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O Natal de Raianny

 
 
 
Raianny tinha dez anos de idade, e morava em um orfanato desde os três. Cleyson, seu irmão mais novo, fora adotado um ano depois  que chegaram, mas a família que o adotara não queria um casal: apenas um menino. Sendo assim, ela ficou sozinha no orfanato aos seis anos, e nunca mais soube do irmão. Quando perguntava por ele, as freiras apenas diziam que ele estava muito bem e muito feliz, e que morava em um país bem longe dali. Ela não sabia muito bem o que era um outro país. Quando ouvia aquela palavra, lembrava-se apenas das linhas coloridas traçadas nos mapas das aulas de geografia. Imaginava que seu irmãozinho caminhava por elas, brincando de pular de uma para outra. Ainda tinha uma fotografia dele, e lembrava-se de como ele era bonito...
Raianny sempre passara o natal no orfanato com as outras crianças. Todo ano, algumas delas eram escolhidas por algumas famílias para passarem o natal com elas em seus lares. Mas Raianny jamais fora escolhida. Quando olhava-se no espelho, ficava triste, de olhar perdido no cabelo emaranhado e sem cor, no nariz redondo de batata, nos membros extremamente compridos e muito magros, nos dentes salientes e na pele mulata. Ao contrário do seu irmão, ela era uma criança feia, e sabia disso. E achava que talvez fosse aquele o motivo de jamais ter sido escolhida.
 
Gostava de imaginar que estava ali só de passagem, e que logo sua mãe viria buscá-la. Ela ainda conseguia lembrar-se dela, e do dia em que ela estava muito esquisita e fora levada nos braços de uns homens de uniforme. Uma das vizinhas gritava que ela não estava respirando. Colocaram-na em um grande carro branco que foi embora soltando muita fumaça pelo cano de descarga e apitando uma sirene enjoativa. Toda vez que ela ouvia uma sirene como aquela passando na rua, corria para a janela achando que fosse a mãe, voltando para buscá-la. E por mais que as freiras tentassem convencê-la de que  mãe não voltaria mais (tinha partido em uma grande viagem sem volta), ela recusava-se a separar-se de sua única esperança de ser feliz.
 
Um dia, Raianny estava brincando de amarelinha com as outras crianças no pátio da escola quando viu um casal muito arrumado aproximar-se delas. Todas as meninas e meninos pararam de brincar e correram na direção do casal, pois sabiam que o natal se aproximava e que as crianças seriam escolhidas para passá-lo nas casas de família. Algumas não voltavam nunca mais. As freiras comentavam sobre a sorte delas, pois tinham sido adotadas e passaram a fazer parte da família.
 
Bem, havia um alvoroço e uma gritaria à qual Raianny já estava acostumada, e da qual não mais participava, pois sabia muito bem que ninguém a escolheria. Ficou de longe observando, sentada em um canto, as mãos sobre os joelhos e o olhar muito triste que ela nem percebia que tinha. As crianças cercaram o casal, e algumas delas gritavam tão alto que era impossível ouvir o que qualquer uma delas dizia! a mulher tinha o olhar assutado, e o marido parecia bastante aborrecido. Uma das freiras precisou interferir, afastando as crianças com ameaças de castigos. Só assim elas se acalmaram, os olhares ansiosos presos no casal, as mãos erguidas, pedindo para que o casal as escolhessem.
 
De repente, a mulher levantou os olhos e olhou na direção dela. Seguida pelo marido, que caminhava com as mãos no bolso e olhar contrariado, a mulher caminhou para ela, dizendo à freira: "É esta menina que eu quero! Parece muito educada." A mulher tocou-lhe o queixo, erguendo-lhe o rosto.
 
