O SEGREDO DE JOANINHA

O SEGREDO DE JOANINHA

O. Zarref

(Para a minha neta Gigi, que me pediu

que lhe escrevesse um conto de Natal)

Francisco Antunes não acreditava em Deus. Era um irremediável e confesso ateu. Mas nem por isso deixava de ser feliz, muito feliz. Casara, doze anos antes, com Ermelinda Santos, uma moça prendada, filha única de um abastado comerciante da Baixa Coimbrã. Dessa união, nasceram-lhe dois filhos: o Pedro, agora com 10 anos, e a Joana, uma pequenita ladina, de 7 anos.

Era um homem de porte atlético, de aspecto agradável e de lhano trato. Subira, a pulso, na vida, como mecânico de automóveis. Na fase do namoro, tivera os seus problemas e enfrentara graves divergências com os sogros, que almejavam para a filha um partido melhor. O certo é que, aos 40 anos, podia gabar-se de possuir uma oficina própria (a FRANTAUTO, ali para os lados do Calhabé), fruto, apenas, do seu esforço e do seu programado aforro. Não aceitara nunca um chavo que fosse dos pais de sua mulher.

No seu modesto lar, respirava-se felicidade! Não obstante as diferenças de temperamento, de cultura e de convicções, dava-se bem com a mulher e mesmo as quezílias e os atritos com os sogros foram-se esbatendo com o tempo, acabando por se diluirem com o nascimento dos netos.

Era ao entardecer de um daqueles dias que antecedem o Natal.

Antunes fôra, sozinho, à Baixa – como sempre o fazia nestas alturas – para as sacramentais compras dos presentes. À esposa – que adorava e coleccionava colares –, tinha-lhe comprado mais um belo espécime; à sogra, uma ânfora Vista Alegre; ao sogro – que fumava cachimbo –, uma saqueta de tabaco, de excelente marca; ao filho – que adorava ler J. K. Rowling -, o último romance do Harry Potter; e, finalmente, para a filhita, uma daquelas bonecas (que ele, pessoalmente, considerava horríveis!) que tanto podiam ser princesas, como borboletas, como sereias, como noivas, todas made in Indonesia, mas que eram o enlevo e a alegria da pequenita.

Quando chegasse a casa, guardaria os presentes num armário do seu escritório e só na véspera de Natal, à noite, depois da ceia, seriam pendurados no pinheiro, para serem abertos no dia seguinte, de manhã. Era assim o ritual de todos os anos. Nada de Menino Jesus, nem de Presépio! E muito menos desse velho lapónio, barrigudo e barbudo, a quem chamavam Pai Natal!

Enquanto se dirigia para o local onde estacionara o carro, Antunes ia observando o que o rodeava. Estava frio, mas o bulício, nas ruas, era espantoso, como de costume. Gente e mais gente, moles de gente, de cá para lá, carregando embrulhos multicores e sacas coloridas, entrando e saindo de todo o género de estabelecimentos a abarrotarem de multidões, numa lufa-lufa estonteante; os encontrões, as desculpas, os sorrisos, o néon dos anúncios, os enfeites natalícios com pequenas lâmpadas azuis, vermelhas, verdes, amarelas; os arranjos e figuras em forma de arco, de estrelas, de árvores, de anjos, luzes multicolores, o som de uma melodia adequada à época festiva e, no ar, também, aquela sensação de paz, de bonomia, de amor e de solidariedade para com o próximo... O espírito do Natal!

O toque do telemóvel sobressaltou-o. Era a mulher, aflita:

- Vem depressa, Chico, a menina está muito mal!

De manhã, a miúda acordara indisposta e com uma pontinha de febre. À cautela, obrigaram-na a ficar na cama. Agora, isto! Num ápice, pôs-se em casa. A criança ardia, tal era a temperatura! Mal se mexia e tinha extrema dificuldade em respirar. Considerada a gravidade da situação, foi chamada a ambulância do INEM, que a levou, de imediato, para o Hospital Pediátrico, onde ficou internada, para exames. No dia seguinte, piorou. Foi-lhe diagnosticada uma broncopneumonia, mas a equipa médica, segundo informação confidencial veiculada para os pais, suspeitava de coisa pior.

A dor, o desespero, a ansiedade - instalaram-se em casa do senhor Antunes. As duas mulheres não faziam mais do que rezar e chorar, chorar e rezar. O sogro não largava o cachimbo fumegante, andando, aos tropeções, de um lado para o outro. O Pedrito passava os dias, cabisbaixo, a um canto. Ninguém comia, nem dormia. Um autêntico caos!

