72

Obs: Esse conto foi inspirado, entre outras coisas, pela musica "Volta" do artista Jonny Hooker, recomenda se ouvi la antes de iniciar a leitura

____________________________________________________________

Parte 1_Encontro

Ele

Estava entre meia duzia de amigos, sentados na mesa de sempre, no fundo, canto direito, escorados na parede. O ar pesado de cigarros, as mesas meladas , paredes avermelhadas e gastas, o burburinho de conversas bêbadas, fazia-o questionar ; porque ia ali todas as quartas.

Seria a cerveja barata ou a pressão dos colegas? Certamente não era pelo karaokê, as cantorias embriagadas apenas lhe davam dores de cabeça literais. Provavelmente era o medo de perder o contato com os velhos amigos e ficar solitário.

Júlio à tantos anos enterrava essa duvida na cevada, está como tantas outras. Ao pensar nelas, girava a aliança da mão esquerda que já estava gasta e perdendo o brilho dourado, não por tê-la por anos, era casado a pouco tempo, mas pela frequência que ia ao 72.

Cabisbaixo, tinha o dedo em carne viva, seus companheiros estavam no andar de cima jogando sinuca em mesas sujas e empenadas. Seu caderno de poemas sórdidos repousava na mesa, sinal que o álcool subia -lhe a cabeça aos poucos. Com os sentidos nublados a movimentação ou a cantoria desafinada não lhe interessavam.

Na sua frente apenas a mesa, um punhado de amendoins, seu copo meio vazio meio cheio, um cinzeiro deslocado e sua escrita no caderno surrado. Sem perceber escrevera no automático, não entendendo a princípio o que redigira.

“Cabelos curtos,

pele morena,

batom soturno.

sorriso de hiena.

Imagem esta queria ver no espelho.

Ao meu lado na pia do banheiro.”

Esse lampejo de honestidade inconsciente, não fora o primeiro e não seria o último, fechando o punho ao redor do anel, percebe o número de garrafas sobre a mesa, as pessoas ao seu redor e a necessidade de voltar para casa. Depois de deixar algum dinheiro em baixo do cinzeiro, sai em direção ao banheiro nos fundos do bar.

Sem luz, porta quebrada, chão sujo e marrom como de costume, faz o que tem de fazer no mictório e para na frente do espelho, enquanto o poema recocheteia na sua cabeça embaralhada.

----”Ao meu lado na pia do banheiro”----

Com as mãos em concha, molha o rosto e tenta ficar lúcido o suficiente para pegar o carro.

----”Imagem esta queria ver no espelho”----

Bate o paletó para tirar umas migalhas e tenta tirar uma mancha da calça.

----”Sorriso de hiena”----

----” Batom soturno”----

Roda a aliança, para certificar se da sua existência, saindo em seguida daquele chiqueiro. Na porta, ainda encarando o espelho escuta pelas costas uma voz macia ressonar nos ouvidos.

----”Volta que o caminho dessa dor me atravessa, que a vida não mais me interessa…”----

Essa voz, aquela música, este lugar.

----”Se você vai viver, com um outro rapaz. Volta…”----

Teve medo de virar e ver o reflexo do espelho.

----”...que eu perdoo teus caminhos teus vícios, que eu volto até o início…”----

Tinha medo mas virou-se. Queria estar enganado e culpar a cerveja mas já não estava tão tonto, sua visão era clara como a luz que refletia nos cabelos dela.

---”...te carregando mais uma vez, de volta pro bar…”---

Desviou o olhar como sempre o fizera , mesmo ela estando com os olhos cerados, enquanto coçava os dedos enfiados nopaletó. O barulho, as conversas, a fumaça, as mesas e a parede deixaram de existir e os minutos viraram horas.

----”Volta”---

Ela

Estava atrasada como de costume, levantou atordoada da noite passada, acariciou seu gato preto que cercava o pé da cama e entrou no banheiro. Sonolenta arrancou um vestido verde dependurado atras da porta enfiando o em seguida pelo buraco da cabeça. Colocou-se na frente do espelho, traçou os olhos de preto, pintou os lábios de vermelho e fechou os brincos na orelha.

Depois de alimentar Morpheu, arrumou seus cachos com os dedos no reflexo da pia da cozinha e bateu a porta.

A caminho do bar se convencera que encontrar sua prima no dia anterior não foi um mero acaso e muito menos receber aquele convite repentino dela.

Parou na entrada encarando por alguns segundos o letreiro neon e cafona antes de cruzar a porta. Respirou fundo e sorriu pro nada, lembrando de alguma desgraça alcoílica que ocorrera ali.

