Recomeço

Chovia pela segunda semana seguida, impedindo qualquer excursão ao ar livre para inspirar mais uma tela, fazia quase um mês que não pintava, tempo demais. Olhando pela janela, de roupão, cabelo preso em um rabo de cavalo e uma caneca cheia de café quente e cheiroso, Élida suspirava e tentava pensar em algo que espantasse seu tédio. Se ao menos houvesse algumas crianças correndo pela casa, bagunçando a ordem perfeita dos móveis, bibelôs, almofadas e quadros, ou pelo menos um cachorro, gato, passarinho… Para arrumar as crianças era tarde demais, mas para um cãozinho mão era… quem sabe.

Pensou em Miguel, era por causa dele que não tivera um cachorro ainda, agora poderia ter. Suspirou novamente e bebeu um gole do café que esfriava, olhou a fotografia de seu casamento, estampando uma das paredes da sala, estava tão feliz, o sorriso iluminando mais do que o sol daquele fim de tarde e Miguel com aquele olhar apaixonado que sempre aparecia quando olhava para ela. Quando aquele olhar foi sumindo? Não se lembrava. Precisava pintar! Mesmo sem inspiração, tinha a necessidade de criar mais uma tela. Calçou as galochas, pegou a sombrinha e foi até seu ateliê, um cômodo bem espaçoso e iluminado logo atrás de sua casa, com entrada independente. Era lá que passava quase todo o seu tempo, sua vida florescia entre tintas e pincéis.

A urgência de seu estado de espírito se revelou uma ótima inspiração. Pintou como nunca pintara até então, a tela era crua, uma cena de chuva, cheia de paixão e pinceladas desconexas, refletia perfeitamente seu ânimo naqueles dias. Ficou estranhamente satisfeita ao observar a tela pronta, era como se olhar em um espelho que refletia sua alma, apesar de triste era bela.

Notou que lá fora já era escuridão, mais uma vez perdera a noção do tempo, olhou o relógio gigante que Miguel havia pendurado na parede principal do ateliê, já eram quase três horas da manhã. Suspirou enquanto limpava os pincéis e reconhecia que Miguel estava certo, quando ela pintava nada e ninguém existia mais, nem ele. Esse foi um dos motivos que o fizera ir embora. Não podia fazer nada, era parte dela, sua vida, sua paixão, sua alma estava ali, não mudaria isso por nada nem por ninguém.

Saiu do ateliê sob um chuvisco gelado, entrou em casa e sentiu o estômago roncar, não havia comido nada o dia todo, abriu a geladeira e viu que precisava desesperadamente fazer compras. Esquentou no microondas os restos da pizza que comprara no dia anterior e comeu com café, que não podia faltar.

Tomou um longo banho quente, fervendo, que deixou sua pele clara, cor de rosa. Limpou o vapor do espelho e analisou o rosto, cada linha, cada ruga, a pele marcada pelo tempo e pelo sol, pelos risos, gargalhadas, tristezas e choros, os olhos castanhos ainda doces e juvenis, o sorriso espontâneo mostrando dentes amarelados pelo café, bendito café. Os cabelos castanhos escuros salpicados de fios brancos, não pintaria, envelheceria com orgulho. Deu de ombros e foi dormir, não sem antes rolar mais de meia hora, resistindo à vontade de tomar um remédio pra dormir, sempre resistia, não queria se entregar e reconhecer que não dormia sem ele. Já fazia mais de ano que cumpria esse ritual antes de enfim tomar o remédio e mergulhar em um sono sem sonhos.

Despertou o sol já ia alto, quase meio dia, outra manhã perdida entre inúmeras. Precisava levantar, cuidar da casa e fazer compras, mas antes, passaria no ateliê para contemplar sua mais recente obra, batizada de Melancolia.

Passou vários minutos olhando fixamente para a tela, tentando entender o que havia acontecido. Estava lá, triste e bela, intensa, a mesma do dia anterior, não fosse por um pequeno detalhe, a silhueta de um homem desenhada com traços delicados, mas precisos, parecendo fazer parte da chuva, mas nitidamente dominando-a. Tinha certeza de não ter pintado essa silhueta.

Matutou sobre aquele mistério no caminho todo até o mercado, não prestou atenção ao que comprava nem ao caminho de volta, dirigiu sua caminhonete como um autômato, nem se lembrava qual caminho fizera. Quando percebeu estava lá, olhando a tela novamente, intrigada. Será que havia sido ela a pintar a silhueta, sabia que passara o dia e a noite toda pintando, sem comer nada, mas não estava louca, tinha certeza que não fizera aquilo. Então, quem teria feito? Como? E principalmente por quê?

