É realmente uma azáfama o tempo do Natal.
            Veio ao meu encontro uma pessoa quase em desespero. Dei-lhe meia dúzia de conselhos piedosos e livrei-me dela com algumas recomendações eivadas de hipocrisia. Viera em busca de um amigo, mas eu estava no meu dia de conselheiro.  Estava sem tempo.
            Estacionei  o carro indo pra missa. Encontrei-me com um pobre coitado em petição de miséria. Amarfanhado, sujo. Soprou em meu nariz aquele bafo fermentado de cachaça. Livrei-me dele com algumas moedas. Segui impávido e firme para a “minha” igreja após ter dado a “minha” esmola.
            Mais tarde dei um pulo no Lar (Asilo agora tem esse nome politicamente correto), para entregar o presente de Natal da Sebastiana, a “minha” velhinha, Quando ela, porém,  ameaçou engatar pela enésima vez, a recitação da ladainha dos seus ais, despedi-me apressado. Tenho muitos compromissos. Outro dia... hoje não. Deixei lá a Bastiana com um pacotão inútil entre as mãos, e aquela desilusão de sempre, imensa, estampada no rosto gordo e enrugado.
            No escritório, a auxiliar do almoxarifado:
            -“Não agüento mais. Não sei como continuar. Meu marido passa as noites fora de casa... As prestações da casa estão atrasadas... O sr. sabe, a Caixa executa... E além disso, o filho mais velho...”
            -“É preciso ter paciência minha senhora. Tenha confiança em Deus... Verá que ele de um modo ou de outro, irá ajudá-la. A senhora sabe  que são Francisco de Sales diz... que...” E assim...
            Ainda bem que sei que um cristão tem que suportar com resignação os sofrimentos desta vida. E os sofrimentos alheios são os mais fáceis de serem suportados.
            Ao meio-dia no refeitório da empresa avisto o gerente da filial do interior com o qual eu tivera uma discussão violenta na última assembléia geral. Ocupo uma mesa do outro lado do salão para não ser obrigado a cumprimentá-lo. Não quero que me tome por um “esquentado”, mas era meu dever intervir naquele dia.
            No entardecer, em plena calçada na avenida, encontro uma cigana. Pés perfeitos, embora encardidos. Cabelos pretos, compridos, brilhantes. Traz no colo uma criança quase raquítica. Estava sem moedas e com as mãos ocupadas com sacolas (os componentes do presépio com imagens revestidas de tecidos nobres). Não tinha como pegar a carteira no bolso interno do paletó. E além disso, quando é que essa ciganada vai resolver a trabalhar como todo mundo que se respeita neste mundo?
            Ao chegar em casa meu filho anuncia que a maquinaria do presépio mecânico, bloqueada,  não está funcionando...
            Sentado em minha poltrona favorita repasso o dia... Aquela pessoa que desceu as escadas da minha sala levando no coração o desespero que a devora e o peso dos meus conselhos, o bêbado cambaleante da praça da matriz, a velha Sebastiana que inutilmente espera um tempo do meu tempo, a mulher do almoxarifado a quem aconselhei paciência franciscana (beneditina que seja), porém, sem tornar minha sua aflição uma vez que sou o seu chefe, o “bom almoço” que neguei ao gerente antipático, minha covarde indiferença diante da cigana que foi embora arrastando as chinelas... Eis as “interferências” que bloqueiam meu presépio.