UM DIA DIFERENTE (INÍCIO)

O zumbido soara distante, mesmo assim o reconheci atrás do ritmo frenético que por pouco não estilhaçava meus tímpanos. Removi os fones de ouvidos e notei que a musica chegava limpa, perfeita do amplificador do meu i-fone. Verifiquei o numero na tela sentindo-me um pouco zonzo. Mas logo aquilo também passou. A chamada era Identificada; vi que era de um amigo, o Big, que horas antes havia dito que ligaria para se despedir. – sinceramente não esperava que fosse tão cedo. – Estaria voando para França decidido a passar um tempo com os avós maternos. Quando me deu a noticia de sua viagem, fiquei feliz por ele, mas confesso que também um pouco triste. Não apenas porque ele estava indo embora, é que aquilo me fazia pensar em minha própria sorte, ou azar, já que nunca conheci meus avós, na verdade eu nunca os tive. E nada era pior que ouvir das pessoas o comentário do quanto esses parentes eram amáveis e apaixonantes como trufas. Imaginava que me daria bem com eles já que eu adoro trufas.

Ainda cedo, soube que meus avôs maternos morreram num tempo em que sequer eu havia nascido, e o meu pai... Ah! Ele nunca falava sobre os pais dele. Talvez pelo fato de ter sido adotado logo que seu pai biológico o entregou para adoção, ou o abandonou, morreu, sei lá eu era muito pequeno e ele não era preciso quando tocava nesse assunto.

- Estava em coma D’bry? – perguntou Big ao telefone me chamando por um apelido que meus pais sequer sonhavam que existia – Demorou em atender. É o resultado das altas horas não é?

- Engraçadinho. – respondi - Até parece que não estava lá.

- Eu – exclamou ele - O cara mais pacato que uma preguiça tomando sol na primavera? De jeito nenhum. Acho que você está ancorado em marte com esse pensamento.

- Tudo bem. Vamos aumentar o nível da sua dose na próxima vez - uma medida a mais de heroína -, talvez se lembre de alguma coisa, ou esqueça tudo de uma vez, incluindo meu numero. Então. Estarei certo de que não terá tanta disposição no começo da manhã.

- Ei, ei! Isso será trágico. Pois nunca vi ninguém ficar de pé durante um ciclo de overdose. – disse Big sorrindo do outro lado da linha.

- Essa talvez seja a ideia. Overdose. Um ótimo motivo para alguém não perturbar um anjo às seis da manhã.

Soltamos o pôneis e rimos euforicamente.

- Ai cara. Você é demais – comentei. – Olha só. Estava ouvindo musica pelos fones enquanto estudava um movimento de xadrez tá ligado? Por isso demorei a atender, estudava uma jogada com o cavalo.

- Hum! Gosta de cavalos, D’bry?

- Idiota.

- Tudo bem, tudo bem. Eu estou falando do xadrez que eu não sabia que você jogava.

- É. Estou disputando uma partida contra um cara de outra praia, um vizinho que mora ali do outro lado do Atlântico.

- Do outro lado do Atlântico!... Que historia é essa?

- É. Um sul-americano. Brasileiro.

- Achei que eles só entendiam de samba e futebol.

- Não, não. O cara é bom. Mas... E ai. Sei que logo estará sobrevoando o oceano com destino a Europa e...

O Big e eu não conversamos por muito tempo. Eu tinha aulas na faculdade e ele algumas coisas para resolver antes de seguir para o aeroporto. Olhei para o relógio e vi que ainda tinha alguns minutos, mas não dava para rever minha jogada com o cavalo. Destravei o chat e deixei um recado subestimando meu oponente: “tenho que sair agora, mas você vai está fora quando eu voltar”.

***

A carta ainda permanecia aberta do outro lado da cama. Voltei a olhar para ela antes de levantar. Recordava bem de tê-la lido logo que cheguei da balada aquela noite. Já a havia lido e relido inúmeras outras vezes e ainda assim procurava entender porque depois de um ano aquela coisa ainda me perturbava. Pelo tempo transcorrido, imaginava se tudo não passara de um engano ou mesmo de uma brincadeira sem graça:

Manhã de quarta-feira Universidade de Houston, garoa e frio caracterizavam o clima de inverno. Eu aguardava minha mãe ouvindo musica dentro do carro quando de repente, a menina de gorro sobrepondo as orelhas, portando jaqueta de couro, calça jeans desbotada e patins amarelos, bateu em minha janela. O estacionamento estava praticamente vazio, as aulas haviam sido suspensas em virtude das diretrizes que os professores deveriam fechar antes do termino do semestre.

