Filhos da Amazônia

Sonhava com a floresta todas as noites, sem exceção. Tudo sempre do mesmo jeito. A quentura abafada e úmida, o suor escorrendo pelo rosto, o céu escondido pela copa das árvores, a luz do sol que, atravessando a densa folhagem, mostrava um padrão rendado de luz e sombra. O som de milhares de criaturas conversando entre si. Cantos lúgubres de pássaros raros, assobios festivos, asas batendo, o som relaxante de água abundante e sapos coaxando, gritos histéricos de macacos em bando e rugidos assustadores de onças-pintadas.

E ele parado no meio da mata, só vendo, ouvindo e cheirando. Os cheiros eram a melhor parte do sonho, não conseguia explicar como, mas tinha certeza que nunca havia sentido antes, só nos sonhos, mas isso era impossível, não era? Cheiro de vida, verde, terroso, frutado e almiscarado. Acordava ainda embriagado pela doce fragrância da floresta. Sabia que era a Amazônia, mais por intuição do que por conhecimento. Pelo que sabia era paulista de nascimento e nunca havia saído do estado.

O sonho não o incomodava, ao contrário, esperava ansioso por ele. Mas a curiosidade aumentava a cada dia. Estaria visitando outra dimensão? Chegou até a pesquisar sobre projeção astral, sua alma poderia deixar seu corpo e passear realmente pela floresta toda noite? No fundo não acreditava em nada disso e ficava cada dia mais intrigado.

Tentou lembrar quando os sonhos começaram… lembrou da vó Chica, sua avó materna, contando uma lenda sobre o surgimento da Amazônia, ouviu tantas vezes que decorou cada palavra. O primeiro sonho foi na noite do velório da avó, os pais na sala velando o corpo e ele, ainda adolescente, vencido pelo sono, teve seu primeiro sonho com a floresta. Desde então, mais de dez anos se passaram sem que o sonho falhasse uma noite sequer.

Marcelo era formado em análise de sistemas e com a ajuda dos pais, abriu uma microempresa de informática, que logo cresceu e se firmou, vendia qualquer produto relacionado à informática além de fazer manutenção e suporte técnico, e ainda fornecia internet. Conseguira sucesso profissional. Morava sozinho desde a época da faculdade, tinha um cachorro e namorava uma garota incrível há mais de três anos, era um típico trintão bem conservado, com tudo encaminhado na vida, pronto para se acomodar e iniciar uma família. Visitava os pais todos os sábados, e foi em uma dessas visitas que resolveu contar sobre os sonhos.

— Mãe, nós já estivemos na Amazônia, quando eu era pequeno? — Uma pergunta tão boba, com uma resposta tão simples, mas foi capaz de fazer a mãe corar violentamente e quase engasgar com o café com leite que tomava.

— Não, nunca… Mas por que essa pergunta assim, de repente? — Disse, limpando a boca e olhando para o marido.

— Nada… é só que eu sonho toda noite com a floresta, pensei que pudesse ser uma lembrança, sei lá…

— Desde quando isso, filho? — O pai perguntou, tentando parecer desinteressado.

— Começou no velório da Vó Chica… ela costumava contar uma lenda… desde então sonho todas as noites que estou na floresta. Não é estranho isso?

— Acho que deveríamos contar para ele. — Disse o pai, olhando nos olhos da mãe.

— Paulo, ficou louco? De jeito nenhum! — Ela torcia as mãos parecendo implorar para o marido ficar quieto.

— Já passou da hora dele saber, Joelma.

— Saber do que? Fala logo de uma vez, pai.

— Você já esteve sim na floresta, parece que nasceu lá. Nós não podíamos ter filhos e a burocracia da adoção aqui é uma tortura, então… nós… meio que… adotamos você de forma ilegal… — Paulo respondeu alisando a toalha de mesa, enquanto Joelma parecia que desmaiaria a qualquer instante.

— Como assim? Não tô entendendo…

— Pagamos um cara e ele trouxe você, ainda bebê, acho que tinha quase um ano, ou um pouco mais que isso. Não sabemos de mais nada, só que você vivia na Amazônia. — Falava depressa, como ansioso de se livrar de uma carga pesada.

— Mãe, é verdade isso? Vocês não são meus pais biológicos?

