Intercâmbio

Já estava em Portugal há alguns meses. Cursava o doutorado em Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade do Porto. Fruto de uma seleção bem-sucedida que ele prestou para um programa do governo brasileiro que incentiva pesquisadores a fazerem seus estudos fora do país. Nos primeiros dias vivendo na nova terra teve um pouco de complicações quanto à língua, contrariando a ideia de que é facilmente compreensível a mesma língua em outro país. Fazia muita diferença o fato dele ser um estrangeiro, com cultura distinta e coisa e tal. No entanto, estava dando para arranhar e, com algum esforço, conseguia interagir com os portugueses, dentre colegas, professores, padeiros, caixas de supermercado, motoristas e cobradores de ônibus e de bondes.

Separado estava. Há alguns meses havia findado relacionamento com aquela que fora sua companheira por pelo menos sete anos e alguns carnavais. No início, a saudade e as lembranças martelaram com regularidade o seu juízo, instigando-o a ficar dando voltas no passado. Mas, com o tempo e com o trabalho, e depois também com essa nova oportunidade de continuar as pesquisas fora do país, a saudade fora diminuindo e as voltas agora estavam sendo em torno das expectativas do futuro. É claro que de vez em quando ainda se pegava ouvindo canções de Gonzaguinha, Oswaldo Montenegro, Zeca Baleiro e se lembrava de quanto foi feliz, mas, logo em seguida, aparecia um colete salva-vidas da fossa que lhe fazia mudar os pensamentos, sempre em forma de atividade acadêmica ou na forma humana mesmo.

[alguém toca a campainha: “blen don”]

- Olá, como vai Joana, que surpresa boa!

- Oi, querias conversar contigo sobre aquele artigo que temos que entregar daqui a duas semanas. Gostarias de uma ajuda sua, se não fores te incomodar.

- Opa, que isso, claro que não. Entre e fique à vontade.

O subsídio do governo brasileiro recebido todo início de mês era pouco, mas estava dando para pagar uma quitinetezinha perto do centro de Porto, além de sobrar para a alimentação e transporte de vez em quando, já que gostava muito de ir a pé para a faculdade, aliás, um costume velho do Brasil. Sua colega, Joana Malhoa, foi uma das primeiras amizades que começava a construir naquele velho mundo e novo universo para o brasileiro amante das artes, sobretudo a Literatura. E era esse seu gosto que estava ajudando-o a estreitar os laços e manter conversações interessantes com os nativos. Essa nova amiga dizia ser parenta de um pintor famoso do fim do século XIX e início do XX e a tradição da família de cultivar as artes foi determinante para o encaminhamento de suas escolhas, mesmo que estivesse vivendo em uma nova cultura mais digital, típica das artes do efêmero. Logo de cara, nas primeiras discussões em sala de aula, numa disciplina de Teoria da Narrativa Contemporânea, ele percebera que Joana era muito interessada nas letras brasileiras, que gostava, sim, muito da literatura de seu país, como de Pessoa e Saramago, mas que adorava Guimarães Rosa, Clarice Lispector e alguns romancistas contemporâneos que fugiam da ordem “hiper-realista”. Isso fez com que ele se aproximasse dela e mantivesse alguns papos legais. Além do mais, ele era novo no país, na cidade e no campus e precisava de uma porta de entrada no portal português para constituir suas trocas culturais.

De tanto conversar com ela a respeito das múltiplas visões que os críticos tinham da literatura produzida nas últimas décadas no Brasil, Joana fora até sua casa para dialogar sobre algumas tendências e perspectivas de abordagem para ela poder fazer seu artigo final da disciplina. Entrando na humilde moradia daquele brasileiro, ela foi logo se interessando por sua estante de livros e de DVD’s. Dentre alguns títulos da narrativa brasileira contemporânea, logo uma coleção dos romances de Antônio Torres lhe chamou a atenção. Disse que já tinha ouvido falar do escritor, inclusive que ele já tinha até dado uma palestra no Liceu Camões em Lisboa, mas que nunca teve a oportunidade de ler seus livros. Contudo, com um jeito ousadinho, coisa difícil de encontrar nos portugueses, ela disse: “agora já poderei começar a leitura de sua obra”. Ele se sentiu muito à vontade com aquela aproximação e até achou engraçado o jeitinho dela. Falou que era bom começar a leitura pelo “Essa Terra”, para, em seguida, dar continuidade à trilogia “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”, para, então, aventurar-se nos diversos romances do autor baiano, desembocando naqueles do seu maior interesse que eram os de metaficção historiográfica, intitulados “Meu querido canibal” e “O nobre sequestrador”. Após esse breve itinerário, optou por não dizer mais nada e deixou aquela portuguesinha de 26 anos, que estava muito interessada nas garatujas tupiniquins, conhecer e degustar a obra por si só.

Além da estante de livros e de DVD’s, também havia em cima da escrivaninha uma garrafa de vinho tinto demi-sec, de casta Merlot, a qual não poderia ser ignorada por ela. Antes mesmo do anfitrião a oferecer, ela se antecipa: “cadê minha taça?” Isso foi o suficiente para o doutorando arregalar um sorriso, buscar uma taça para Joana e colocar uma música de fundo a fim de embalar aquela conversa aprazível acerca de artes, vinhos, Brasil, Portugal e tudo o que surgisse na mente a partir da abertura causada pelos goles da bebida de Baco. Ele também providenciou a trilha sonora e, assim, mais uma troca cultural se fez, agora com a França dos apaixonados pela juventude, pelas artes, pelo prazer, pela sedução: “Quelqu’um m’a dit”, de Carla Bruni.

A partir de então, foi-se constituindo naquele quartinho uma verdadeira transação internacional, com direito a trocas bilaterais de desejos diversos por conhecer e provar os gostos do Outro. Aquela curiosidade de poder experienciar como é a sensação de ter vivenciado, pensado e, por que não, amado em outras terras, em outras camas, com outras leituras. Os dois estavam iniciando uma das maiores viagens que o ser humano pode vivenciar, deixando-se partirem de seus estados de estrangeiro para habitar, por alguns instantes, uma estação onde não havia maior bandeira, hino ou língua, exceto a do prazer.

Amaram-se com tudo o que a imaginação fértil de dois apaixonados pela arte, pela literatura, pelo vinho e pela música é capaz de fazer. Pelo chão do quarto estava aquele notebook onde Joana havia puxado para a cama para mostrar, via Google, alguns quadros do parente seu que foi pintor, além de suas roupas, a garrafa de vinho vazia e as taças com algumas gotinhas rosáceas escorrendo por sua superfície oval. Seus corpos estavam enroscados de uma forma que o parente de Joana, certamente, elegeria como uma bela imagem para figurar em algum de seus quadros.

Logo após o amanhecer foram tomar banho. Depois um café. Deram um até logo e Joana foi embora carregando em seus braços aquela edição do “Essa Terra”.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 10/06/2016
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