O Natal do Seu Nadinho

Sentado no sofá, sozinho, com um copo de vinho na mão, o velho Nadinho olhava pela janela. Aquela noite poderia ser mais especial, não fosse a solidão sentida bem fundo no peito. Uma lágrima cairia com certeza, não fosse a teimosia e a dureza que lhe impusera a vida. Dureza, porque assim foram os setenta e oito anos vividos. Teimosia, porque insistia em ficar como um ermitão, isolado de tudo e de todos. Fechou os olhos no sofá por alguns instantes tentando buscar nas lembranças momentos felizes. Tentando buscar nos arquivos dos sentimentos imagens que lhe fizessem sentir pelo menos, um pouco de alegria. Fazia anos que passava as noites de Natal sozinho e já não se importava mais com aquilo. Tentava fingir para si mesmo que aquela noite era igual á todas as outras que vivera. Não havia diferença, pensava, sentindo uma certa nostalgia com tudo aquilo. Abriu os olhos e levantou-se do sofá indo em direção a geladeira para completar a taça de vinho. Pelo menos naquele dia, diferentes para a maioria, para ele também era diferente. Deixava os remédios de lado para se deliciar com o vinho do dia vinte e quatro de dezembro. Era assim que ele dizia ao vendedor, quando ia comprar o vinho. Vim buscar o vinho do dia vinte e quatro de dezembro, e ria. Não um sorriso largo, mas um sorriso sincero que o vendedor já estava acostumado a ver nos últimos dez anos que trabalhava naquela adega. Comprava as garrafas de vinho e antes de ir para casa passava na charutaria para comprar pelo menos meia dúzia de charutos. Tinha parado de fumar há mais de dez anos, por ordem médica. Seu Nadinho, dizia o médico, o seu enfizema pulmonar está piorando, pare de fumar, senão o senhor não vai passar deste ano. Mas no vinte e quatro de dezembro se dava ao luxo de fumar alguns charutos. Voltou para o sofá com a taça de vinho quase derramando, de tão cheia. Sentou-se com certa dificuldade já com o charuto preso entre os dedos. Já estava na segunda garrafa de vinho e sentia-se leve com os pensamentos voando ligeiros como se fosse um filme em sua frente. Lembrou da mulher amada que havia partido fazia vinte anos. Lembrou-se dos filhos. Um morava fora do Brasil, porque após a pós graduação foi convidado por uma grande empresa para assumir um cargo na diretoria, isso já fazia dez anos. A filha constituiu família e foi morar numa região distante. Balançou a cabeça como quem tenta jogar os pensamentos para fora. Não queria pensar neles porque fazia com que sentisse tristeza e, afinal de contas, quando o relógio marcasse meia noite do dia vinte e quatro o telefone tocaria e receberia as ligações dos filhos, como todo o ano ocorria. Não queria sentir nada, saudade, tristeza ou qualquer outra coisa que o valha, pensava. Da falecida mulher sentia um misto de raiva e rancor. Achava que com a morte, ela o tinha abandonado injustamente. Mas não queria pensar nisso porque era vinte e quatro de dezembro, o dia do vinho e dos charutos, tinha que aproveitar, era só nisso que queria pensar, ou melhor, viver, naquele dia. Não ligava a televisão e nem mesmo qualquer aparelho sonoro. Gostava de ouvir o som do silêncio. Aquele som que só os solitários ouvem. A cada gole de vinho e a cada baforada no charuto ele deixava escapar um sorriso maroto, porque sabia que estava enganando a todos. O médico, os filhos, que nem tinha tanta certeza se estavam preocupados ou não. Não tinha nenhuma mesa posta ou qualquer assado no forno, porque não fazia questão disso. Só importava, havia muitos anos, o vinho e os charutos, juntamente com a solidão, que de certa forma fora uma opção. Levantou-se por um instante caminhando até a janela da sala para observar o que estava acontecendo lá fora, apesar de não se importar muito com isso. Levou consigo a taça de vinho e o charuto que segura entre os dedos. Fez força para abrir a janela que estava emperrada porque não tinha o hábito de abri-la. Não tinha interesse, nos dias comuns, de saber o que se passava lá fora. Morava no décimo andar daquele prédio no centro da cidade. Da janela podia ver o interior da maioria dos apartamentos dos outros prédios que rodeavam o seu. Olhou para o oitavo andar do prédio