— Eu falei pra você não contar, Paulo, ele não devia saber nunca! Olha, meu filho, nós queríamos muito um bebê, você sempre será nosso filho, não importa que não tenha saído de mim…

— Eu não estou acreditando nisso! Então vocês pagaram pra alguém me sequestrar? Me tiraram da minha família de verdade? Eu posso ser um nativo da floresta?

— Não sei… Não pensamos em nada disso, tentamos não pensar… só queríamos muito um bebê, não importava como… sei que parece horrível, mas olha como você está bem agora, meu filho, imagina como estaria se tivesse continuado no meio da selva? Poderia estar vivendo como um índio agora… — Joelma tentava argumentar, imaginando que fizera um favor para o rapaz, afinal de contas.

— Mãe! Pelo amor de Deus! Não pensa que a minha verdadeira mãe pode estar me procurando até hoje? Ou no quanto ela deve ter sofrido?

— Ah filho, essa gente não é como nós… são selvagens… — Ao olhar bem para ela foi como se um cristal muito fino e belo se estilhaçasse.

— Selvagem como eu? Tenho certeza que eles tem muito mais alma e coração que vocês! — Levantou da mesa, pegou seu celular e foi até a porta, sem se despedir.

— Espera, filho, é diferente… — Ele já havia saído.

Boca seca, coração nos ouvidos, dedos enterrados no estofado do assento… Então era assim estar em um avião que levantava voo? Sensação horrorosa! Deu graças a Deus por não precisar fazer isso com frequência, mas essa viagem era por um bom motivo. Estava a caminho de Manaus. Ia enfim conhecer, ou melhor, voltar para a floresta amazônica. Fechou os olhos e lembrou da conversa com Marília, sua noiva.

— Você devia ir pra floresta…

— Fazer o que? Procurar minha verdadeira família?

— Não… Isso é quase impossível… pra ter uma chance de encontrar eles, você teria que procurar a polícia e contar o que seus pais fizeram, aí sim teria uma investigação oficial e quem sabe podia dar resultado… mas seus pais, com certeza, iriam para a cadeia…

— Eles bem que mereciam… mas não tenho coragem… e se eu investigasse sozinho?

— Não custa tentar…

Ainda não sabia o que fazer, rejeitara todas as ligações de seus pais, e chegou a fingir que não estava em casa quando foram até lá. Precisava de um tempo… pensar… assimilar a coisa toda… realmente precisava estar na floresta novamente, lá era seu verdadeiro lar. Imaginou como seriam seus pais, se eram realmente indígenas, vasculhou suas memórias, sensações e emoções e estava em paz com essa ideia, até queria que fosse verdade. Sentia-se especial, diferente, filho da floresta. E ela fora um ótima mãe, o chamara continuamente em sonhos. Lembrou da lenda que Vó Chica lhe contava… ela, com certeza, sabia de suas raízes e queria de alguma forma que ele também soubesse, sem realmente contar toda a verdade. Fechou os olhos e recitou palavra por palavra, com a mesma entonação entusiasmada da avó.

A criação de Amazônia

Em um tempo muito antes do nosso tempo, em uma realidade muito antes da nossa realidade, quando o mundo ainda era povoado pelas divindades, assim que o dia se despediu, as estrelas entoaram uma canção, esperando por Jaci.

Tupã, com sua força e poder encheu o firmamento com grossas nuvens escuras, e bradava bênçãos e maldições com sua voz de trovão, riscando o céu com sua luz. O doce cheiro de terra molhada e o odor químico dos relâmpagos passearam pela noite.

Jaci despertou do seu sono e brilhou intensa, afastando as nuvens e limpando o céu. A beleza da melodia das estrelas e o frescor do fim da tempestade a fizeram chorar. Então, do som da voz de Tupã e das lágrimas de Jaci, nasceu Amazônia, menina moça, formosa, valente guerreira.

Era muito alta, ossos largos, pele beijada pelo deus sol, cabelos mesclados de todos os tons de verde, fazendo um enorme volume, que a menina não fazia questão de conter, e ainda enchia-os de flores e folhas. Tinha olhos redondos, amarelos, delineados e astutos como os das onças e voz melodiosa como a dos pássaros. Andava descalça, gostava de sentir a terra sob seus pés. Pintava o rosto para a guerra e sempre tinha o arco e flecha nas mãos. De Tupã herdou a força e coragem, de Jaci a sensibilidade e a fertilidade, tudo o que tocava florescia, germinava e revivia.