O moça balbuciava algo, mas eu só conseguia perceber o movimento de seus lábios e o ar condensado que saia de sua boca deixando a janela embaçada. Após observa-la por alguns segundos, resolvi abaixar o vidro até a metade, foi quando soube de que se tratava de um telegrama.

- É para você. – disse a mulher.

Hesitei por um momento estranhando a abordagem, tanto quanto o envelope sem remetente que a moça segurava tentando me fazer alcançar.

- Deve ser um equivoco. – respondi com segurança, só para descobri em seguida que o equivocado era eu.

- Você e filho de Katherine a professora exemplar, não é? E assim como Beckham – o jogador inglês - também se chama David, estou enganada?

Muito bem informada eu diria. Ponderei.

- Não... Não está. – respondi surpreso.

- Sinto muito, isso é mesmo pra você, pontos para mim. iuhuuuu – disse ela com ar triunfante girando em um circulo de trezentos e sessenta graus.

E ainda aparece alguém que me classifica como maluco.

Eu a questionei sobre quem me mandara aquilo, mas a garota ou, a mulher - não sabia definir muito bem já que seu rosto mesclava uma transição entre essas fases -, simplesmente recusou a me fornecer maiores detalhes, ou, talvez não soubesse nada a respeito daquilo. Quando voltou a se concentrar em mim, piscou rapidamente, acenou com graça e se moveu numa arrancada profissional sobre aqueles patins. Achei ainda mais estranho, o fato de ela ter saído sem sequer mencionar a gorjeta. Contudo o que mais me interessava era a origem daquilo, tanto que ainda tentei chamando sua atenção com um assovio. Ela parou e quando a questionei, ela novamente se virou e continuou patinando, afastando-se ainda mais.

- Qualquer coisa que...

Tarde demais. Ela já havia desaparecido atrás de um dos prédios da faculdade.

Menos de um minuto havia se passado, quando por um segundo fiquei bravo por vê-la retornado. Dessa vez sai do carro me expondo aquele estacionamento gelado. Estava disposto a arrancar dela alguma informação a mais quer ela tivesse uma ou não. Ela parou no meio do caminho. Será que a assustei com minha cara de bravo? Não sei. Também não é o que eu iria perguntar. Esperta, sem esperar que eu falasse primeiro logo foi logo dizendo:

- Ah! Desculpe-me! Já estava esquecendo. Quem mandou entregar isso também pediu para dizer que o guardasse com bastante zelo, pois não se tratar apenas de um telegrama, mas de um documento importante.

Documento importante? Tá de onda comigo.

- Boa sorte, e seja um bom garoto está bem? – ela apontou para mim com os dedos em v e desapareceu. Dessa vez não retornou. Também não esperava que fizesse.

***

Retornei para o carro, intrigado. Ergui a mão com a qual segurava o envelope, e fiquei olhando para ele por mais tempo que o necessário. O lacre era um selo desconhecido, uma porção de terra cercada por agua. Uma ilha. Deduzi. E. Havia um formato de flor ao centro. Irrompi o lacre rasgando-o ao meio e abri cuidadosamente a correspondência, peguei aquela folha – amarela – personalizada com bordas de texto e a li, ali mesmo dentro do carro enquanto minha mãe não chegava.

Olá, David!

Dizia a primeira frase:

Meu nome é John Ray e talvez nunca iremos nos encontrar, ou, talvez nos encontraremos em breve, tudo dependerá das circunstancias.

Eu nasci em Minissota num ano em que não me lembro, há, há, há. Mas posso afirmar que tenho mais idade do que você. Fui criado em um orfanato no sul de Miniapolis até chegar à idade de ir para o mundo e cuidar de mim mesmo. Trabalhei em vários lugares e com muito esforço me formei em ciências administrativas, mas logo vi que isso não era muito a minha praia, então; parti para outros mares. Anos mais tarde eu seria um botânico e me casaria com a mulher mais linda que eu já conheci. Tão linda que jamais encontrei igual depois que ela se foi. É. Ela partiu David. Sei que já pode deduzir qual o meu estado civil não é mesmo?