Um pensamento atingiu sua mente e foi correndo olhar suas ultimas telas, estavam todas guardadas em seus respectivos lugares, olhou uma a uma e não pode conter um misto de admiração e curiosidade, em todas, desde seu divórcio, havia a mesma silhueta, disfarçada entre a paisagem. Talvez estivesse ficando louca, afinal. Ou talvez precisasse resolver aquele mistério.

Foi para casa, se acalmou, organizou as compras, gargalhou ao perceber que comprara comida de gato ao invés do atum que pretendia, comprou também uma peça inteira de pernil e uma cartela inteira de ovos. Como conseguiria comer tudo aquilo antes que estragasse? Resolveu relaxar, sair para arejar a mente. A chuva amainara e logo o tempo firmou, nublado, carregado, úmido, mas sem chuva. Trancou a casa e saiu, iria com sua caminhonete até onde a estrada a levasse ou até que a urgência em pintar outra tela a trouxesse de volta.

Ligou o rádio bem a tempo do começo da melodia de Dancing Queen se espalhar pela cabine da caminhonete, Élida aumentou o volume e pisou no acelerador. Abriu as janelas e um vento cheio de gotículas geladas armava seu cabelo. Sentia-se viva e inquieta, tinha um mistério pra resolver, uma novidade. Quando o estômago reclamou, encostou o carro em um mirante, saiu, alongou as pernas e a coluna, pegou a garrafa térmica cheia de café, o sanduíche que fizera e um bolinho de chocolate daquele saquinho com nome de mulher.

Não tinha preço admirar aquela vista das montanhas, tão perto que tinha a impressão de poder tocá-las, já havia pintado aquela paisagem inúmeras vezes, mas cada vez que visitava o local tinha um novo olhar sobre ele, uma nova inspiração, nada na vida é limitado, tudo esconde inúmeras possibilidades. Viu que as gotículas do chuvisco que caia deixavam as flores ainda mais vivas, tentaria captar o brilho que a chuva trazia para a natureza, imaginou se as tristezas que molhavam sua alma também deixavam uma aura especial em sua vida. Já era hora de voltar. Tinha a inspiração e uma ideia de como resolver o mistério.

A volta foi tranquila, sonolenta, chegou em casa e foi direto para a cama, sem relutar, tomou o remedinho pra dormir. Acordou com o despertador aos berros, levantou animada, pronta para pintar, abriu as janelas e foi recompensada com um dia de sol, colocou o roupão sobre a camisola e foi direto para o ateliê. Ligou a cafeteira e colocou uma tela em branco sobre o cavalete, pincéis e tintas alinhados. Apertou o play e o Réquiem de Mozart ecoou pelo estúdio, estava pronta.

Pintou flores quase psicodélicas, todas reluzindo com minúsculas partículas de luz, pareciam etéreas, cheias de brilho quase saltavam da tela. Nunca havia pintado nada parecido, a força e a perfeição da tela deixaram Élida assustada, não fazia ideia de que podia pintar assim. Já era muito tarde, mas ela ficou admirando a tela por um bom tempo ainda, não conseguia se separar dela. Batizou-a de Renascimento, não entendia bem por que.

Como, na vida real, a lógica sempre é o caminho mais fácil para resolver um enigma, resolveu trancar a nova tela em um armário recém adquirido que só ela possuía a chave. Se ainda assim a silhueta do homem misterioso aparecesse aí seria caso de internação em uma clínica psiquiátrica ou, quem sabe, chamar um padre para benzer e exorcizar o local, não sabia qual seria o pior.

Os dias se passaram e nada aconteceu, sua última tela continuava intacta. Por um lado se sentiu aliviada e por outro, apreensiva, alguém realmente entrava em seu ateliê e alterava suas telas. Só sabia de uma pessoa que poderia ter a chave e um motivo. Passou o dia todo aperfeiçoando um plano.

Depois que um simples telefonema confirmou todas as suas suspeitas, pôde colocar seu plano em ação. Primeiro, marcou um horário na esteticista, fazia séculos que não cuidava da aparência, olhou para suas unhas, entre compridas e curtas, sem modelo definido, as cutículas ainda manchadas com restinhos de tinta azul. Não olhou, mas sabia que sua depilação estava vencida. O dia seria cheio. Não sabia como as mulheres gostavam tanto disso. A depilação foi dolorosa e constrangedora, a manicure foi suportável e todo o tempo gasto com cabelo, massagem, cuidados com a pele e maquiagem seriam muito melhor usados se estivesse pintando, ou até mesmo dormindo.

