Poldros. Estavam cansados e assustados, mas, mesmo assim, dormiram profundamente. O dia seguinte amanheceu bonito, era a promessa de uma vida nova e bela a dois. O velho demorou a descobrir o paradeiro dos dois, o Saco dos Poldros era um lugar isolado e demoraram a se lembrar dele. O velho mandou recado de morte se não devolvesse sua filha, ela mesma respondeu, dizendo que veio porque quis e que agora era mulher casada, que aceitasse ou esquecesse dela. Não demorou o velho apareceu. Armado, com mais dois ou três jagunços armados. Esses ficaram mais distantes, de armas em punho. O velho gritou pela filha, ordenando que saísse. Disse que entraria e a pegaria na marra. Disse a ele que não entrasse que respeitasse sua casa, se não teria que atirar. O velho fez menção de atirar, manobrou o rifle e fez pontaria. Gritou. Coisa feia mesmo. A filha pediu que ele não entrasse, que já havia casado, que ele fosse embora. O velho deu um passo para trás e derramou um monte de palavras mal ditas sobre a casa e o casal. Disse a ela que não era mais seu pai, que o esquecesse e que ela o havia trocado por um Zé ninguém. Partiu. Ritinha chorou muito naquele dia e com o tempo, superou. Veio então à gravidez, ela começou a sentir-se bem mal. Foi preciso mandá-la a cidade de São Francisco, para ter-se com o médico. Tristes dias, longe dela. Os parentes dela lá, eram cuidadosos, perceberam a gravidade do caso. O parto seria de risco. Avisaram o velho, demorou-se para ir, quando chegou era quase nos dias do parto, que foi mesmo complicado, demorou-se muito. Risco para mãe e filho. O velho passou por tudo e quando finalmente tudo acabou ele foi chorando pedir perdão à filha pelas palavras duras que tinha lançado sobre eles. Ritinha havia escrito e descrevera tudo numa carta. Longo tempo aquele. Até o gemido da juriti entristecia naquele ermo. O Urucuia corria devagar, indiferente a dor e a solidão do caboclo. Triste coisa. Triste coisa. Finalmente a Mata do Santo Onofre. Agora, o porto estava bem perto. Tomar uma caninha com Zé de Polina e apertar um cigarro, se brincar, Ritinha estará esperando do lado de lá, na casa de mãe Joaninha. Lugar frio essas matas da beira do rio... A chuvinha vai passando e o sol começa a aparecer e já se pode ver a casa do barqueiro Zé de Polina debaixo dos pés de manga rosa. O rio está cheio, do lado de lá, na casa de mãe Joaninha, se vê uma mulher de cabelos dourados com uma criancinha nos braços e do lado dela a figura enorme de um velho acenando os braços. E mesmo cheio, ainda corre lento o Urucuia...

Geraldo Rodrix
Enviado por Geraldo Rodrix em 14/01/2014
Reeditado em 09/08/2023
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