Um conto para o Natal
 
Como em todo Natal, eu voltava de São Paulo para a casa de minha família sempre no dia 24 de dezembro, véspera da data mais importante do ano para a maioria das pessoas. Tempo de ganhar e dar presentes. Pelo menos era assim que eu sempre via o Natal. Mas naquele ano algo mudou a minha opinião, e eu nem sei dizer o que realmente aconteceu, mas foi mais ou menos assim...
 
Eu havia trabalhado até o meio-dia. Saí da empresa e fui para um shopping da região, onde consegui comprar mais alguns presentinhos de última hora. Nunca se sabe quem virá à noite.
Ao me dirigir ao meu carro um pensamento me aporrinhava o tempo todo: “por que tantos presentes?”, “será que não há algo mais importante do que isso?”. Bem, eu ignorei e segui a minha vida.
No trânsito eu observava os outdoors e a pressa das pessoas em chegar a casa mais cedo. Talvez para fazerem os preparativos da noite, ou arrumar a árvore, ou então fazerem mais compras.
Fui seguindo, eu e meu carro, no percurso costumeiro. Ruas, avenidas, carros, decorações natalinas e semáforos. E foi num sinal vermelho, ao lado de uma praça, que tudo se desencadeou.
As crianças estavam todas lá, fazendo malabarismos, mágicas, limpando vidro dos carros e outras sem fazer absolutamente nada. Algumas mal saíram das fraldas, outras no auge da adolescência.
Por instinto eu fechei a minha janela. Lembrei-me do guri que assaltou a minha irmã e cunhado quando a minha sobrinha tinha apenas três meses. Levou apenas dinheiro para ele, mas dos que estavam no carro, levou embora a inocência de que isso nunca aconteceria com eles. Por sorte, ninguém se machucou. Dinheiro vai, dinheiro vem.
Voltando às crianças, a minha vontade era de abrir as portas do carro, colocá-las dentro dele e levá-las para comer no Mc Donald´s, que eu ainda acho que é o grande sonho delas. Mas eu não fiz nada.
Logo hoje, pensei, que não tenho nenhuma balinha para poder ofertar. Nem ao menos um chiclete.
A adolescente grávida, uma barriga enorme, desfilava correndo atrás das outras meninas. Uma criança esperando outra criança, pensei. As crianças, sujas e ramelentas que choravam de fome. Então, lembrei-me da Madonna, seu bebê africano adotado e o mundo todo criticando.
Não dá vontade de adotar a todas elas?
Será que é tão impossível oferecer um mundo mais digno para essas crianças?
E o que eu fiz?
Eu não tinha feito nada até então. Mas dentro de mim a alma chorava e pedia perdão ao universo. Afinal, eu também falhei, estava fazendo compras em um shopping center, desperdiçando tempo e dinheiro em coisas fúteis que talvez nem fossem usadas.
Ousei abrir a minha janela. Se elas me assaltassem, levariam os presentes que comprara, e daí?
Surpreendi-me ao ouvir o menino me perguntar se eu tinha alguma coisa para ele comer. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Estacionei o meu carro, desci dele e fui para o meio das crianças. Lá eu ouvi as suas histórias. Algumas eram mentirosas, eu sei. Elas não iriam deixar esta oportunidade passar em branco e florearam o mais que puderam para eu me comover ainda mais.
Mas eu lia a história de cada uma, através de seus olhos. Os olhos diziam tudo o que a boca não conseguia pronunciar. Umas, desconfiadas, me olhavam meio de lado, achando que eu era da polícia, da Febem ou seja lá o que for. Outras queriam sentar no meu colo e ganhar apenas um carinho.
Eu contei quantas elas eram. E estava rodeado por quinze crianças ali naquela praça. Perguntei onde moravam, elas desconversavam. Perguntei dos seus pais, elas não diziam. Lembrei-me de Chico Buarque e o Brejo da cruz, da Igreja da Candelária e dos milhões de meninos de rua desse Brasil.
- Vocês estão com fome?
A resposta foi um uníssono sim.
Então eu disse que nós iríamos fazer uma ceia de Natal ali, naquela praça. Muitos olhos brilharam. Muitas não acreditaram. Perguntei o que elas gostariam de comer. Um Big Mac foi a resposta (está vendo como eu estava certo?).
Foi aí que eu tive a idéia de levá-las para a lanchonete. Mas pensei melhor e achei de muita responsabilidade fazer isso. Eu nem conhecia aquelas crianças, que naquele momento estavam elétricas. Acalmei-as e disse que iria comprar a nossa ceia.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh....!!!!
