O Livro Proibido

Jant Glas apoiou a palma da mão direita sobre a placa de latão polido, que substituía maçaneta e fechadura na porta de carvalho avermelhada da biblioteca de Hegestap. Às vezes se perguntava o que aconteceria se um dia o vínculo fosse quebrado e a porta se recusasse a abrir, mas isso jamais acontecera antes. Era apenas um pensamento ocioso, concluiu, quando a porta abriu-se para dentro e lhe franqueou o acesso ao interior da biblioteca do castelo, onde ela trabalhava de segunda a sexta, oito horas por dia, com duas horas de intervalo para almoço e sesta. Era um bom emprego, ela bem o sabia, embora fosse um tanto... solitário?

- É uma biblioteca onde não emprestamos livros. Apenas tomamos emprestado - dissera-lhe Frauke Wassenaar, a veterana bibliotecária cujo trabalho fora contratada para assistir e, talvez um dia, substituir.

Fora uma observação espirituosa, mas que dava uma ideia da dimensão do trabalho: teoricamente, infinito, já que as fontes de empréstimo pareciam ser inesgotáveis. Mesmo com um batalhão de bibliotecárias e assistentes, não havia como fazer o serviço andar muito mais rápido, já que envolvia análises criteriosas. Portanto, em nome da segurança nacional, o governo decidira limitar a equipe permanente a apenas três mulheres: a bibliotecária, sua assistente, e a governanta - que, basicamente, era a responsável por tudo o que dissesse respeito à administração de Hegestap, exceto, claro, à própria biblioteca.

- E quem arruma tudo isso? - Indagara assustada Jant, ao entrar pela primeira vez no salão de piso de granito polido, cheio de estantes escuras de nogueira, abarrotadas de livros encadernados.

- Não somos nós, acalme-se - dissera a senhora Wassenaar com um sorriso condescendente. - É para isso que temos empregados, lembre-se.

Os criados eram outro dos mistérios que compunham Hegestap. Não eram muitos, isso havia percebido ao longo dos dias, e alguns ela até conhecia pelo nome, como Richold, o copeiro que habitualmente servia as refeições, e que ela vira algumas vezes trabalhando na horta ou no galinheiro da propriedade; ou Sieu, a arrumadeira/camareira/cabeleireira. Outros, só ouvira o nome e nunca havia visto pessoalmente, como a chefe de cozinha, Jeldou. Jeldou provavelmente tinha uma equipe, mas, com exceção de Richold, ela nunca os vira, sequer eram assunto de conversa. Em comum, todos os citados pareciam só existir em função da propriedade - e residiam em aposentos abaixo dela, aparentemente para ficarem disponíveis 24h por dia.

- Isso não é... errado? - Questionara cautelosamente Jant para a senhora Wassenaar, ao tomar conhecimento da condição dos serviçais.

- Esse não é o mundo que você conhece lá fora - respondera cripticamente a bibliotecária. - A criadagem existe em função da biblioteca, e de nós, que trabalhamos nela. Eles não são, exatamente... pessoas... como eu, você, ou Derre.

- Você é uma pessoa? - Indagara Jant certa manhã, enquanto Sieu escovava o cabelo dela em frente ao espelho do toucador, no quarto que a jovem ocupava.

- O que a senhorita acha? - Replicara a criada com um sorriso.

- Parece real o bastante para mim - determinou Jant. - Talvez pudesse estar aqui, sentada, e eu escovando o seu cabelo.

- Eu não sou capaz de criar afinidade com a biblioteca, senhorita - confessou Sieu. - Nenhum de nós, da criadagem, consegue. Por isso existimos para cuidar de vocês, que a servem.

Em outras palavras, pensou Jant, ela, a senhora Wassenaar e mesmo a governanta, Marte De Vos, só estavam ali como servas da biblioteca, o que colocava o trabalho das três mulheres sob uma outra perspectiva.

- Todas temos que servir - complementou Sieu, como se estivesse lendo os pensamentos de Jant. - Cada uma, ao seu modo.

- E Derre Huisman? - Lembrou-se Jant.

- Derre é um homem livre - sorriu Sieu no reflexo do espelho.

- Ele é o motorista de Hegestap - corrigiu-a Jant.

- Justamente. Por isso ele é livre, senhorita - concluiu Sieu. - Vai querer que eu faça as tranças?

- Por favor - suspirou Jant.

* * *

Os criados da casa não entravam na biblioteca, percebeu Jant com o passar do tempo. A senhora Wassenaar aludira a "empregados" que arrumavam tudo, mas estes não podiam ser os que ela já conhecia. Sequer Derre, o "homem livre" tinha permissão para pôr os pés naquele recinto sacro.

- Derre é um pecador - sentenciara a bibliotecária com um muchocho, quando Jant fizera uma referência ao fato.

Então, os empregados...

- Vêm do Santuário Interior, ao qual somente eu, como bibliotecária, tenho acesso - declarou Frauke Wassenaar empertigando-se.

O Santuário Interior era uma área conectada ao salão da biblioteca por um monta-carga, nos fundos do recinto. Era pelo pequeno elevador que subiam os livros coletados (sabe-se lá de onde) e por onde desciam os que eram considerados inúteis após análise da bibliotecária. Basicamente, esse era o trabalho que ambas encaravam durante suas horas de expediente semanal.

Ao lado da portinhola do monta-carga, havia uma porta de carvalho semelhante à da entrada, com outra placa de latão polido substituindo maçaneta e fechadura. Aquele era o acesso ao Santuário Interior, sobre o qual a senhora Wassenaar ainda era bastante reticente, e ao qual somente ela - e os misteriosos empregados - tinham acesso. Num momento em que permanecera sozinha no salão, Jant resolvera satisfazer a curiosidade e encostara a palma da mão na placa, mas a porta a ignorara solenemente. Felizmente, talvez; sabe-se lá o que poderia haver do outro lado...

E foi noutro dos seus momentos de solidão, que Jant Glas tomou a decisão de fazer algo que lhe havia sido dito ser expressamente proibido: pegar um livro e sair com ele da biblioteca, sem prévia autorização.

Não era um livro qualquer, e ela percebera isso assim que o retirou do monta-cargas. Ao ler o título, resolveu imediatamente enfiá-lo numa prateleira próxima, em vez de colocá-lo com os outros no carrinho, onde transportava os livros até a grande mesa de mogno da bibliotecária. Finalmente, quando a senhora Wassenaar ausentou-se por alguns instantes do salão, ela escondeu sob a blusa o "octavo", encadernado em linho amarelado, e ajustou o avental por cima para disfarçar o volume.

Mais tarde naquela noite, deitada em sua cama, apanhou o livro que deixara sob o travesseiro e à luz do abajur, leu novamente o título desbotado impresso em vermelho na capa: "Como Abrir Portas Por Afinidade". Abaixo, para não deixar qualquer dúvida sobre o tema em tela, havia o desenho de uma porta com uma placa sem maçaneta ou fechadura. Como a da biblioteca, ou a do Santuário Interior.

[Continua em: "Onde somos necessários"]

- [21-03-2024]