CLARISSA E EU

A tarde é brusca e cinzenta. Como num passe de mágica escurece e vira noite. Preciso acender as luzes do quarto. Trovões e relâmpagos sacodem tudo. A chuva desce num manto esbranquiçado e forte sobre a vidraça da janela. Fecho a cortina. São quatorze horas. Com essa chuva, literalmente, não vai dar para sair. Planejava comprar algumas rosas e levar ao túmulo de Clarissa, nessa tarde. Hoje, faz um ano da sua morte.

Nesse pensamento viajante que atribula meu coração, vou revivendo uma vida inteira, enquanto a chuva lá fora descortina o céu.

Desde que partiu o sobrado ficou sombrio. O desejo que tinha e a alegria de viver se foram com ela. Deito na cama e começo a pensar em mim, em nós, nos anos vividos juntos em família. Criamos os filhos e todos já bateram asas.

A chuva cai como um dilúvio. Os trovões e relâmpagos cessam, mas o aguaceiro continua. Abro uma brecha na cortina para ver a rua. Os carros descem e sobem por ambas as avenidas com os faróis acesos. Algumas pessoas aguardam o ônibus na parada. Da janela, olho sem nenhum interesse. Olho apenas, mas, não vejo com o entusiasmo que outrora vislumbrava meu ser apaixonado pela esposa e pelo filho que estava prestes a nascer.

Era um fim de tarde chuvoso, diferente de hoje, porque era verão. Clarissa e eu, sentados na sacada, quando ela me disse que tinha feito o teste da farmácia. Meu coração foi ao cérebro de tanta emoção. Seus olhos brilhavam e com um sorriso lindo me disse que estava grávida. Tomei-a nos braços e a beijei. Depois pus no colo e levei para a cama. Era lindo nosso amor. A minha mulher esperava um filho. Uma euforia tomou conta de mim. Não sabia se ria ou se chorava. Nessa noite, conversávamos sobre os nossos sonhos. Víamos tudo com nitidez e com a alegria da juventude de quem pretende vencer no amor e no trabalho, para ter um amanhã de tranquilidade. Ela estava radiante.

No outro dia, pela manhã, levantou e saiu correndo para o banheiro, vomitou muito. Não sabia que mulheres grávidas ficavam tão enjoadas. Fui atrás dela. Cuidei com carinho. Ela tomou banho e eu também. Nos arrumamos e descemos para o café.

Atravessamos a rua e fomos trabalhar. Depois de uma hora ela passou mal de novo, colocou para fora o desjejum. Ficou suada e gelada. Levei-a ao médico. Ele disse que era normal, mas pediu alguns exames e depois prescreveu uns medicamentos e me disse que durante três meses ia ser assim e realmente foi. Nós dois vivíamos um para o outro e para mim, cuidar de Clarissa era mais que um dever, fazia por amor. Percebi que estava perdido em pensamento e fui até a janela.

As árvores frondosas do passeio já estavam ali, desde que chegamos. Decerto foram plantadas há mais de meio século. Em todo canteiro central da avenida e nas laterais. Meu avô já tinha sido prefeito da cidade, de repente, quem sabe fora na sua gestão, o referido plantio das árvores, para o embelezamento da cidade! Eram Ipês. Estavam enormes e floridos.

Vi que a chuva tinha parado, os passeios foram atapetados de flores que caíram com o peso da água. Nesse instante, passo a vê-los com outros olhos e fico emocionado. São verdadeiramente belos em seu colorido invejável, fora de época, assim como essa chuva que veio repentinamente no mês de agôsto, onde a seca e o frio são constantes.

Meu coração também ficou ressecado com a solidão, desde a partida de Clarissa.

Nosso casamento aconteceu seis meses depois da nossa formatura. Começamos a namorar no primeiro ano da faculdade. Foram cinco anos entre namoro, noivado e o casamento.

Iniciada a vida a dois, fomos conquistando e organizando tudo, conforme, nossas metas. Clarissa era uma mulher exemplar, não podia ter encontrado esposa melhor. Em pouco tempo, éramos os profissionais mais requisitados da região. Conseguimos nossa casa, do jeito que Clarissa sonhava, compramos um terreno no centro da cidade, fizemos o solar amplo, imponente, de dar gosto a qualquer um que passasse pelas avenidas. Na esquina, em frente, adquirimos o oitavo andar inteiro para os nossos escritórios. Hoje são nossos filhos que administram os negócios.

