A fera de Japecanga

Viajar é sempre bom, seja pelas experiências que proporciona, seja pela saudade que causa no viajante distante de seu lar. Quer dizer, isso não é muito bom, na verdade saudade é uma coisa horrível.

Um hotel para viagens de trabalho é sempre uma incógnita. Você chega em uma cidade e não sabe o que vai encontrar, pode ser muito bom, ou muito ruim, em determinado local fiquei cheio de pulgas, daí entendi o termo “pulgueiro”.

Certo dia, dormi em um hotel na cidade de Coromandel, MG. O hotel era bom, na verdade, esse hotel só me ganhou no dia seguinte, no café da manhã, serviram um ótimo pão-de-queijo! Minha tarefa do dia, uma sexta-feira, era visitar algumas fazendas no município vizinho de Abadia dos Dourados e de lá, ir embora pra casa.

A primeira fazenda do meu roteiro de visitas, ficava na região de uma comunidade rural chamada de “Japecanga”, pesquisei um pouco antes e descobri que esse é o nome de uma planta medicinal, imagino que o nome da comunidade se deva ao fato de existir essa planta por lá, diz que o chá dela cura tudo quanto é tipo de coisa, inclusive dor de barriga, então eu já estava prevenido, caso algum “acidente” acontecesse era só procurar a japecanga!

Pelo caminho, dezenas de fazendas. Ah como eu gosto disso, observar cada fazenda e tirar conclusões técnicas, na verdade eu era pago para isso! Mas fazia com prazer. Muitas dessas fazendas exploravam florestas de eucaliptos e pinus, muitas também com pecuária de corte, gado solto no pasto, pasto degradado, eventualmente alguma lavoura de milho.

Eram dias de verão, choveu a noite, a terra estava úmida, as estradas rurais esburacadas, com lama, atoleiros e tudo. O jeito mais emocionante de trabalhar! Aquele momento em que você entra com o carro em uma poça d’água sem saber se você vai conseguir sair. Certa vez, gritei tão alto com o carro: “-Vai! Vai! Não atola!”, que tenho certeza que ele me obedeceu porque ficou com medo meus berros. Ou talvez ele tenha ficado com dó do meu desespero. Confesso que eu gosto desses sufocos, embora eventualmente eu reclame.

Além do espírito de aventura, aquela obrigação profissional, o ato de abrir “colchetes”, aquelas porteiras improvisadas feitas de arame, que poderiam ser substituídas por mata-burros. Era um dia de chuva, bem podia ter caído um raio e eletrificado a cerca, e se eu tocasse nela: “-Bau, bau!”.

Estava a procura da fazenda do “Seu João”, o crédito rural exigia aquela visita, era importante eu estar ali, verificar tudo que foi registrado sobre a propriedade e também orientar o produtor sobre como conduzir sua cultura. Ora, seu empreendimento não poderia fracassar, como ele iria pagar o banco?

Cheguei à propriedade, abri o usual colchete que ficava numa parte mais alta da paisagem, a estrada, com pouco cascalho ia descendo com pastagem sofrida dos dois lados da via, muitos cupinzeiros, lobeiras e plantas nativas do cerrado crescendo no meio do pasto.

Na parte mais baixa, no fim da estrada, havia a casa sede, onde eu deveria encontrar o próprio “Seu João”, a casa era simples, nada de casarão colonial, ou outros luxos, no fundo havia um córrego, que fazia a divisa da fazenda.

Chegando próximo da casa, já uns cem metros antes, surgem dois cães, os dois pequenos, sem raça definida, ou como dizem: “vira-latas” ótimos alardeadores, fazedores de barulho, latiam muito embora desse pra perceber a alegria deles em receber um visitante.

Parei o carro, e mesmo com os cachorros fazendo escândalo, não apareceu ninguém na casa, toquei a buzina um par de vezes, e nenhum sinal de vida. Como eu vi os cachorros pequenos, brincalhões, relaxei e resolvi sair do veículo.

Abri a porta, mas antes de me levantar, lembrei que precisava de uma caneta, e com a porta aberta, voltei o corpo pra dentro do carro, comecei a procurar no porta-luvas.

Eis que, neste momento de maneira totalmente inesperada, sinto uma baforada quente no meu braço esquerdo, fui tomado por um misto de sentimentos antes mesmo de olhar o que era, surpresa, medo, terror, além de sentir o calor, dava pra escutar a respiração pesada da criatura, seria uma fera?

Virei minha cabeça e vi que realmente era uma fera, um fila brasileiro quase da minha altura, neste momento tudo o que eu sentia piorou, fiquei frio, meu coração parou e pensei comigo mesmo: “-Mamãe!”. Era agora que eu ia perder um braço; ou morrer; na verdade passou o filme da minha vida diante dos meus olhos. Pensei comigo mesmo: “Sobrevivi à rodovia, aos atoleiros, aos colchetes, escapei de cobras, corri de boi e vou morrer aqui por ataque de cão!”

Esse período de pavor, deve ter durado um segundo, talvez dois, mesmo assim pareceram uma eternidade, mas passados esses dois segundos, percebi que o cachorrão não iria me morder, que ele era mesmo alegre e brincalhão, neste momento a minha respiração voltou e como é bom respirar! Nunca tinha respirado tão aliviado, e percebi o tamanho da sorte que tive.

Acho que minha alegria foi tão grande, que passei a mão na cabeça do bichão aliviado, não contente com isso, dei um abraço na fera, o qual só não prolonguei porque o bicho fedia pra burro, mas ele entendeu minha felicidade e retribuiu de igual forma

Logo após esse encontro com a fera, vejo ao longe outro carro chegando, era o Seu João, contei a história pra ele, rimos um pouco, fiz o meu trabalho e voltei pra casa que me dava tantas saudades.

É desnecessário eu te dizer que você deve cumprir as normas de segurança, elas realmente são muito importantes, a grande lição pra mim foi que nem tudo é o que parece, às vezes uma fera monstruosa é exatamente o oposto daquilo que se espera dela, embora nessa caso tenha sido mais uma exceção.

Fim.

Bruno Maia

brulao
Enviado por brulao em 15/02/2016
Código do texto: T5544763
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