Os animais eram atraídos por ela, que sempre os amparava e acolhia. E no auge de sua vida, protegendo a natureza ela vivia. Tanto amor não cabia mais em si, e lhe expandia, a tornava imensa, poderosa e mesmo assim vulnerável, sua maior força era também sua maior fraqueza. Queria tanto proteger plantas e animais que deu sua vida por eles.

Pai Tupã, com a filha inerte nos braços, não chorou nenhuma lágrima, sabia exatamente o que ela pretendia. Não podia ser mais menina, queria ser maior. Fez dela então uma floresta, e a colocou bem no meio da Terra.

Seria eterna, mãe, rainha!

De onde sua avó havia tirado essa história? Nunca saberia. Essa lenda tinha muito mais significado agora… Tentava não pensar no que seus pais fizeram, mas era impossível. Quem era ele? Quem ele teria se tornado se não houvessem intervindo em seu destino? Tudo o que tinha agora seria legítimo? Seus pais eram criminosos, deviam ser entregues para as autoridades! Mas, por outro lado, sempre tinham lhe dado amor e carinho, apoio financeiro, apoio emocional, eram ótimos pais e não mereciam essa ingratidão. Entretanto, sua verdadeira família pode ter sido despedaçada por seu desaparecimento, sua mãe pode não ter se recuperado até hoje, seus irmãos, se é que os tinha, podem ter sido afetados profundamente por seu sumiço! Chega! O avião se preparava para o pouso e Marcelo estava exausto de tanto pensar.

Manaus era incrível, a zona urbana parecia muito com São Paulo, com seus prédios imensos, engarrafamentos, agitação, muito calor… mas era mais colorida, e o povo, ah o povo era diferente, acolhedor, hospitaleiro. Sentia-se em casa. Mal podia esperar para conhecer a floresta.

Pensou muito no que faria, já decidira que tentaria pesquisar, sozinho, nos órgãos do governos e ONGs responsáveis por desaparecidos. Seria difícil achar alguma coisa de mais de trinta anos atrás, sem levantar muitas suspeitas. Mas, tinha que ver a floresta primeiro. Só deixou a mala no hotel, tomou banho, como fazia calor naquele lugar! Pegou a mochila e foi para a agência que o levaria até o coração da floresta.

Até parecia um de seus sonhos, assim que entraram na embarcação e se distanciaram do perímetro urbano, já conseguia sentir o clima da selva, como se antecipasse algo que nunca vivera, bem, vivera, mas não em um período em que pudesse se lembrar, só no subconsciente. Seu corpo parecia reconhecer o que via, reagia aos sons, à paisagem, aos cheiros, ainda discretos. Era como voltar para o lar, um lar ancestral. Sentia-se ligado àquele lugar como se os cipós, galhos e ramos, os “cabelos” da Amazônia da lenda de sua avó, estivessem grudados a ele desde seu nascimento e o acompanharam até onde o destino, ou a intervenção humana no destino o levou.

Depois de muito tempo, enfim chegou até o interior da floresta amazônica. Pediu para o guia um momento sozinho, mesmo que ainda no alcance de sua vista, e conseguiu estar exatamente como no sonho, ele e a floresta, só vendo, ouvindo e cheirando, e sim, era o mesmo cheiro. Inspirou o máximo que seus pulmões permitiam e soltou devagar, curtindo a sensação de reviver algo. Tinha certeza de que realmente já vivera na floresta. Sua vontade era tirar a bota e sentir o chão sob seus pés, uma vontade quase incontrolável de tirar toda a roupa e correr livre, com o rosto pintado para a guerra, e o arco e flecha nas mãos, exatamente como a menina Amazônia, antes de ser transformada em floresta.

Não soube quanto tempo passou, mas depois de andar com o guia, ver inúmeras espécies de animais e plantas, e de observar de longe uma aldeia, pois não tinham permissão para entrar e conversar com os habitantes, retornaram para o barco, precisavam voltar para a cidade. A experiência foi incrível, quase espiritual, não dava para explicar com palavras. Sentia-se conectado com a floresta, quase como se ele fosse a Amazônia. Não sabia o que fazer… não conseguiria mais viver tranquilamente em São Paulo, mesmo que sua empresa e sua noiva estivessem lá. Queria viver o mais perto possível da floresta, queria descobrir quem era sua família, custando o que custar.