Assim vivemos juntos por mais de quarenta anos, até que a doença maldita e silenciosa nos surpreendeu e em poucos meses, minha esposa se foi. É uma solidão tão dolorosa que me verga os ombros e alma, a cada dia. Nunca imaginei que ela partisse antes de mim.

Volto à janela e vejo que já anoiteceu, de fato. Olho o relógio, são quase dezenove horas. Hora do jantar. Dispensei a moça que cuida da casa e não estou com vontade de fazer nada para comer.

Desanimado demais, não desço para preparar nada. Sinto o estômago vazio, porém, não tenho fome. Aliás, ultimamente, ando comendo pouco. Olho para o andar dos nossos escritórios, as luzes estão acesas. Certamente, eles ainda estão em reunião. Esboço um sorriso...os filhos sempre têm alguma coisa dos pais e os meus não são diferentes. Inúmeras vezes, depois do expediente, Clarissa e eu ficávamos discutindo sobre os feitos e o que estava por fazer durante o mês e no fim de cada mês, fazíamos o arremate. Ela era um tanto quanto metódica.

Sou um homem na terceira idade e aposentado. Cansado, sem querer mais me preocupar com trabalho, deixei que os filhos fizessem a hora, tomando conta de tudo. Vivo da aposentadoria e de parte dos lucros dos escritórios.

Um suspiro fundo sai do meu peito involuntariamente. Que saudade da minha Clarissa! Decido que no outro dia vou ao cemitério. Não devo fazer uma desfeita dessa a quem me amou e foi a companheira mais agradável que um homem pode ter.

Com sede, tenho que descer. Encontro o gato no pé da escada, olhando para mim com cara de fome. Preciso pôr ração para ele. Vou à dispensa e coloco sua comida e água.

Resolvo beliscar qualquer coisa da geladeira. Vejo que na garrafa ainda tem café. Ponho um pouco na xícara, mas está frio. Faço um leite com chocolate quente e como com biscoitos de aveia.

Fico na cozinha, perdido em meus pensamentos e perco a noção da hora. Quando olho o relógio é quase meia noite. Vou para o quarto. Escovo os dentes o deito na cama. Estou sem sono. Outra vez, penso em Clarissa... Durmo pensando nela.

Pela manhã, vou à floricultura que fica em frente de casa, compro um maço enorme de rosas vermelhas, ponho no banco de trás do carro e encaminho ao cemitério. Estou em jejum. A ansiedade por não ter ido no dia anterior, fez com que eu saísse sem café.

Estaciono o carro e entro. O portão está aberto de par em par. Têm algumas pessoas fazendo um enterro. Vou andando até o túmulo.

Todas as vezes que a visito limpo o jazigo, Fico olhando sua fotografia e algumas peças que lhe pertenciam em vida e que foram colocadas na sua lápide. Depois de tudo limpo e perfumado, pego o jarro e encho de água na torneira em frente ao pátio geral das orações e arrumo carinhosamente as rosas dentro dele. Enquanto isso, pressinto que não estou só. O cheiro do perfume que ela usava quando viva, passa pelo minha narinas. Minha mão treme. Acabo de arrumar o vaso, ponho-o no seu lugar e sento sobre a lápide. Fecho os olhos de emoção e sinto outra vez o perfume dela. Chamo-a. Uma leve brisa, como se fosse seu hálito fresco, lambe meu rosto. Fico em transe... quando abro os olhos as pessoas que estavam ali, já se foram. O coveiro me chama perguntando se eu estou bem e se preciso de alguma coisa. Então, descubro que já passa do meio dia. Suspiro fundo procurando ainda pelo cheiro dela. Não há mais cheiro. Estou atordoado. Será que desmaiei?! Agora, lúcido, sei que Clarissa esteve aqui comigo, deitou em meu colo, conversamos muito, como sempre fizemos, sorrimos alegremente...Ela estava feliz...Seu olhar tinha o mesmo brilho repleto de amor, logo, também, devo ficar feliz. Sei que do lado de lá, ela virá me receber quando eu me for. Nosso amor é de fato, para além desta vida.

Retorno em casa como se estivesse flutuando. Ao volante, sorrio cantarolando... O amor, deveras, é eterno, nem mesmo a morte pode contê-lo!

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 08/11/2020
Reeditado em 12/11/2020
Código do texto: T7107008
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