Alucinações de uma sombra.
 
 
Capítulo Final.
 
Chalev olhou para o bico do sapato, depois observou minuciosamente cada foto e os arranjos espalhados pelas paredes do bar. Aliviou a tensão das costas descansando-as no encosto da cadeira, relaxou as pernas lentamente por debaixo da mesa, com a camisa quase desabotoada, alisou a barriga, o peito cabeludo, subiu as duas mãos até os dois lóbulos das orelhas e massageou-os com o dedão e o dedo indicador.

 Conservou as orelhas tampadas por um breve tempo, conservou os cotovelos apoiados na mesa, depois direcionou as mãos para por trás da cabeça com os dedos entrelaçados.

Devaneou naquela posição até Anastasya retornar do toalete, assim que ela sentou e se acomodou na cadeira, Dhror deu um lampejo de sorriso para ela, olhou-a vigilantemente e elucubrou, meu Deus do céu! Todas as mulheres têm problemas, mas qual é o problema dessa mulher?

Por que Aleksei Throbolov e Elizaveta estavam tão temerosos! Pensou Chalev, será que Anastasya seria uma transformista, uma mulher que gosta de mulher, será que gosta de homens e mulheres, quiçá algum fetiche escabroso.

Quanto mais Chalev espreitava Anastasya, sua consciência se embotava, suas reflexões faziam sua mente agitar como um mar de ondas tempestuosas arrebentando nas rochas, mais e mais perguntas chegavam, sua cabeça balançava devido a força com que os pensamentos reverberavam.

Anastasya olhava para ele e aguçava mais e mais sua feminilidade. Mini-saia com as pernas cruzadas, uma blusa muito fina de seda branca e de gola muito larga em V que delineava os contornos dos mamilos dos seios. 

Para aquele encontro, Anastasya não usou seu tradicional batom vermelho. Nananinanão! Para aquele momento, por pura intuição femínea, usava um brilho que expunha toda a sensualidade de seus lábios, seus olhos eram só para o amigo Chalev Dhror.

Dez minutos antes que o ponteiro das horas alcançasse a marca das duas horas da madrugada, Throbolov e Elizaveta anunciaram que iriam escafeder-se, despediram de Chalev e de Anastasya. Throbolov deu um longo abraço no amigo, seguido de um forte aperto de mãos, Elizaveta deu três beijinhos em Anastasya e lhe desejou sorte, sussurrando ao pé do ouvido da amiga.

Dhror, um tanto acabrunhado, pediu para levá-la para casa, não conversaram nada durante o caminho, quando o carro estacionou em frente à casa dela, se despediram com um beijinho no rosto e um leve toque de mãos. Anastasya não disse nada, não agradeceu a carona e preteriu de dar um tchau.

Durante o trajeto para casa, Chalev estava uma pilha prestes a sofrer um curto-circuito, pensava no capô do fusca todo furado a bala, no cavalo morto no quintal de sua chácara, no latão de lixo cravejado de balas, o chefe com segredinhos bestas.

E agora mais essa, estou interessado numa mulher que tem dois problemas; toda mulher tem problemas, mas ela tem outro problema, mais um além daqueles que as mulheres já trazem de fábrica.

A impressão era que todos os amigos sabiam e a torcida do flamengo também, menos Dhror!  Chalev sentenciou em pensamentos: mulher já é um problema com seus problemas naturais, com mais problema, aí já é um deus-nos-acuda.

Quando chegou em casa, tomou um banho, escovou os dentes, lixou a unha do dedão do pé esquerdo que rasgou a meia e incomodava com força!

Foi até a cozinha, tomou um remedinho para dormir, retrocedeu para o quarto, vestiu o pijama, a meia, calçou sua luva de lã e sua touquinha azul preferida, colocou sua Pistola Taurus PT838 - .380 ACP debaixo do travesseiro e se rendeu ao mundo, dormiu.

Por volta das dez horas da manhã assomou na repartição, era esperado pelo chefe, pelo dono do fusca e pelos dois caras fortões. Ayshane Ivannievhen lhe cumprimentou com um sorriso matreiro, esquivou o olhar para o chão e entregou-lhe outro envelope, fechado com quatro grampos.

Chalev deixou o envelope cair em cima de sua mesa e foi direto para a sala do chefe.

-- Tu demoraste demais, estamos cá a lhe esperar deste às oito e meia Dhror, por acaso dormistes mais do que a cama?

Chalev sabia que o chefe já sabia que todos já estavam sabendo, que foi ele quem fez a encomenda que havia sido roubada na padaria, o roubo levou-o à loucura.