Sinto muito.

Olha! Havia decidido jamais falar sobre mim mesmo até você aparecer em minha vida. Então, o que era certeza virou duvida e em seguida a duvida tornou-se algo seguro novamente. É. A certeza de que eu deveria escrever para vocês. E não pense que o escolhi aleatoriamente, você não fez parte de uma seleção David. E que eu conheço você. Eh! E posso imaginar sua cara de assustado agora. No entanto, fique tranquilo não vou invadir a sua vida há, há, há...

Já invadiu se ainda não sabe.

... Ai, ai. Só passei para dar um oi. Então. Até nunca mais ou... Até breve. Seja lá o que o destino nos reserva.

At,

J. R

Essa coisa me assusta.

Dobrei a carta e a envelopei novamente. Devolvi ao criado enquanto espreguiçava. Em seguida, fui até a janela ver o sol esparramar sua luz amarela sobre a grama do jardim. Frustrei-me, o dia estava nublado e o sol não parecia querer ver a América naquela manhã. Por alguns segundos, apenas fiquei parado observando as cores das casas vizinhas em contraste com o verde do nosso jardim.

Não demorou até que o cheiro do café atravessasse a fresta da porta e invadisse o quarto sem pedir licença. Parecia intimar-me a comparecer a cozinha ou, apenas informar-me de que já era hora de descer. De qualquer forma entendi o recado. Afastei-me da janela livrando-me daquela vista privilegiada.

Em poucos minutos já estava pronto, calça Jeans, óculos escuros, tênis e camisa branca de mangas longas dobradas sobre o antebraço a fim de esconder aquela coisa roxa que marcava a minha pele. Em seguida desci as escadas, atravessei a sala e depois de um “oi mãe” acomodei-me em silencio do outro lado da mesa. Silencio que não demorou tanto a ser quebrado.

- Não há tanta luz aqui dentro David. – replicou Kate, minha mãe untando uma fatia de pão antes de coloca-la na torradeira. - Porque não tira esses óculos?

- Estou bem assim. – rebati.

- Pensei que havíamos conversado sobre suas saídas a noite durante a semana.

- Mãe... O Big ligou esta manhã – afirmei, mas aquilo era só uma tentativa de fugir daquele assunto desconfortante.

- O Big. Ligou! – aquilo soou claramente irônico. E deu pra notar como focou em mim, na forma em como abriu os braços segurando nas bordas da mesa, numa forma engraçada de pirâmide antes de me encarar.

- É. Ainda a pouco. – respondi olhando para baixo vendo a torrada no meu prato. - Ele está indo para a França e vai ficar um tempo com os avós maternos.

- David? – Não olhei diretamente para ela, mas deu para notar que a fatia de pão e a faca já estavam de volta as suas mãos - Não conheço seus amigos! Portanto, não sei quem é Big.

É um cara gigante mãe, não vê a ligação.

Ela terminou com o pão e se virou para a pia pegando três copos no armário acima dela. Estranhei sua atitude, uma vez que somente duas pessoas tomavam café sentado àquela mesa. Eu e ela. O fato de meu pai as vezes estar em casa como naquela manhã, que eu nem sabia. Não alterava em nada o numero de pessoas em torno dela. Essa equação sempre fora exata. O café a dois havia se tornado uma rotina “normal” naquela casa já fazia bastante tempo.

Percebi que minha mãe parecia bem nervosa. Ela não era assim, não até aquela manhã. Tornava evidente que aquele não seria um dia comum em nossa rotina. Ela estava tremula notei claramente quando tentou ajeitar outra fatia de pão no tostador. O que há de errado com ela? Mesmo incomodado com aquilo tudo, continuei em silencio e sem nenhuma perspectiva boa para o quando tudo terminasse. Se é que fosse terminar. Diante disso, desviei meu olhar para o outo lado da mesa decidido a pensar em coisas diferentes. E parecia bem melhor agora. Mas só até aquela sombra se mover atrás da janela chamando minha atenção de forma assustadora.

CAPÍTULO 1

Sidel
Enviado por Sidel em 31/07/2015
Reeditado em 31/07/2015
Código do texto: T5330620
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