No outro dia foi até o centro de crianças desaparecidas de Manaus e verificou que não conseguiria encontrar sua família sozinho, o número de desaparecidos mais ou menos na época em que achava que fora raptado era grande demais e muitos ali bem que podiam ser ele… não dava pra saber. Ler sobre o desespero das famílias, ver tantas fotos de criancinhas lindas, e saber que foram tiradas de suas famílias por capricho de pessoas insensíveis à dor alheia foi demais para ele processar. Encontrou uma senhora que contou sua história, sua filha havia desaparecido há doze anos e ela ia todos os dias até o centro para saber se havia alguma notícia. Doze anos! Tinha que tentar achar sua verdadeira mãe! Já estava decidido!

Precisava voltar para SP e ter uma conversa séria com seus pais. E com Marília. Nada mais seria como antes. Havia tomado uma decisão que mudaria radicalmente toda a sua vida. De qualquer forma estava em uma encruzilhada, não havia opção indolor, não mais.

O voo de volta foi mais suportável, tinha muita coisa para pensar. Mal percebeu o tempo passar. Assim que chegou, ficou em casa uma semana, tentando se convencer de que havia tomado a decisão certa, procurando alternativas menos horríveis para seus pais, pensando nas implicações para seus negócios passar por uma mudança daquele porte. Decidiu esperar mais um mês, testar sua decisão. Nesse meio tempo foi ver seus pais.

Estar frente a frente com eles foi desconcertante, olhar para seus rostos cansados, as olheiras profundas, o abatimento, a culpa, o remorso, quase destruiu sua decisão. Mas lembrou daquela mãe, indo todos os dias procurar notícias da filha. Não era justo! Não podia deixar como estava. Devia isso a todos as crianças raptadas, de sua terra e do mundo.

— Me perdoe, mãe, mas eu preciso achar meus pais verdadeiros, o que vocês fizeram foi imperdoável, se ninguém procurasse esse “serviço” o número de crianças desaparecidas seria muito reduzido. Eu tenho que denunciar vocês… — O horror no rosto da mãe já era esperado, mas ao contrário do que esperava, não houve uma explosão.

— Nós já esperávamos por isso, estamos preparados. — O pai respondeu, segurando a mão da mãe.

— Seu pai sempre sentiu muito remorso com o que fizemos. Faz anos que queria contar tudo. Eu confesso que, por mim, levaria isso para o túmulo, que aliás, não demorarei a encontrar. Faz o que tiver que fazer, filho, mas eu quero dizer que o meu amor por você sempre foi real, como se você tivesse realmente nascido de mim.

— Eu sei, mãe, se houvesse outra maneira… Mas apesar disso tudo, eu amo vocês como meus verdadeiros pais, vocês me deram tanto amor e carinho, eu não queria mesmo ter que fazer isso…

— Não se preocupe com isso, filho, não precisa se torturar, eu mesmo vou falar com a polícia… Como sua mãe disse, eu iria me entregar de uma forma ou de outra.

Marília aceitou passar o resto da vida ao lado de Marcelo em Manaus, estava doida para conhecer a cidade e principalmente a floresta. Se casariam antes da viagem. Levou quase seis meses para conseguir transferir sua empresa sem grandes prejuízos e da melhor forma, mas finalmente estava voltando de vez para casa.

A adaptação na nova cidade foi quase instantânea, sua empresa foi bem recebida e já dava sinais de lucro. Seus pais respondiam em liberdade ao processo judicial e ajudavam na busca pela quadrilha responsável pelo rapto de Marcelo. E até agora, não havia nenhum sinal de sua verdadeira família. Ao que tudo indicava ele era um nativo da floresta mesmo, sua família não devia ter dado queixa, ele não estava nos registros. Seria quase impossível achá-los. Haveriam quantos como ele? Quantas famílias indígenas chorariam seus filhos perdidos sem chance alguma de achá-los?

Marcelo nunca desistiria. Com a ajuda de Marília e de seus pais, abriu a ONG Filhos da Amazônia, que tentava localizar famílias indígenas que possuíam filhos desaparecidos e os colocavam no sistema, aumentando assim suas chances de encontrá-los. Esperavam logo começar a obter resultados, e quem sabe achar seus pais, seu povo, no processo. Sabia que conseguiria, pois era valente guerreiro, um legítimo filho da Amazônia.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 20/05/2022
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