Dhror contou para Ayshane Ivannievhen, não levou quinze minutos, todos da repartição sabiam, meia hora depois, até os pingaiadas do boteco de frente também sabiam e comentavam jogando purrinha valendo doses de cachaças.

O dono do carro, senhor Amram Akiva Jacinto Aquino Rêgo queria agradecer por terem encontrado o carro, apesar do capô do carro quase ter virado uma peneira.

Os fortões, Picachu e Zébedeu, estavam putos, afinal, eles não roubaram o carro, encontraram o fusca abandonado numa estradinha de terra, como sabiam da recompensa, o dono havia espalhado pela cidade dar uma grana para quem encontrasse e devolvesse o carro, estavam levando o carro para o dono, quando encontraram com os padeiros.

A desavença com os padeiros, não foi por causa do que Severino Virgulino havia informado para Dhror, quando os padeiros viram o carro, queriam pegá-lo, pois sabiam da recompensa também, houve um bate-boca e no final chegaram a um acordo, os quatro iriam levar o carro, entregar, pegar a grana e à noite os quatro iriam fazer uma festinha particular só entre eles. Aí Virgulino Severino, ofereceu para eles as quitandas. E nós comemos tudo, pô!

Dhror se comprometeu a pagar o conserto do capô do carro, caso contrário, teria que responder um processo administrativo, provavelmente seria demitido.
Concordou também em se afastar por mais de quinze dias, procurar por um tratamento psiquiátrico para dar um alivio no quengo, afinal de contas, o cara estava na eminência de causar uma desgraça a qualquer momento. Todos da repartição já imaginavam, um sujeito qualquer perfurado com dezoito tiros na cara.

O chefe, senhor Anouck Batista Arkadiy, agradeceu todos por terem chegado a um acordo, Chalev se despediu de todos, saiu da sala, foi direto até a sua mesa, pegou o envelope branco e escafedeu-se da repartição.

Às cinco horas da tarde, passou na padaria, onde trabalhava Virgulino e Severino, conversou com eles esfregando a ponta de sua Pistola Taurus PT838 - .380 ACP para a própria cabeça, às vezes coçava a testa, a nuca e por baixo do ouvido.

Ao lado do proprietário da padaria, sempre alisando a cara com a arma, disse apenas que, se por acaso, quando ele regressasse do trabalho, mais ou menos dentro de quinze dias, se não chegassem a um acordo com o chefe, iria enchê-los de porrada e prendê-los.

Às sete chegou na chácara, colocou seu carro na garagem, fechou a porteira, abriu a porta e todas as janelas, até mesmo a porta dos fundos. Tomou banho, vestiu um calção bem confortável, uma camiseta cavada toda furadinha e dedicou todo o seu tempo pensando em Anastasya.

Às nove horas, num solavanco, ligou para a mulher que mantinha sua mente totalmente atabalhoada:

-- Alô, boa noite, gostaria de falar com Anastasya, ela está?

-- É ela quem está falando. Anastasya sabia que era Chalev!

-- Oi Anastasya, sou eu Dhror, tudo bem?

-- Tudo, obrigado e você! Por que me ligou agora? Falava alisando a parte de trás da nunca.

-- Olha, estou aqui na chácara pensando um montão de coisas, aí pensei, a Anastasya podia estar aqui, poderíamos fazer um jantar bem legal e trocarmos umas ideias. O que você acha? Falava alisando a unha que rasgou a meia, estava num comichão danado.

-- Uau! Ótima ideia, posso sim, você me busca?

-- Vamos fazer assim, vou lhe enviar um taxi, enquanto isso vou ajeitando as coisas aqui, quando você chegar começamos a fazer, ok? Vou pegar umas verdurinhas bem fresquinhas para nós. Ôh! Eu pago o taxi hem, por favor!

-- Ok, combinado. Tchau, um beijo. Ao desligar o telefone, gritou, é hoje ou nunca, cacete!

-- Tchau, outro. Após desligar, falou para as paredes, vocês vão conhecer uma deusa, ah vão!

Às dez e dez ela chegou, abriu a porteira, passou pela porta já aberta e penetrou na casa, só parou quando encontrou Drhor na cozinha.

– Ôieeee… Cheguei!

– Ôpa, olha deixei o dinheiro em cima da mesinha de centro da sala, pegue lá e pague o taxista. Por favor.

Anastasya, foi até a mesinha, pegou o dinheiro, foi de encontro com o motorista do táxi, ele estava ao pé da porteira esperando. Pagou, agradeceu pelo serviço e retornou para casa.

Ao passar perto da pedra enorme que tem entre a porteira e a casa, ela sentiu uma catinga desgraçada de forte, deduziu logo, foi aqui que Dhror borrifou a cabeça do cavalo com sua pistola. Com um esgar sentiu um pesar por ele. Compadeceu-se por ele por alguns minutos parada ao lado da pedra.