A anos não sentia aquele cheiro de cerveja barata, o abraço daquela neblina de tabaco e o brilho das luzes alaranjadas. Desfilou entre as mesas e cadeiras, deslumbrando o palco de karaokê como quem reencontra um velho amigo.

Sua prima e as amigas estavam no canto esquerdo, na frente do palco, sentadas mesa. Cumprimentaram se com olhares enquanto Diana escorava no Bar e chamava o barman. Reconheceu a no mesmo instante, apesar de passados alguns anos, e já sabia qual era o pedido; uma música e uma cerveja para depois.

Encostou na mesa delas, jogou a bolsa em uma cadeira e acendeu um Winstonvermelho, trocando meia dúzia de palavras inaudíveis com sua prima em seguida. Avistado o sinal de Bruno para subir ao palco, larga o cigarro meio comido no cinzeiro e dirigi se ao tablado com os dentes amarelos à mostra.

Subiu no palanque como quem sobe ao trono , agarra o microfone com a mesma vontade de meia década atras, cerra os olhos esperando a melodia começar e encosta os lábios nele sentindo os acordes…

---”Volta, que o caminho dessa dor me atravessa, que a vida não mais me interessa”---

Essa música e esse lugar diziam que estava em casa ,as paredes vermelhas, mesas brilhantes e cigarros baratos, deixara aquele palco a 5 anos junto disso tudo e das lembranças dele sentado no canto esquerdo, no fundo, escorado na parede.

Abriu os olhos tentando sacudir estes pensamentos melancólicos apenas para se deparar com eles. Uma figura magra, esguia, estranha, com uma marca de nascença na nuca e um corte de cabelo que nunca mudaria.

---”Se você vai viver, com um outro rapaz.”---

Perdeu o fôlego por um instante e tragou o ar, parecia não bastar e seus pulmões de fumante não eram o problema; mas sim um coração nostálgico palpitante.

---”Volta, que eu perdoo teus caminhos teus vícios, que eu volto até o início…”---

O mesmo óculos, a mesma calça, o mesmo paletó surrado e a mesma expressão intransponível.

---”...te carregando mais uma vez , de volta pro bar...”---

Tomou folego mais uma vez, repousou as pálpebras na base dos olhos e terminou a canção ignorando o resto do mundo.

---”....Volta...”----

Parte 2_Mesa

Júlio

Enquanto voltava à mesa, meio sem saber o que fazia, os cabelos cacheados desceram o tablado, trocando duas frases com as pessoas em uma das mesas, pegou uma bolsa e encostou no bar.

Sentou de costas para o resto das mesas, olhando a parede, esperando alguma coisa acontecer. Sua mão esquerda pesava, a lucidez de antes desaparecera e aflito tirou um maço de cigarro do bolso, tragando até ficar sem fôlego.

“Cabelos curtos *trago*

pele morena *trago*

batom vermelho *trago*

sorriso de hiena*trago*”

Desviou o olhar das manchas vermelhas da, parede, para a mão. Tirava e recolocava a aliança sem saber o que fazia sentando ali mas agora a oportunidade de levantar e voltar para casa passara. Uma cerveja aterrissou na mesa, Diana puxou e sentou com firmeza na cadeira em sua frente, as garrafas se amontoavam formando um corredor translúcido.

Sua mão queimava, sentia o metal derreter acumulando-se no fundo do bolso. Queria dizer algo, queria dizer tudo, queria fazer qualquer coisa mas só conseguia ficar parado com as mão no bolso, enquanto ela destampava a garrafa que trouxera e despejava o liquido dourado em dois copos.

Ficaram assim durante horas, ou assim parecera, hipnotizado pelos lábios vermelhos, os olhos enquadrados e os contornos que a fumaça fazia em sua silhueta.

Finalmente tirou as mãos do bolso , a direita subiu até a nuca e apoiou a esquerda na mesa.

“-Diana, eu…”

Antes de completar a frase inclinou a cabeça para o anelar, o dedo não estava mais em carne viva e o anel sumira de fato. Surpreso recuo o cutuvelo esbarrando em uma das garrafas a qual pendia no canto da mesa, derrubando e quebrando-a no chão encardido.

Diana

Não pensou duas vezes, desatou do palco do mesmo jeito que subira. Recolheu suas coisas da mesa da maneira que as havia deixado. Trocou duas frases com a sua prima e se despediu grosseiramente.