Depois de tudo pronto, quase não se reconheceu no espelho, não parecia ela mesma, não estava autêntica, parecia uma tela que antes era simples, mas linda por ser única, que foi enfeitada até ser exatamente igual a muitas outras, sofisticadas e caras. Bem, se arrumar assim uma vez ou outra não faria mal nenhum, afinal, e para executar seu plano, até que estava muito bem.

Olhou para o relógio e viu que estava na hora, pegaria o gato no pulo. Deixou a caminhonete em casa e chamou um táxi. Não se sentia ela mesma com o vestido anil, na altura dos joelhos e o scarpin preto com a sola vermelha, até havia colocado perfume, Kenzo Amour, que rescendia como baunilha quentinha em um bolo. Quando o táxi chegou, deu uma última olhada no espelho e retocou o batom vermelho, prontinho, estava irreconhecível.

Chegou ao estúdio de pintura da sua antiga professora bem no meio de uma aula, acenou para sua mestra querida e com um olhar pela sala conseguiu localizar quem queria, lá estava ele, concentrado em sua tela. Pode observá-lo à vontade, fazia tempo que não o via, estava tão bonito, ainda mais assim, entregue a uma tela, jamais imaginou que poderia vê-lo nessa situação. Seus cabelos tinham muito mais fios brancos do que se lembrava e seus olhos, olhando para a tela, tinham aquela luz, aquele fogo, que antes era destinado só a ela. Sentiu uma agulhada de ciúmes, então era assim que ele sempre se sentiu? Revelador…

Não queria perturbá-lo enquanto pintava, mas precisava ver sua tela, o que ele pintava de maneira tão apaixonada. Como quem não queria nada, começou a passear entre os alunos e admirar suas telas, ninguém parecia notá-la, foi andando sem pressa até parar bem atrás dele. A pintura logo chamou sua atenção, era um esboço ainda, mas podia distinguir nitidamente seu próprio rosto, com todas as imperfeições que a faziam única. Então continuava sendo pra ela, aquele olhar.

Sentia as batidas do seu coração nos ouvidos, teve vontade de tocá-lo, abraçá-lo, sentir seu perfume, tão conhecido, dizer que o queria de volta. Recompôs-se antes que as lágrimas que boiavam em seus olhos fizessem escorrer todo o maldito rímel. Saiu antes que fosse descoberta, sentou-se em um banco, do lado de fora do estúdio e esperou o fim da aula.

Viu, um por um, os alunos saindo, ele provavelmente seria o último, tão dedicado que era em tudo o que se propunha a fazer. Levantou-se assim que o viu passar pela porta, distraído, ainda colocando uma mochila nas costas.

– Miguel – chamou com a voz trêmula.

Ele parou, olhou para trás e levou meio segundo para reconhecê-la.

– Élida? O que está fazendo aqui? – Seu sorriso era igual ao de um menino travesso pego em uma de suas peraltices.

– Precisava ver com meus próprios olhos… Você me deu um baita susto, quase chamei a polícia para te levar, invasão de propriedade e alteração de trabalhos alheios é crime, sabia? – Embora quisesse parecer séria, não conseguiu, acabou rindo no final da frase.

– Você demorou muito para descobrir… Estava quase indo te mostrar eu mesmo… Me diz o que achou… – Em seu olhar havia uma prece muda para que ela tivesse entendido o que ele pretendia com aquilo tudo.

– Eu acho que você não foi nada sutil… e se esforçou muito. Aprendeu a pintar e alterou minhas telas só pra me mostrar que faltava alguém na minha vida, apesar de tudo… Mas foi você quem foi embora, que não aguentou que a arte viesse sempre na frente…

– Não me importo mais que a arte venha na frente, contanto que eu esteja logo atrás. Podemos ir até a sua casa para conversar melhor? – Mais uma vez o apelo mudo, os olhos implorando uma nova chance.

Ela continuou olhando para ele, enquanto em sua mente todas as lembranças dos tempos felizes desfilavam, eram muitas… O primeiro olhar, o primeiro beijo, o sim pensando ser para sempre, o cheiro de cookie recém assado nas manhãs de domingo, as horas na banheira, cheia de espuma, onde longas conversas aconteciam… Não sabia realmente o quanto sentira a falta dele até estar na sua frente, sentindo seu perfume, lembrando o gosto de sua boca. Não resistiu…

– Vou chamar um táxi.

– Não precisa – disse estendendo o capacete que segurava – estou de moto. Vamos?

Élida, nem pensou que seu vestido voaria ou que o capacete estragaria seu penteado e maquiagem, pegou o capacete e subiu na moto, colocou os braços ao redor da cintura de Miguel e rumou em busca da felicidade perdida.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 21/05/2022
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