FELIZ NATAL PAPAI NOEL

FELIZ NATAL PAPAI NOEL

Eram 23 horas, quando Maria de Assis, a filha caçula de D. Antônia e Sr. Túlio, trabalhador informal, catador de papel, colocou os sapatinhos sovados na janela, do barraco de número 25, em 24 de dezembro. Dentro dele, uma cartinha para Papai Noel. Do único cômodo da casa, ela observava seus seis irmãos que dormiam sobre a esteira que estava estendida ao canto daquele quarto abençoado pelo amor reinante entre eles, em que pesem todas as adversidades e injunções. A vela sobre a mesa tosca, e capenga, logo, logo daria o último suspiro. Seu pai saíra para catar, o sustento deles, saíra para catar papelão às quatro horas e trinta minutos do dia 23, castigado por uma garoa impenitente, e até aquele momento não havia retornado. Sua mãe, no outro canto do quarto, parecia orar. As mãos esquálidas e cansadas seguravam um terço surrado com devoção inabalável, indefectível.

Maria Assis observava a mãe, e podia ouvir a respiração ofegante de sua irmãzinha Justina, que aguentava firmemente os sintomas da asma que a debilitava. A vela queimou a derradeira esperança daquela noite. Maria sentou-se sobre uma lata de querosene que servia de trégua quando as pernas reclamavam; havia mais três delas, que serviam de cadeira e foram trazidas por seu pai, das suas peregrinações.

Sua mãe cansou-se de conversar com Deus, e procurou aconchegar-se sobre alguns andrajos improvisados de colchão. Maria de Assis continuava sentada e observava sua família, faltava seu pai, que ainda não chegara do trabalho. No céu, as estrelas cintilavam, as nuvens pareciam passear pelo firmamento, o vento soprava com os pulmões cheios e com vontade, vez por outra, acariciava as folhas da bananeira que agradeciam toda airosa.

Assis, de vez em quando, dirigia seu olhar furtivo para o sapatinho que estava sobre a janela, tinha a esperança de que Papai Noel viria buscar sua cartinha e atenderia aos seus pedidos. Seus olhos coruscavam naquela imensa escuridão que se abatera sobre o quarto, parecia que duas estrelas desceram do firmamento, e iluminava todo aquele presépio. Contudo, o cansaço também a vencera, aqueles pontos de luz apagaram-se. Via-se a silhueta, de anjos que chegavam para velar-lhe os sonhos.

Ouviam-se alguns animais conversando, aquela era a véspera de um dia prestímano, e eles pareciam perceber a grande importância e o grande significado da lição da manjedoura. O velho relógio lutava contra o tempo e desafiava qualquer lógica, os ponteiros arrastavam-se enfadados. Na parede oposta, uma gaiola também velha aprisionava um velho canário que não cantava de protesto, e parecia se divertir com o relógio, ao vê-lo arrastando-se penosamente.

As estrelas começaram retirar-se uma a uma, os pássaros cantavam alegremente nas copas das árvores, e nos barracos vizinhos, menos o canário do Sr. Túlio, pai de Maria de Assis. O Sol despontava timidamente, as folhas nas copas das árvores balouçavam iam e vinham brincando de gangorra. Naquela pobre viela, também era Natal, havia também para eles uma mensagem, que nos fora legada a mais de 2000 anos, e que representa na consciência de cada um de nós o ensejo de seguirmos essas pegadas de luz, vivenciando-a pelo exemplo, da manjedoura e, pelas lições de amor que Ele, nos legou, pelos convites e apelos inúmeros para que possamos participar do grande banquete, se apiedando da nossa ignorância, da nossa imaturidade, ao rogar ao Pai, Pai, os perdoe pois eles não sabem o que fazem.

No escopo e na percepção, de que somos todos nós ovelhas de um só rebanho, Ele nos avalizou, derramando sobre nossas cabeças, bênçãos luminíferas de esperanças ante as expectativas que norteiam os princípios de igualdade e da fraternidade. E nos propõe, vencermos a nós mesmos, às nossas adversidades seja elas quais forem, pois Ele está conosco. Convida-nos às reformulações interiores, no intuito desvencilharmos dos velhos hábitos, que nos tem arrastado pelos precipícios da desolação e da angústia.

E o chamamento para que possamos beber da “água-viva”, a mesma que Ele ofereceu aos Samaritanos, a mesma que Ele ofereceu a Dimas, o bom ladrão, a mesma que Ele ofereceu a Nicodemos, a mesma que Ele ofereceu à mulher adúltera, a mesma que Ele ofereceu a Pôncio Pilatos, a mesma que Ele ofereceu a Paulo, na estrada de Damasco, se renova a cada instante em nossas vidas, compete-nos a percepção, olhos de ver e ouvidos de ouvir, pois as escolhas são nossas, e a nossa fé são trajetórias que nos podem salvar e nos curar de toda essa afasia, que tem contaminado os homens modernos.

Seu amor incondicional, é um legado que tem nos seguido a mais de 2000 anos, e Ele tem esperado por nós, na certeza de que que um dia, ensejaremos que essa centelha divina que representa um “desus” em miniatura, possa ser o nosso referencial de vida. Eu vim, para que tenhas vida em abundância, vaticinou, Ele: Eu sou o caminho, da verdade e da vida, Meu reino não é deste mundo, Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá, são as boas novas que seduziram homens como Lucas, João, Inácio de Antioquia, Joana de Cusa, e tantos outros que por amor a Ele, deixou-se imolar, num testemunho inequívoco de fé!

