O RIO

Éramos pequenos, talvez nove e 11 anos. Eu e meu irmão Clóvis sempre estávamos juntos. Brincávamos, jogávamos bola, fazíamos artes, e até apanhávamos juntos, se um apanhava de vara de marmelo, o outro logo também se dispunha ao castigo. Apelávamos para o meu pai, ou para a minha mãe. Pode bater em nós dois, estávamos juntos.

Assim, éramos irmãos, amigos e confidentes.

Certo dia, resolvemos matar aula, e andar pela rua sem destino. Antigamente ainda se podia fazer isso, hoje não.

Primeiro fomos treinar nossa pontaria com a nossa cetra, fazíamos isso em um bambuzal que ficava ao longo de um rio há mais ou menos dois quilômetros da nossa casa. Ali, tinha muitos morcegos.

Depois resolvemos ir nadar no rio. A agua não era limpa, pelo contrario, a cidade começava a crescer e praticamente uma boa parte do esgoto era descarregado no córrego.

Não nos importávamos com nada. Calor de 40 graus. Havia uma rampa de cimento, na qual os mais velhos deslizavam no limbo e caiam em um fosso.

Meu irmão fez essa peripécia vário vezes, mas não permitia que eu fizesse, porém, eu fui me aproximando, e quando ele menos esperava lá estava eu descendo a rampa. Tentei ficar em pé, impossível, escorreguei, cai, bati a cabeça no cimento, e o sangue escorreu como a própria agua do rio fedorento.

Desmaiei.

Clóvis correu em meu socorro, retirou-me da agua, o sangue parecia uma torneira aberta, voltei a si.

--- o que aconteceu?

Perguntei, colocando a mão na cabeça e sentindo o liquido quente brotar.

--- você abriu a cabeça, precisamos ir para casa. Venha eu te levo de cavalinho. Tire a camisa e aperte o corte, são dois quilômetros tomara que apareça alguém para nos ajudar.

Cavalguei o costado do meu irmão. Engraçado, nunca tinha notado como ele era forte. Inclinei a cabeça sobre o seu ombro e com uma mão entrelacei o seu pescoço, com a outra comprimia a camisa no corte, o sangue não parava de jorrar. Escorria sobre o seu ombro e o deixava todo ensanguentado.

Foram dois quilômetros de penúria, ele cansado, e eu quase desmaiando pelo sangue perdido.

Suas pernas bambeavam, quando chegamos próximo à rua onde morávamos, um vizinho veio em nosso socorro, me pegou no colo.

--- meu Deus, o que foi isso. - indagou.

--- ele caiu da bicicleta de um amigo. - disse o Clovis, mentindo. Não podíamos dizer que estávamos no rio. Meu pai era muito bravo, e se soubesse disso com certeza apanharíamos, na verdade iriamos apanhar de qualquer jeito, pois tínhamos faltado à aula.

O nome do senhor que me carregou no colo era Didi, foi ele quem bateu na porta, que foi aberta pela minha irmã Cleusa. Mulher santa.

Levou-me para o seu quarto. O sangue agora estava coagulado, mas o corte era extenso, precisava levar pontos. Minha mãe estava dormindo. Meus irmãos na rua. Meu pai aposentado, com certeza jogando carteado.

Ela fez um curativo provisório.

--- Clóvis, você fica em casa, vou levar o Claiton no Samdu, lá tem um médico que vai cuidar dele direitinho. Não fale nada para a mãe, eu resolvo isso depois. Quero saber a história direitinha.

Cleusa era a irmã mais velha. Que Deus a tenha. Morreu solteira. Uma perda que até hoje eu sinto falta. Amiga, irmã, companheira, doceira de mão cheia.

Levei os pontos. Alguns medicamentos para tomar em casa e voltamos.

Meu pai era muito bravo, todos já sabem disso. No caminho eu contei tudo o que tinha acontecido para a minha irmã mais velha, como já disse uma santa.

Ela sabia que iriamos apanhar, por dois motivos, primeiro porque matamos a aula, em segundo porque fomos nadar em um lugar perigoso. Ela também sabia que o meu pai às vezes não conseguia definir o que era um castigo do que era uma surra.

Chegamos. O meu pai estava sentado almoçando. Levantou-se apressadamente quando me viu com a atadura na cabeça.

--- vamos... Conte logo o que aconteceu, andou aprontando de novo.

Cleusa se interpôs entre nós dois. Meu pai a respeitava.

--- não aconteceu nada, ele estava passando perto da construção da casa dos Rossi, e algo desprendeu do telhado, sorte que era coisa pequena, estava ventando muito, foi só isso, já esta tudo resolvido, levou oito pontos, esta novinho de novo.

Meu pai gostava muito de mim, não sei por quê.

--- se sua irmã esta dizendo eu acredito, venha almoçar, antes chame o seu irmão Clóvis, ele esta no quarto.

No caminho minha irmã sorriu e definiu o castigo que levaríamos pela mentira que ela acabava de contar.

--- esta semana vocês vão ficar sem sobremesa. A semana inteira.

Meus olhos se entristeceram.

--- até domingo. – perguntei.

--- sim até domingo, a não ser que vocês queiram que eu conte a verdade para o pai.

Para falar a verdade, pairou uma duvida em minha mente. Ficar sem a sobremesa que a Cleusa fazia, era tão dolorido como sentir as cintadas do meu pai.

Éramos espertos. Optamos por ficar sem a sobremesa.