Foi esse o coro que ouvi, como quem dizia, esse não volta mais aqui. Mas eu as tranqüilizei e afirmei que voltava, e com a nossa ceia; que elas deviam limpar um pedaço da praça pois iríamos cear ali. Pedi uns 40 minutos de tempo e deixei as crianças com um brilho desesperado nos olhos, como se eu fosse o último Noel e todas as esperanças delas estivessem depositadas em mim.
Entrei no carro e corri para o Mc. Dentro da lanchonete chamei o gerente e expliquei o meu caso, falei das crianças, dos sonhos delas e da vontade delas de comer um Big Mac. Na verdade, eu queria algum brinde para elas, um brinquedinho, desses que eles dão nos lanches. Apenas isso.
De repente, eu ouço atrás de mim uma voz de uma senhora dizendo que eu era um anjo. Não, minha senhora, eu não sou, não. Se fosse, eu teria tentado fazer alguma coisa antes. Ela me disse que a hora certa era o momento presente, e isso me encheu de um sentimento que nunca havia sentido.
O gerente me fala:
- Que tal trazermos essas crianças para cá e fazermos uma festa para elas? Hoje o movimento é fraco e logo fecharemos. Podemos perder mais uma horinha e dedicar a elas.
- Sério?
- Sério. Eu cedo o espaço, dou alguns brinquedos que tenho aqui.
- Ótimo! Eu pago os lanches e as bebidas.
- Eu também quero ajudar, falou a senhora.
E, sem que eu percebesse, virou um grande movimento.
Quando vi, eu estava chegando na praça com mais cinco carros. As crianças me olharam desconfiadas e até tentaram fugir. Mas eu gritei e falei:
- Ei, sou eu. Eu voltei e tenho uma grande surpresa!
Quando eu contei para elas sobre onde iriam, elas pulavam de alegria, gritavam e algumas até choravam. Nós as colocamos todas elas nos carros e rumamos para a lanchonete. Tudo isso em menos de meia hora.
Ao chegarmos à lanchonete, todos os funcionários nos esperavam do lado de fora. Eles saudaram as crianças, levaram-nas para lavarem as mãos, deram brindes, chapeuzinhos, bexigas e acomodaram todas em seus lugares.
Lá elas comeram o seu lanche favorito, beberam refrigerante, ganharam brinquedos e, pasmem! A tal senhora que havia falado comigo chegou com algumas amigas, com sacolas de brinquedos e roupas usadas.
A alegria foi geral. O Natal estava mesmo acontecendo ali. E com coisas tão simples. Eu mirava os olhos daqueles meninos e agora, sim, eu via a criança que lhes fora roubada emergir em cada olhar. Muitas me olhavam e diziam obrigado, mas não com a boca e, sim, com a alma.
E eu não fiz nada. Nem duas horas durou este evento que não tinha sido planejado. E quantas pessoas apareceram do nada!
- Não disse que você era um anjo? a senhora tornava a repetir.
- Mas eu não sou!
- Você sabe o que é um anjo, meu filho?
- Sei, eles têm asas...
- Nada disso. Os anjos são mensageiros de Deus. E você trouxe uma mensagem dele para nós. E todos nós ouvimos e agora estamos em comunhão com o Divino. Graças a você.
Eu chorava. As crianças vinham me abraçar.
- Tio, brigado!
- É, sim, tio, brigadu!
- Valeu, véio!
E foi assim que tudo aconteceu.
Essas crianças, eu nunca mais as vi. Aliás, eu nem sei se elas são reais. Voltei àquela praça muitas e muitas vezes, e nada delas. Seriam elas anjos também? Porque o que elas me deram foi muito maior do que eu ofertei. Elas me devolveram a capacidade de acreditar e amar ao próximo. Será que elas têm noção disso?
Só sei que agora neste Natal que se aproxima, não vou comprar mais presentes de última hora, nem vou ficar me enchendo com as bobagens que oferecem nesta época.
Hoje o meu Natal mudou. Mudou de endereço. Hoje é Natal no meu coração. E todo dia é dia de Natal. E sempre que posso ofereço um pedaço desse meu Natal para os outros. E me sinto bem. Sinto-me em comunhão com uma força que me eleva e me faz chegar lá. Lá onde é o meu lugar. Lá onde tudo tem a sua hora. Lá onde a beleza é ainda mais bela, e todas as crianças têm o seu próprio Papai Noel.
Amém!
 
 
Texto publicado no livro Muito Mais, de Márcio Martelli,
Editora In House (2007).