Ao terceiro dia, o estado da miúda agravou-se: passou de muito grave a crítico. Transferiram-na para a UCI. Antunes, nesse dia, à tarde, saiu do Hospital desesperado, completamente arrasado! Estacionou o carro no parque do Mercado e deambulou pela Baixa, como um fantasma, à procura de não sabia o quê... Calmantes, analgésicos, uma farmácia! Deu por si na Praça 8 de Maio. Saiu da farmácia e olhou, de soslaio, para a Igreja de Santa Cruz. Uma força estranha, irresistível, atraía-o para lá. Entrou. Vagarosamente, deu uns passos pela nave. Impressionaram-no vivamente os magníficos azulejos historiados, em azul, e a abóbada manuelina, de grande beleza, flanqueada pelas capelas. Numa delas, do lado direito, deparou com a escultura de uma Virgem. Olhou, longamente, para ela, lendo a frase que tinha como auréola: “O meu coração imaculado é o teu refúgio”. Ali permaneceu durante um largo pedaço, com a mente vazia e um aperto no coração. Não blasfemou, não falou, nada pediu. Quando saiu do templo, pareceu-lhe que se sentia mais leve, estranhamente mais confortado. “Efeito das aspirinas e do calmante” – pensou. Foi buscar o carro e rumou para casa.

No dia seguinte, logo pela manhã, uma notícia animadora: a menina começara a recuperar! A esperança renascia naquela família! Souberam pelo próprio chefe de equipa médica que, felizmente, não se haviam confirmado as suspeitas havidas. A Joaninha estava livre de perigo e, mais uns dias, poderia ir para casa. E assim foi. Teve alta e regressou ao lar três dias antes do Natal, para suprema alegria de todos os seus.

Na véspera de Natal, manhã cedo, o pai foi acordá-la, de mansinho:

- Ó dorminhoca, acorda! Tens de ir ajudar a mamã a enfeitar a árvore! – disse-lhe, carinhosamente, acariciando-lhe os cabelos e beijando-a na fronte.

A pequenita sentou-se na cama, ensonada:

- Pera, papá! – e, com o dedinho indicador, começou a retirar do canto dum olho umas remelitas secas – Inda aqui me ficaram umas migalhitas de sono!...

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À noite, a ceia foi faustosa. Não faltou nada naquela mesa, desde os mais suculentos manjares às mais extravagantes e deliciosas iguarias. Pela primeira vez, Francisco Antunes autorizou o sogro a tratar da ementa e a arcar com as despesas. E o sogro não se fez rogado: foi um autêntico nababo! Mas a maior surpresa da noite aconteceu na altura de pendurar os presentes, quando Antunes foi buscar uma grande caixa ao escritório e a abriu.

- Um presépio!!! – gritaram, alegremente, os miúdos, que foram logo armá-lo sob a árvore de Natal.

- Papá, também podemos pôr os sapatinhos? – pediu a Joaninha, a medo.

Para surpresa geral, autorização concedida.

- Vá... Agora, cama! São horas!... – disse Antunes em tom categórico.

Depois dos sogros saírem, a esposa comentou:

- Como vais descalçar esta bota? Que vais pôr nos sapatinhos? Os miúdos...

Interrompeu-se, ao ver a Joaninha surgir no cimo das escadas, em pijama:

- Sei um segredo! – disse ela, suavemente.

Contou então aos pais que, quando esteve no Hospital, falou com o Pai Natal e que este lhe disse que, este ano, lhes ia oferecer uma bicicleta, a ela e ao Pedrito; e para contar essa novidade só ao papá e à mamã, na véspera de Natal, antes de ir para a cama...

Antunes ainda estava atónito e de olhos muito abertos, pensativo, muito depois da pequenita ter voltado para a cama.

- E agora?! – disse a mulher, entrelaçando os dedos. – Agora não é só uma bota; é um par delas... – ironizou, mesmo sem vontade.

O marido respondeu-lhe, resoluto:

- Agora... vem comigo! Comprei-as ontem à tardinha e escondi-as na arrecadação da garagem. Vamos buscá-las. São levezinhas.

E foi nesse momento que Francisco Antunes compreendeu tudo! O Pai Natal existe, sim, num mundo mágico e de fantasia que faz bem à alma e aquece o coração de miúdos e graúdos. Tornou-se uma tradição ligada directamente ao nascimento do Menino Jesus e um símbolo que encerra valores que despertam, reavivam e fortalecem os sentimentos humanos: um símbolo de dádiva, de amor e de fraternidade.

Zarref
Enviado por Zarref em 11/04/2009
Código do texto: T1534381
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