Um Quixote à prova de Bullying.

Paft!!!
Este foi o som que Sancho Pança ouvira antes de ver Dom Quixote alisando o rosto, agora vermelho em chamas. Quixote, que a pouco caminhava solene ao lado de seu cavalo Rocinante, recebera uma súbita bofetada de uma corpulenta senhora que encontrara em seu caminho.
– Tu em muito se parece com um insolente que me cortejava na juventude – Disse a cansada e enorme lavadeira. Mas olhando agora desse ângulo tenho certeza que me enganei.
– Oh nobre Dama, – exclamou Dom Quixote já erguido em sua dignidade. Pois espero que a senhora possa enfim reencontrar esse insolente homem a fim de apaziguar a sua honra.
Sancho Pança que montado em seu burrico via tudo mais de traz, aproximou-se de seu senhor em tom solidário: – Que humilhante meu senhor. Como consegue não se enraivecer?
-- Faço apenas uso da razão, meu caro Sancho. Simplesmente pergunto-me: isso me ocorreu merecida ou imerecidamente? Se o tapa foi merecido, Sancho, então não é humilhação e sim justiça. Agora sendo o tapa imerecido, o vexame da injustiça recai, não em mim, mas sobre quem a praticou.
Sancho refletiu por um tempo e disse: – ainda sim me parece humilhante, meu senhor. E também um ultraje.
– Um tapa é um tapa e não posso mudar, Sancho. Contudo, fazer desse tapa uma humilhação é apenas uma historinha que tu escolheste contar a si mesmo. A verdade, Sancho, é que a injuria é para mim, mais uma prova útil do que um ultraje, pois é por meio dela que aprofundo minhas convicções cavalheirescas.
– Convicções cavalheirescas, senhor?
– Sim, Sancho. Um Cavalheiro é perseverante no exercício do autoconhecimento. É por meio desse exercício que ele conquista a convicção e a fortaleza para resistir a toda violência. Então o Cavalheiro torna-se invencível no trabalho, alheio aos prazeres e superior ao temor. Um exímio cumpridor dos deveres.
– Mas vejam quem vem ali, – disse um senhor mau encarado montado em seu cavalo, acompanhado de outros três desordeiros conhecidos na região. – Se não é um velho caniço conversando com a bolota.
– Que ofensa, meu senhor. – Disse Sancho em alvoroço.
Com bom humor, Dom Quixote respondeu. – meu caro amigo Sancho. Acaso eu não sou alto e fino como um bambu e você gordo e roliço como uma bola? Que ofensa há em ouvir dizer o que está à vista de todos? As amolações são mais toleráveis para quem as espera, meu amigo. Além disso, a descortesia é próprio dos ignorantes e o Cavalheiro em alguma medida os tolera, assim como um médico tolera um enfermo.
Algumas crianças observavam animadas para ver o desfecho da história.
– Olhem crianças. – retomou o encrenqueiro. – Esses dois andam fantasiados de cavalheiros, mas são, na verdade, covardes como filhotes de hienas.
Com um movimento rápido de espada, Dom Quixote cortou a alça do varal que sustentava alguns lenções logo atrás dos provocadores. Seus cavalos se assustaram e avançaram em disparada a um lamaçal que os impedia de prosseguir. Por instinto os cavalos freiram, tornando-se inevitável que os quatro marginais fossem arremessados direto na lama, que, pela profundida, teriam dificuldade de saírem dali.
As crianças estavam agora admiradas com a astúcia do cavalheiro e riam dos homens enlamaçados que gritavam impropérios.
– Achei que reagir fosse proibido pelo pelo Código de Cavalaria, disse Sancho, tentando conter sua satisfação.
– Reagir é proibido, Sancho. Mas ações instrutivas, destituídas de raiva ou vingança são em alguns casos necessárias.
– Quer dizer que não agiu por vingança, meu senhor?
Muito pelo contrário, meu caro Sancho. Há muito aprendi a receber os gracejos de todos como meras brincadeiras de adultos criançolas. Contudo, como Cavalheiro andante, cabe a mim discernir quando devo desincentivá-los a prática da descortesia. Saiba, Sancho, que os homens são feitos uns para os outros como uma grande irmandade. Mas cabe a um Cavalheiro saber quando deve instruí-los ou suportá-los.
– Pelo jeito, meu Senhor, hoje foi o dia de instruí-los.
Ao fim da tarde, já no alto de uma colina, Dom Quixote anunciou a seu escudeiro: esta clareira me parece segura, Sancho. Vamos passar a noite aqui. A beleza atrai beleza. Tenho certeza que essa paisagem exuberante fortalecerá minha devoção a amada Dulcineia. Providencie água para os animais e volte aqui para apreciar comigo este belo por do sol.
Momentos depois, Sancho retornou muito incomodado e pois a sentar-se ao lado do mestre.
– Que cara é essa, Sancho?
– Sabe o que é meu Senhor. Encontrei na beira do rio alguns comerciantes que me reconheceram como seu escudeiro. Eles se puseram então a ridicularizar nossas aventuras cavalheirescas. Recuso-me a repetir as palavras deles, mas feriam nossa honra e manchavam nossa reputação com suas mentiras. Até o Senhor se sentiria constrangido ao ouvir tais comentários maldosos.
– Não creio que me sentisse constrangido, caro Sancho. – disse Dom Quixote inspirado pela sublime paisagem. Saiba que a injuria perturba apenas as almas dos inseguros. Mas um Cavalheiro, onde a virtude e o bem residem, a torpeza da injuria não pode tocar.
Como vendo que Sancho continuava amuado, Dom Quixote prosseguiu:
– Ora, ora, escudeiro, trate de controlar seu humor. O homem que se deprime por injurias pode vir a negligenciar seus deveres, algo impensável para um Cavalheiro. Vamos, vamos. Respire comigo e aprenda a sobrepor seu espírito acima de qualquer injúria.
Após algumas respirações, Sancho retomou, ainda afetado.
– Não entendo, meu senhor. Esses malditos estão nos diminuindo e lesando nossa reputação.
– De mim, caro Sancho, nada podem subtrair, porque todas as coisas reais, eu as tenho guardadas dentro de mim. Todos meus bens verdadeiros estão em segurança e de nada necessito.
– O Senhor fala como se nada pudesse atingi-lo. Mas e se um dia invadirem suas terras ou roubarem seus pertences? Ou se a erupção de um vulcão destruísse todos seus bens?
– Ora, caro Sancho. Se me retiram a fortuna, retiram apenas o que ela própria acrescentou, posto que meu único bem é a virtude. Como a fortuna não propicia a virtude, Sancho, a retirada da fortuna também não me afeta.
Tente entender isso, Sancho. Tudo que é realmente do homem reside apenas em seu interior. Um Cavalheiro andante ignora onde residem essas coisas caducas que dizem mudar de dono. Minhas coisas, estas não me deixam e vou tê-las sempre. Nada perco que possa me causar desgosto, porquanto ninguém possui nada além da virtude da qual jamais será despojado.
– Então, meu senhor. Alega que nada é capaz de machucá-lo?
– Sou um ser humano como você, Sancho. É claro que as fortes adversidades me impactam e me machucam. A diferença é que me tornei um Cavalheiro e por isso não me deixo derrotar. Assim, recebo e supero a dor física, a perda de amigos e familiares, a desgraça da nossa pátria, curando-me e amenizando. Também, com a justa resignação, aprendo a suportar o rigor do inverno, as enfermidades do corpo e os infortúnios do destino. Veja, Sancho. Se mesmo as adversidades do destino, aprendi a tolerar, com resignação, porque não suportaria as injurias originadas de homens prepotentes que são meros instrumentos deste destino?

