14 de maio

Se minha memória me permite recordar, e estou certo disso, quatorze de maio foi uma data marcante. Ela ainda me rouba noites de sono, a memória daquele dia é tão clara como se fosse ontem. Tínhamos um grupo que se reunia semanalmente para conversar sobre os livros que liamos, era como um clube do livro. Éramos adolescentes ainda, o tempo nos permitia mergulhar nas histórias e perpassar rapidamente por todo o enredo. Nosso grupo era composto por quatro rapazes. Sentíamos falta de um toque feminino na discussão, mas nunca nos atentamos o suficiente para esse fato. Foi quando conhecemos ela. Nosso grupo sempre ficava junto durante o intervalo, quando em uma de nossas rotineiras conversas ela passou por nós. Ouviu como conversávamos sobre literatura com tamanha profundidade, quis estar engajada nesse assunto. Foi daí então que adotamos ela para o nosso clube. Agora éramos cinco. Quatro rapazetes, esquisitos excluídos e uma maravilhosa garota. Sim, esse era o adjetivo que costumávamos nos referir a ela. Agora discorrendo sobre o fato percebo o quanto era estranho. Não posso nos culpar, éramos crianças ainda, explorávamos o mundo. Ou melhor, explorávamos aquilo que diziam dele. Continuamos nossos encontros semanais, agora com uma nova inquilina. Ela que com seus minuciosos comentários, lançava cor para aqueles detalhes tão sem graça. Durante tanto tempo reunidos, nossas conversas eram como os televisores de antigamente, que rodavam filmes mudos e sem cores. Se eu pudesse apostar dinheiro, diria que todos ali eram apaixonados por ela. Sempre que ela não estava conosco, comentávamos a sorte de nos ter deparado com ela. Falávamos sobre seus cachos, seu sorriso branco, sua boca carnuda e principalmente sobre sua inteligência. Não tínhamos certeza se ela era mais inteligente porque era bonita, ou se era mais bonita porque era mais inteligente. Fiquei doente após um longo período, comecei a tomar remédios e grande parte do meu dia eu passava com náuseas. O que era semanal, passou a ser mensal e logo após anual. Nosso grupo foi se separando, cada um tomando um rumo diferente. Na época não tínhamos redes sociais, éramos completamente excluídos disso tudo. Decidi então criar uma, foi quando tentei procurar por meus antigos amigos, mas não os encontrei. Apenas ela, sim, ela tinha ótimo ângulos para as fotos. Ela se formara e agora era enfermeira. A única recordação que eu tinha daquele grupo era uma foto que tiramos um dia no parque, admito que meu olhar me acusava pela paixão que me tomava. Apesar do grupo ter separado, ela ainda me visitava periodicamente. Conversávamos sobre os livros que liamos, parece que nada mudava. Mas ainda assim, sentia falta dos outros três. Recordo-me até hoje de nosso último encontro, parece que eles iriam se mudar, mas foi tão de repente. Fiquei triste, porém aceitei a situação. Me abraçaram e disseram que ainda nos veríamos. Por mais que eu procurasse eu não os conseguia achar. Por mais tempo que passássemos juntos, eu não conseguia me lembrar dos nomes. Foi quando essa minha amiga um dia me deu uma última notícia, que aquele seria nosso último encontro. Tentei segurar em seus braços e pedir para ela não partir, mas ela me acalmou e explicou que ela não era mais útil ali. Ao dizer aquilo, senti como se a amizade dela fosse um instrumento. O tempo passou mais um pouco e finalmente consegui aceitar. Não adiantava mais chorar, nem na rede social mais eu conseguia achar ela. Talvez tivesse me bloqueado, mas tanto faz, aquilo já não me afetara como antes. O buraco em meu peito já estava feito, o vazio já me tomava. Um dia desses decidi desabafar com minha mãe, ela afagou seus dedos em meu cabelo e me disse o quanto eu era maravilhoso. Senti que no fundo ela não ouviu um pingo do que eu tinha dito. Foi quando em um dia nublado passando muito mal ainda pelo efeito do remédio, decidi fuçar minhas gavetas. Sei que uma coisa não tem nada a ver com outra, mas o meu achado daquele dia foi surpreendente. No dia quatorze de maio eu vislumbrei novamente nossa foto, muitas lágrimas escorreram por meus olhos. Nela estava apenas eu e ela. Meus outros três amigos não o estavam mais ali. A roupa dela também era diferente do que eu lembrava, usava um jaleco branco enquanto sorria ao meu lado. Meus amigos realmente se mudaram, espero que onde quer que eles estejam, levem nossas lembranças. Já ela, sinto muito por não ter sido suficientemente bom, mas dei o melhor de mim.

R S Canhadas
Enviado por R S Canhadas em 04/05/2024
Código do texto: T8055875
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