O vândalo consciente
E depois de servir a sobremesa (uma tradicional sopa de pão preto com frutas secas e cobertura de creme batido, denominada "maizes supa" na península de Landmane), Marlena preparou-se para deixar Sedriks e Varvara a sós na sala de estar, o livro de Bergmanis na mesa entre eles.
- Eu posso lhe ajudar com a louça - ofereceu-se a visitante para a anfitriã.
- Nem pensar - agradeceu Marlena. - Sedriks vai cuidar disso, antes do lanche da tarde.
- Aqui em casa, temos uma divisão de tarefas - observou Sedriks. - Minha mãe cozinha, e eu lavo, enxugo e guardo tudo.
- Já pensou em aprender a cozinhar? - Varvara inquiriu Sedriks com uma ponta de malícia.
- Assim você vai roubar meu ajudante - Marlena fingiu indignação, antes de deixar o aposento.
- Eu realmente gosto de ajudar minha mãe - declarou Sedriks em voz baixa, depois que a mãe já não podia mais ouvi-los. - Ela trabalha, eu só estudo; tenho que ser útil de alguma forma.
- Já percebi que vocês são muito ligados - comentou Varvara. - Imagino que esteja tentando superar a ausência do seu pai.
- Isso nem me passou pela cabeça - retrucou Sedriks, abrindo as mãos. - E, de qualquer forma, meu pai não parava muito em casa, portanto não posso dizer que me inspirei nele.
- Desculpe - disse Varvara, tocando brevemente a mão dele sobre a mesa. - Não queria te chatear.
Sedriks curvou um canto da boca para cima.
- Não me chateou... mas eu e minha mãe não falamos muito sobre meu pai. Não traz boas recordações - admitiu.
- Desculpe, desculpe - Varvara repetiu num tom contrito, e colocou a mão sobre a dele, que não a retirou. Ficaram se encarando como se uma corrente elétrica estivesse fluindo de um para o outro, até que Sedriks finalmente desviou os olhos para o livro e disse:
- Bom, você esperou quatro anos por esse momento... "O Mar de Júrmala" está aqui, lhe esperando.
A frase quebrou o encanto e Varvara recompôs-se, retirando a mão e ajeitando o cabelo num gesto reflexo.
- Na verdade, foram cinco anos de espera - observou. - Antes da sra. Niedra morrer, eu ainda não tinha idade para retirar esse livro por empréstimo.
E abriu na página do prefácio, inclinando o rosto para sentir o cheiro do papel amarelado.
- Isso pareceu estranho? - Inquiriu Sedriks, num tom quase de desculpas.
- Respirei tanta poeira nas últimas semanas, que acho que não teria coragem - admitiu o rapaz com ar de riso. - Minha mãe até gosta de cheirar livros, mas só os novos...
Varvara começou a folhear apressadamente o calhamaço, até chegar numa gravura em cujo rodapé alguém havia feito anotações a lápis numa letra apressada.
- Um verdadeiro crime, segundo minha mãe, - avaliou Sedriks - mas ela disse para não apagar, porque poderia ter algum valor histórico.
- E tem mesmo - assentiu Varvara. - Eu sei quem fez essas anotações.
Virou o livro para Sedriks e afirmou em tom categórico:
- Foi meu tio, Adgars Builis.
- Como sabe disso? - Admirou-se Sedriks.
- Porque ele me disse, - prosseguiu Varvara - inclusive com os números das páginas onde havia feito as anotações.
- E a troco de quê ele fez isso? - Insistiu Sedriks. - Não podia anotar num caderno?
- Se você olhar o cartão de empréstimo na biblioteca, vai ver que meu tio pegou esse livro durante meses, faz uns cinco anos. Ele o usou para tentar comprovar as descobertas de Bergmanis, e acho que teve sucesso; mas depois, teve que devolver, pois outras pessoas estavam esperando por ele. Quando voltou à biblioteca, a sra. Niedra já havia falecido e o livro ficou trancado lá dentro.
- E o que aconteceu com o seu tio? - Inquiriu Sedriks.
- Me deu a lista das páginas onde havia feito anotações, caso acontecesse alguma coisa com ele; e depois, me disse que precisava viajar para investigar algumas coisas.
Varvara não precisou falar nada, para que Sedriks intuísse que Adgars Builis nunca mais retornara da sua viagem misteriosa.
- [Continua]
- [27-03-2022]