em frente. Dava para ver quase todo o apartamento. Conseguia ver a mesa arrumada, com assados, garrafas de vinhos, velas, frutas e, inclusive, a toalha colorida com motivos natalinos. No canto da sala de estar, conseguia ver uma linda árvore de natal com luzes coloridas que piscavam intermitentes. Embaixo dela, várias caixa coloridas, provavelmente os presentes que seriam abertos à meia noite, como é o costume. Aquela cena fazia seu coração bater mais forte. Já tinha vivido aquilo, pensava. Podia ver as pessoas conversando alegremente com as taças que batiam umas contra as outras demonstrando os infindáveis brindes daquela noite de vinte e quatro de dezembro. As crianças corriam de um lado para o outro, aguardando ansiosamente o momento que poderiam abrir aquelas caixas coloridas para, finalmente, poderem tomar posse dos brinquedos que ali estavam guardados. Seu Nadinho sabia muito bem o que era aquilo, o que significava aquela cena que via. Já tinha sentido o gosto daquelas noites de vinte e quatro de dezembro, quando seus filhos eram pequenos e sua amada organizava tudo. Naquela época não tinham as caixas de remédio empilhadas na cabeceira da cama. Não tinha as dores nas costas e nas pernas. Conseguia, por várias vezes, subir ao apartamento pela escada, disputando corridas com o elevador. Três meses antes do dia vinte e quatro de dezembro, alegremente, ele e a esposa já discutiam o que comprariam para os dois filhos. No início do mês de dezembro reuniam-se para, juntos, prepararem a árvore de natal com as luzes piscantes. Os filhos aguardavam ansiosos o dia que faziam aquilo. O apartamento ficava pequeno para tantos amigos e parentes que ali se reuniam, apesar dos poucos noventa metros quadrados. O aroma naquela semana do dia vinte e quatro de dezembro era o de peru, frutas cítricas, panetone e vinho. Naquela noite, ao contrário, o único aroma, além do forte cheiro de bolor do apartamento sempre fechado, era o de charuto. O cenário não era dos melhores. Um sofá puído pelo tempo, o tapete já desbotado, um par de chinelos no canto da sala, além da garrafa de vinho sobre a mesinha de centro. Seu Nadinho, ao contrário dos dias normais, tomou um banho demorado naquele dia, entrou no quarto ainda com a toalha enrolada no corpo enrugado, abriu o guarda roupas e procurou, numa missão quase impossível, uma roupa leve que lhe acendesse o clima do dia vinte e quatro de dezembro. Pôs uma calça de linho branca, uma camisa azul que achou no fundo do armário, um sapato cor de telha que lhe caia bem e era confortável para agüentar até a meia noite sem que os trocasse pelos chinelos. Passou um pouco de perfume que achou no fundo de uma gaveta, esfregando na face um pouco do líquido para aliviar o barbear que acabara de fazer. Estava feliz observando a família do apartamento em frente. Aquela cena trazia boas lembranças dos tempos que se reunia com a esposa e os filhos. Observou o relógio que marcava vinte e três horas e quarenta e cinco minutos e tomou um gole do vinho. Na janela da sala, deu uma tragada longa no charuto, observando a fumaça se dissipar no espaço. Lembrou dos filhos mais uma vez e fechando os olhos trouxe na sua mente a imagem da esposa e pôde até sentir o perfume que sempre usava. Ainda com os olhos fechados começou a ouvir os estampidos dos fogos no ar anunciando a chegada do dia vinte e cinco de dezembro. Abriu os olhos por um instante e observou que na sala do apartamento em frente todos se abraçavam e sorriam. As crianças pulavam na sala segurando as caixas coloridas sem entender muito bem o que estava acontecendo, o que é comum naquela idade. Tomou mais um gole do vinho deixando a taça vazia e ficou alguns segundos com a cabeça para trás como quem está sentindo a alma daquela bebida. Olhou para o aparelho de telefone e no mesmo instante para o relógio. Era zero hora e nove minutos. O telefone não tocou. Seu Nadinho sentou-se no sofá apertando o charuto no cinzeiro. Tirou os sapatos com a ponta de um pé empurrando o calcanhar do outro. Reencostou-se em uma almofada no canto direito do sofá. Fechou os olhos e disse para si mesmo: até a noite do dia vinte e quatro de dezembro do ano que vem!