Quando chegou dentro de casa já havia esquecido do cavalo, dos tiros, até do táxi e o rosto não estava retorcido como a poucos minutos atrás.

– Então! O que vamos fazer essa noite? Perguntou Anastasya.
Anastasya aproximou pelas costas de Chalev, apoiou as duas mãos nas costas dele, apoiou sua cabeça no ombro esquerdo de Chalev e olhou para as panelas que estavam fervendo sobre o fogão.

Dhror ficou um pouco encalistrado por ela ficar tão próxima e tão graciosa no seu modo de abordá-lo, sentiu um arrepiozinho no estômago, como um raio de alta temperatura, desceu ardendo da cintura para baixo e dissipou como uma descarga elétrica no chão.

– Uhai, uma salada bem gostosa, tipo: alface, tomate, rabanete, batata cozida, palmito, milho verde, frango desfiado, azeitonas pretas, cubinhos de queijo Brie e tirinhas de cenoura. O que você acha?

– Ah! É muito bom, Bom demais! Vamos fazer o seguinte, você faz a salada e eu vou fazer um tempero separado. Olha só o que eu trouxe para nós tomarmos querido! Vinho tinto Domaine Guisset Rouge 2014.

Quando Chalev ouviu o 'querido' e viu as duas garrafas de vinho, pensou. Essa mulher é muito moderninha para o meu gosto, será que ela é saidinha? E trazer vinho! Essa noite vai ser problemática, vinho me arrebenta muito rápido. Uma mulher com problema misterioso com seus ardis, sei não!

Tudo pronto, os dois prepararam a mesa da sala, colocaram todos os talheres sobre a mesa, abriram juntos uma garrafa de vinho, encheram pela metade duas taças. Brindaram e se fartaram na salada que era suficiente para dez ou quinze pessoas.

Por volta das duas e quarenta da madrugada, eles riam à beça, riam de tudo e de todos aqueles que eles viam na lembrança. Se Anastasya estava quase tonta, quanto ele, não havia a menor dúvida. Foi aí que a coisa começou a tomar um rumo meio besta.

Chalev pediu licença para Anastasya, precisava ir até o quarto. Levantou devagar, concentrou no rumo da porta, equilibrando pé ante pé, caminhou em direção ao quarto galeando como uma garrafa no mar, passou pela porta e fechou com a chave.

Lá dentro fechou os olhos, pediu a Deus para o sono não lhe vencer, a mente estava a mais de mil, pedia ajuda a Deus, imaginava fazendo coisas com a mulher que estava em sua casa, pensou no idiota do cavalo, no latão que corria pelo pátio da repartição, pensou na festinha dos fortões com os nordestinos, no chefe burro falando tudo errado na segunda pessoa.

Chalev desembestou e não vacilou, desanuviou a mente com uma decisão. É hoje! É agora ou nunca, deu meia volta, abriu a porta do quarto, saiu lentamente com um sorriso abençoado.

Quando chegou na sala, Anastasya estava de costas, então tocou nos ombro dela e chamou a carinhosamente:
-- Amorzinho, essa noite será inteirinha só nossa!

Quando ela se virou, não acreditou, e caiu na gargalhada, riu, mas riu tanto, que chegou a doer-lhe a barriga, se curvou de tanto dor de rir, depois sentou numa cadeira e por fim, não aguentou, rolou no chão em gargalhadas, a maior gargalhada de sua vida.

Dhror estava nuzinho, peladinho, braços abertos, de botinas com meias três quartos de cor azul com listras alaranjadas.

-- Senhor Eraldonclóbes do Regoroxo! Por favor, não fique sem roupas na frente da senhora Defuntina Estilingue, hoje é dia de visitas na clínica, quantas vezes preciso falar, dona Defuntina Estilingue não se chama Anastasya, o senhor não é detetive da polícia civil. Seus filhos ficariam constrangidos e morreriam de vergonha se vissem o senhor assim.

Fodelícia Sanguessuga Dos Tavares, era a única enfermeira que o senhor Eraldonclóbes do Regoroxo obedecia. Porque ela aceitava ser chamada de Ayshane Ivannievhen.

Todos os dias, no final de seu expediente, Fodelícia Sanguessuga deixava um envelope para o senhor Eraldonclóbes do Regoroxo com um monte de frases labirínticas, só assim ele passava todas as noites calmo, analisava as pseudo mensagens, em pouco tempo, era vencido pelo cansaço e dormia em paz, aguardando sua secretária no dia seguinte.