Deslizou entre as cadeiras e firmou o corpo junto ao balcão onde deixara o pedido da cerveja engatilhado.Raspou o tampo de madeira alcançando a garrafa, catou dois copos adjacentes e mirou aquela marca de nascença no canto esquerdo do salão.

Júlio estava cabisbaixo e pensativo, tentou medir seu entusiasmo ao pousar o vidro na madeira porem o estrondo da garrafa balançou a mesa inteira e tirou o do transe.

Puxou a cadeira mais limpa e sentou com a leveza que pusera a garrafa na mesa.

Encararam se por alguns instantes enquanto encaixava um dos cigarro dum maço posto sobre a mesa. Desviou os olhos, indo alcançar uma guimba brilhante no cinzeiro metálico e ascender a boca quando ouviu a frase interrompida.

“-Diana, eu..”

Apagava a guimba no metal enquanto levantava o olhar e ver uma das garrafas estilhaçar-se no chão áspero.

Parte 3_Desencontro

Estilhaços

Por um momento parecera que não quebraria, como fosse feita de plastico. Passado o susto, era apenas um incidente, o bar inteiro olharia por um segundo ou dois, um dos garçons viria limpar os estilhaços e a conversa poderia começar. Porém isso não precedeu o ocorrido. Os segundos de olhares atentos não acabavam, os outros clientes do bar deviam estar nas mesas conversando, nas escadas indo jogar sinuca, entrando e saindo dos banheiros mas estavam fixos nos dois e aos poucos aquelas imagens tornavam-se menos nítidas e sombrias, escorrendo pelo teto, virando fumaça de cigarro.

Antes movimentado e cheio de vida, o 72, agora era um galpão deserto, e apenas com uma pequena mesa marrom, velha,suja, vazia e duas pessoas sentadas uma de frente para a outra.

Diana atordoada pela cena busca a mão de Júlio do outro lado da mesa mas a pequena mesa não era tão pequena que agora dobrara de tamanho. Desesperado ele tenta fazer o mesmo e novamente ela dobra de tamanho.Até derrubarem a mesa e correm na direção um do outro.

As parede antes vermelhas perdem a cor, toda decoração sumira, o bar, a mesa, o palanque e só restava a iluminação que outrora faziam os cabelos brilharem e as lentes dos óculos cintilarem.

Os dois recebiam aquela luz alaranjada no rosto enquanto corriam, tudo era preto, as luzes diminuíam , uma nevoa brotava do chão e apenas o brilho prateado de um anel destingia se. O brilho para, flutua na escuridão, cai no chão e toda luz some.

Despertar

Diana acorda com um barulho de vidro quebrando e seu gato em cima do criado mudo, miando de fome. O relógio indicava meia noite, muito tarde para estar acordada em dias de trabalho, muito cedo para estar acordada bebendo, pensou. Levantou com cuidado e tirou Morfeu do quarto, desviando dos cacos. Serviu o felino esfomeado e agarrou a vassoura da cozinha, varrendo em seguida o vidro do quarto, para um canto seguro.

Deitou-se confortavelmente e tentou lembrar o sonho que acabara de ter, alguma coisa com um bar, musica, uma figura esguia e nostálgica. Rapidamente desistiu da empreitada balançou a cabeça, cerrou as pálpebras e voltou a dormir, pensando no dia seguinte de trabalho.

Júlio acordou atordoado, um barulho de vidro quebrado na cozinha. Retirou a mão esquerda pressa a baixo da nuca de alguém que dormia ao seu lado. Suando frio foi ver o que teria quebrado o copo. Não havia ninguém, a janela estava aberta provavelmente um morcego esbarrara no recipiente mal colocado na beira da mesa.

Com as imagens do sono vividos na cabeça, olhou para o micro-ondas , meia noite e meia, quinta-feira, avisava o relógio do visor.

Escutou o celular vibrando na mesa da sala.

“ mensagem de Bruno : “e ai Julhão, a patroa te prendeu em casa hoje kkkkk? Cadê vc?”

“To chegando já po kkkk” Respondeu sem entusiasmo.

Abriu uma gaveta do móvel da sala, pegou as chaves do carro e de casa. Mas antes de sair sem se despedir, parou na porta e voltou para a sala, abriu novamente a gaveta, olhou para o anelar esquerdo retirando com cuidado a aliança e enterrou entre as varias coisas da gaveta.

Vestindo calças de pijama, arrancou um paletó surrado de um cabideiro embutido na parede, retirando em seguida uma caixa de óculos do bolso e colocando os no rosto, fechou com cuidado a porta e foi pra rua.