Regressando ao lar de D. Antônia, o barraco de número 25, na Rua da Esperança, vamos reencontrar Maria de Assis, que completaria neste dia 25 de dezembro, oito primaveras, e que mantinha ainda acesa as esperanças em Papai-Noel. Um Cristo familiar a observava, e em dados momentos semelhava sorrir contemplativo, renovando o convite: “Dexixai vir a mim as criancinhas, porque eu possuo o leite que fortifica os fracos.Deixai vir a mim aqueles que, tímidos e débeis, têm necessidade de apoio e de consolação.Deixai vir a mim os ignorantes para que os esclareça, deixai vir a mim todos aqueles que sofrem, a multidão dos aflitos e dos infelizes; lhes ensinarei o grande remédio para abrandar os males da vida, lhes darei o segredo da cura de suas feridas!”.

O céu estava soberbo, compactuava com os festejos que ocorriam em grande parte do mundo. Os guris estavam ansiosos e esperavam..., por um Papai Noel; algumas delas já há décadas, mas a cada ano renovavam as expectativas.

O silêncio de Sr. Túlio Badameiro, inquietava a sua esposa, ele nunca ficara tanto tempo sem dar notícias. O sapatinho com a cartinha de Maria ainda estava lá, eram 8 horas do grande dia, dia em que se festeja o nascimento do Redentor e o nascimento de Maria de Assis. O café da manhã fora como os todos os demais dias, escasso, minguado e o cuscuz era avidamente repartido pelas mãos desnutridas. D. Antônia, como de costume, comia se sobrava, e nessa manhã não sobrou. Ela estava apreensiva, mas não deixava transparecer para não desassossegar os demais, os meninos após o parco café foram brincar nas cercanias, despreocupados, alheios à angústia que consumia sua genitora, e saíram com uma bola de meia, improvisada, que era chutada por pés adestrados, na busca o gol salvador, que lhes oportunizam-se os holofotes.

A manhã passou nesse clima de dúvidas e perspectivas, enquanto as crianças continuavam a brincar sem esboçar nenhuma fadiga. Quando o relógio preso na parede anunciou 12 horas, com mesmo cansaço habitual, D. Antônia desesperou-se ainda mais, em que pese sua confiança na Virgem Maria. A consternação agora estava estampada no seu semblante e anunciava toda a inquietude que se passava no seu íntimo, até àquela hora seu esposo não dera sinal de vida, ela não tinha nada para o almoço da família, mas como de costume improvisou e às 13 horas e 30 minutos, as crianças sentadas sobre o velho carpete, trazido pelo Sr. Túlio em uma dessas odisseias, comiam com sofreguidão o almoço de Natal, ovos cozidos, comprados fiado, no armazém Do Sr. Geraldo. Sua mãe admirava-os embevecida, todo seu ser se ilumiva, parecia que halos pendiam do alto da sua cabeça, enquanto furtivas lágrimas rolavam sobre sua face, uma face alterada pelo tempo e pelas solicitudes da vida, orou a Jesus e à Virgem Santíssima agradecida, pela sua família. Os infantes, após se fartarem voltaram às brincadeiras, Violinha era o mais pândego de todos.

O Sol deitou-se preguiçosamente por detrás dos arbustos, que já envergavam de sono. Algumas estrelas voltaram, saíram de seus refúgios, pareciam que agora estarem atentas ao drama daquela família. A lua estava majestosa. As crianças finalmente se cansaram, as peraltices haviam consumido suas energias.

Uma brisa afável soprava delicadamente e afagava a tudo o que encontrava pela frente, Zé Coió, voltava da pescaria, e como sempre vinha com o bocapiu vazio, D. Filomena do mingau, retornava com o seu tabuleiro menos pesado, e um sorriso de satisfação desenhado nos lábios. Clóvis das flores tivera também uma vendagem satisfatória, e também sorria com a boca e com os olhos. A baiana Tânia, era só exultação.

A noite envelhecera. O sapatinho de Maria ainda estava lá, e nele à cartinha endereçada a Papai Noel, os grilos cantavam alegremente, os sapos saltitavam e, Zé Coió para desespero de seus vizinhos cantava a todo pulmão, era um lamento doloroso e desafinado regado à aguardente. As folhas balançavam-se na copa das árvores, pareciam reverenciar a natureza.

O velho relógio suspirava esfalfado, o tic-tac, mais parecia um gemido estrondoso, D. Antônia finalmente sucumbiu à lassidão, em que pese o coração opresso. Assis mantinha-se em vigília, quando de repente ela ouviu uns passos característicos, eram 23h55 minutos, notou extasiada que uma mão pegava seu sapatinho, sua cartinha, seu coração desgovernou-se parecia que ia fugir. Ela reconheceu aquelas mãos encanecida, que estavam trêmulas e maltratadas pelo tempo e estupefata, viu, quando foi colocado no seu calçado, a boneca que ela tanto almejava o carrinho de pilha de seu irmão Violinha, o piano de sua mana, a Justina, e não se conteve, soluçou baixinho, um choro contido para não se denunciar. Os olhos pareciam duas estrelas cadentes perdidas naquele belo cenário de amor, de devoção, e de renúncias, riscando o céu das possibilidades infinitas, a ratificar a grandiosidade do ser humano!

Ela viu seu pai abrir a porta com cuidado, alquebrado, mas, com o semblante irradiando alegria, ela com os olhos marejados, o acompanhou tomada de inconfundível emoção, e de um arrebatamento incomensurável, e com a voz entrecortada pelo doce sentimento que a envolvia, balbuciou: "Boa noite Papai, Papai Noel, Feliz Natal!"

Albérico Silva