Assim ouvi do filósofo Seneca, caro Sancho, em seu livro - a constância do sábio.
Assim também tomei posse de seus conhecimentos ao aplica-los na vida.


-- Surpreso com a sabedoria de seu senhor, Sancho entendeu que Dom Quixote alcançará uma posição superior ao homem comum. Tornara-se ele um Cavalheiro Andante. Agora, assim como uma flecha é incapaz de alcançar o sol, ultraje algum atingia Dom Quixote. Sua consciência residia permanentemente em lugar inacessível a injuria. Como Cavalheiro, não estava mais em condição de ser favorecido nem desfavorecido, uma vez que as consciências divinas já não desejam ajuda nem temem prejuízo.

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Sugestão de leitura do resto da saga:

Quixote - Felicidade e o Gênio da Lâmpada

Sancho Pança. - Nada é tão ruim que não possa ser piorado.

Sancho Pança. - Nada é tão ruim que não possa ser piorado.


Registra-se que apenas tentei dar uma forma mais amigável aos textos de inestimáveis filósofos clássicos.

Poucas dessas ideias são originalmente minhas. Mas como diz os verdadeiros filósofos:

" o maior mérito não está em formular belas ideias, mas em reconhecê-las e ser capaz de vivê-las em alguma medida"
Atma Jordao
Enviado por Atma Jordao em 18/03/2020
Reeditado em 20/05/2020
Código do texto: T6890671
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