Toda vez que ele chegava em casa, antes de entrar, ainda no portão, sempre enxergava um homem na esquina. O mesmo homem todas as noites, com a mesma roupa, surgia logo após Paulo chegar em seu portão. Ele ficava lá parado olhando para Paulo, apenas olhando, como se o esperasse entrar em casa.
Paulo começou a observá-lo também. Com um olhar rápido a cada noite, percebia um pouco mais o homem. Aparentava ter uns quarenta anos, usava umas roupas elegantes, contudo antigas demais para o seu tempo. Paulo tinha um certo pudor para encarar os estranhos, pois sempre se lembrava do que sua avó lhe dizia: Poderia ser um louco lhe esperando dar um motivo para lhe arrumar uma confusão.
Outra noite conseguiu ver o homem um pouco melhor. Era lua cheia e a rua estava mais clara. Ele tinha um chapéu que lhe ocultava o rosto. Paulo queria ver se o conhecia de algum lugar, se era algum rosto daqueles procurados pela polícia ou por familiares desesperados.
Era domingo, Paulo acordou cedo e saiu para caminhar. Fez o mesmo trajeto por onde vinha do trabalho, andou em busca do homem. De repente, como dissera sua esposa, poderá ser um vizinho novo querendo amizade ou sondando o movimento da rua.
Paulo caminhou bastante, parou na mercearia e perguntou se lá alguém soubera de algum novo morador. Ninguém soube dar informações. Nem mesmo após descrever o homem com suas roupas marcantes e chapéu. Ninguém mais usava chapéu à noite!
Na outra noite, Paulo resolveu descer do ônibus uma parada depois, queria observar melhor a vizinhança e a esquina de sua rua. Passou por ela e não viu nada anormal, desceu do ônibus, resolveu dar a volta pelo quarteirão para chegar à sua rua por baixo. Caminhando já quase dobrando a esquina da rua anterior à sua, Paulo sentiu-se acompanhado de perto, virou-se e nada viu, continuou a olhar para frente, um cheiro forte de fumo lhe atravessou o rosto como se alguém acabasse de baforar um charuto logo à sua frente.
Sentiu um vento e ouviu a voz rouca de um homem dizer "Ei, está me procurando?", Paulo olhou em volta, seu coração acelerou, não havia ninguém ali. Paulo apressou o passo, dobrou a esquina, andou ligeiro, dobrou a outra esquina, subiu a rua e chegou ao portão, e, em uma última olhadela para a esquina de sempre, nada viu, olhou para a esquina de onde viera e lá estava o homem parado com os olhos cobertos pela aba do chapéu lhe observando. Paulo abriu o portão rapidamente, entrou, olhou a rua pela fenda da cortina da janela da sala, trancou a porta, ainda ofegante foi surpreendido pela esposa.
- O que houve, você demorou mais hoje? Está tudo bem? Parece que veio correndo?
- Não, nada. Pensei ter visto uma pessoa. Mas não era nada.
Paulo foi tomar banho, jantou e se deitou. A casa silenciou, a esposa dormia bem rápido, às vezes dormia antes mesmo dele voltar da ronda noturna quando conferia cada porta e janela.
De repente, Paulo sentiu como se alguém estivesse ali ao seu lado, bem ao lado mesmo, em pé. Pensou que poderia ter perdido a hora e sua esposa tentava lhe acordar. Paulo abriu os olhos e pelo canto do olho esquerdo enxergou ali parado o homem, o mesmo homem que o vinha seguindo na rua. Paulo abriu bem os olhos e ele estava mesmo ali, trazia um sorriso sarcástico nos lábios e um olhar duro e frio. Seu coração acelerou de tal forma que pensou ser o homem um anjo da morte e que agora seria o seu fim, um infarto!
- Calma! Muita calma! Só para você ver que estou aqui.
Paulo piscou os olhos e o homem sumiu. Sonhei! Ofegante sentado na cama, tremia muito. Sua esposa acordou assustada com o movimento e o barulho do marido.
- O que está acontecendo? Você está bem?
- Eu tive um pesadelo, eu acho.
- Credo, que cheiro horrível é este? Você está fumando?
- Claro que não! Que cheiro se não sinto nada?
Foi Paulo dizer isso que o cheiro penetrou-lhe o nariz, era o mesmo cheiro de charuto que havia sentido na rua.
Paulo levantou-se. Tomou água. Trêmulo ainda, pegou a bíblia para ler, mas não sabia nem o quê, pois nem era cristão ou coisa alguma. Perguntou para sua mulher sobre algo bom para ler na bíblia na hora da aflição.
Abriu então no salmo 91 e seus olhos foram em direção ao versículo que dizia
"Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos." E ele então sentiu o mesmo cheiro forte de outrora, quando ouviu de repente: "E eu sempre estou lá.". Paulo tremeu de novo, julgou-se perturbado por ter comido demais antes de deitar, julgou-se estressado de tanto trabalhar, tomou água e foi se deitar.
No outro dia, na parada do ônibus sentia o mesmo cheiro de antes. Ao entrar no ônibus para Porto Alegre, escolheu sentar-se à janela em um banco quase ao fundo onde não havia ninguém. Precisava dormir mais um pouco, a noite fora difícil. Mais uma parada que o ônibus percorreu, subiu um senhor grisalho que escolheu sentar-se justamente ao lado dele. Mais algumas paradas e o senhor lhe dirigiu a palavra.
- Eu lhe conheço de algum lugar!
- Não sei, não me lembro.
- Você é de religião, certamente?
- De religião, como assim? Não sigo nenhuma religião.
- Mas se você não é, acho que era para ser porque você tem um guardião que anda com você o tempo todo.
- Desculpa, senhor, mas eu não tive uma noite muito boa e preciso cochilar um pouco antes de pegar no batente.
O senhor grisalho entendeu e calou-se. Algumas paradas depois, o senhor desceu. Logo, Paulo chegou ao trabalho, cumpriu sua rotina de cumprimentar a todos, tomar o cafezinho, ir ao banheiro e iniciar a ronda matutina, pois era segurança do shopping.
Perto da hora do almoço, ele foi interceptado por uma senhora que lhe perguntou algo muito estranho, como se tivesse certeza de que ele teria a resposta certa para lhe dar.
- O senhor pode me dizer onde eu posso ir para encontrar quem me ajude? Estou desesperada! Perdi o emprego há duas semanas, estou doente, meu marido foi embora... Não sei o que fazer, mas o senhor sabe onde posso ir?
Ouviu a mulher lhe perguntar e ficou fitando-a de maneira distante, tentando entender se ela estava a lhe fazer alguma pegadinha, se era louca, ou se falava sério.
- Senhor, o senhor entendeu a pergunta que lhe fiz?
- Sim, mas não tenho essa informação para a senhora. Não entendo por que a senhora está me perguntando isso, aqui é um shopping destinado a compras. Há alguns serviços sendo prestados no andar superior, mas desconheço algum que possa lhe ajudar. Sinto muito!
- Eu vi ao seu lado um...
- Senhora, eu sinto muito. E ele saiu pelos corredores, como se fugisse do que a senhora tinha para lhe dizer.
Depois que almoçou, ele foi para a sala dos funcionários, recostou-se no sofá e adormeceu. Foi então que teve um sonho, ele estava ali mesmo na sala dos funcionários sozinho e, de repente, entrou pela sala o mesmo homem com quem sonhara na noite anterior. Foi então que Paulo lhe perguntou:
- Quem é você? O que você quer de mim?
O homem, com seu sarcástico sorriso nos lábios, ergueu a aba do chapéu. Foi então que ele pode ver o quanto um se parecia com o outro, exceto pela presença da barba no homem e uma magreza acentuada.
- Você ainda não entendeu?
- Entender o quê?
- Todas as mensagens que lhe mandei. Você ainda duvida de quem eu sou?
- Não sei quem você é!
- Eu sou...
E então alguém lhe tocou o ombro e lhe chamou pelo nome. Ele acordou de súbito, perdido ao ver quantos colegas estavam na sala que, em seu sonho, estava vazia. Já era o fim da hora do almoço!
Retomou o trabalho até o fim da noite. Retornou para sua casa em Viamão, mas nesta noite o homem não surgiu na esquina.
- Ufa! Acho mesmo que era imaginação.
Quando de repente, ao entrar na garagem de sua casa, deparou-se com ele em pé, à sua frente, com o mesmo sarcasmo nos lábios.
- Estou aqui para terminarmos a nossa conversa!
- Como você entrou aqui! Vou chamar a polícia!
- Você ainda não entendeu? Toque-me.
E ele foi com a mão cheia para lhe acertar um soco no queixo, mas sua mão atravessou o vento.
O homem ria alto, ria gostosamente!
- Então eu estou morto?
- Não, eu é quem sou morto! Chegou a sua hora de entender que há mais mistérios entre o céu e a terra do que lhe contaram algum dia.
- Quem é você, afinal?
- Sou seu guardião!
- Pensei que anjos da guarda vestissem branco, tivessem asas e usassem auréulas e não chapéu. Ainda por cima você fuma charuto. Anjos não fumam.
- Ah, esses são outros anjos. São os que vêm à terra conferir o nosso trabalho. Sou um guardião. Ando em tempo quase integral ao seu lado e agora chegou a hora de você me conhecer!
- Anjo de preto? Você é um demônio, isso sim!
- Isso é o que fizeram eu parecer para muitos! Mas uma coisa eu garanto, não sou anjo, mas também não sou demônio. Minha roupa é preta porque, além da elegância, é assim que passo desapercebido na terra, e posso absorver com facilidade todas as coisas ruins que vêm ao seu encontro.
- Mas você fuma!
- Desde quando fumar charuto é pecado? Nós guardiões fumamos para através da fumaça enviar nossos pedidos para os anjos da guarda e também para dissipar as energias pesadas.
- Mas, e então?
- E então que a partir desta data, você tem dois meses do seu tempo para me aceitar e buscar um caminho onde você servirá ao próximo.
- Como assim?
- Não importa por onde você vá começar, mas você deverá estar em um lugar onde você aprenderá sobre a espiritualidade e onde você poderá em breve ajudar ao próximo. Vou lhe mostrar alguns caminhos dentro destes dois meses e você escolherá. Depois lhe darei mais instruções.
- Isso é loucura!
- O que há de loucura nisso?
- Não entendo!
- Amor, o que está acontecendo aí fora? Quem está aí?
De repente, ele deixou de ouvir e ver o homem. Apenas pairava no ar o cheiro do charuto. A esposa abriu a porta e saiu para a garagem, quando sentiu o forte cheiro.
- Você está fumando de novo?
- Já disse que não fumo!
- E este cheiro?
- Eu não sei lhe explicar. Mas talvez eu consiga assim que eu mesmo entender.
 
 
 
Marília Francisco
Enviado por Marília Francisco em 11/01/2017
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