Raianny mal pode acreditar no que ouvia! Tinha sido escolhida! Nem sabia o que dizer. Já ia agradecer quando a mulher virou as costas e foi embora, conversando com a freira e seguida pelo marido que nunca se manifestara. Minutos depois, as freiras vieram buscá-la. Disseram-lhe que fosse boazinha e obedecesse. banharam-na, pentearam-lhe os cabelos lavados com muito creme de enxaguar, vestiram-lhe uma roupinha nova, muito cheia de babados e fitinhas e bordadinhos. Calçaram-lhe  um par de vistosos sapatos de verniz branco, e meias três-quartos. Raianny olhou-se no espelho e viu que estava quase bonita. As freiras levaram-na para a recepção, onde o casal a esperava.
 
O motorista, um senhor negro e muito simpático,  tomou-a pela mãozinha magra, conduzindo-a ao carro da família, enquanto o casal permaneceu conversando com as freiras por mais algum tempo. Depois, eles entraram no carro - o pai sentado no banco da frente, e a mãe sentada atrás, com ela. mas bem afastada. Raianny queria falar, dizer alguma coisa que mostrasse seu agradecimento por ter sido escolhida, mas o ar sisudo dos seus pais adotivos mantinha-na calada. Benedito - este era o nome do motorista - olhou-a pelo espelho retrovisor e piscou para ela, o que fez com que ela sorrisse. 
 
Chegaram a uma linda casa, pintada de azul clarinho, enorme, cercada por um jardim maravilhoso como Raianny nunca tinha visto ou imaginara existir. À porta da mansão, um fotógrafo os aguardava, e então os pais tomaram-na pela mão, sorrindo pela primeira vez, e eles tiraram muitas fotos juntos. O pai falava a uma moça com um caderninho onde anotava tudo; dizia que todas as famílias abastadas deveriam dar um lar a alguma criança que necessitasse naquela época. Também falava da contribuição que sua empresa dava às casas de caridade. Enquanto isso, a esposa abraçava Raianny, sorrindo para as fotografias. Raianny sorria também, segurando as pontinhas rendadas das saias do seu vestido novo.
 
Depois que o fotógrafo e a moça do caderninho foram embora, o casal ordenou ao motorista que levasse Raianny ao seu quarto, pois precisavam voltar para a empresa. Benedito pegou  a menina pela mão mais uma vez, levando-a antes até a cozinha da casa, onde uma mulher gorda e gentil chamada Rose preparou-lhe um lanche delicioso. Ela comeu tudo, e depois de tomar uma grande taça de sorvete, com muito cuidado para não sujar o vestido, Benedito levou-a ao seu quarto. Chegando lá, Raianny mal pode acreditar na quantidade de brinquedos disponíveis! Benedito deixou-a a inda mais feliz ao dizer que ela podia brincar com o que quisesse, mas que tomasse muito cuidado para não quebrar nada. E ela brincou, feliz da vida, com as bonecas com rostos de princesa, sonhando em ser tão bonita quanto elas um dia. Ela empurrou carrinhos que jamais dirigiria, criou mundos encantados onde os animais de pelúcia falavam, e fez muitas comidinhas para suas novas amigas, as bonecas. Mais tarde, muito cansada, deitou-se na caminha coberta com colcha cor-de-rosa e dormiu.
 
Acordou horas depois, e uma menina loirinha olhava para ela. Raianny sentou-se na cama, e a menina apresentou-se:
 
-Olá. Eu sou a Bia. Quem é você?
 
-Eu sou Raianny. Acho que vamos ser irmãs... eu vim para...
 
Bia ergueu a cabeça, e cortou sua fala:
 
-Jamais seremos irmãs. Olhe só, você é negra! Eu sou loira e tenho olhos azuis. Além disso, você é muito feia! Espero que não tenha quebrado nada. Tudo isso aqui é meu.
 
Dizendo aquilo, Bia tomou-lhe a boneca que Raianny segurava. A menina ia protestar, quando Rose entrou no quarto:
 
-Bia, você não está sendo educada com a convidada de sua mãe. Peça desculpas!
 
A menina mimada grunhiu um pedido de desculpas, e saiu correndo do quarto. 
Rose entrou e sentou-se na cama ao lado de Raianny, enxugando-lhe algumas lágrimas com a ponta do avental:
 
-Não chore, querida. Olhe, ela não passa de uma menina mimada e boba. E eu tenho ordens de tomar conta de você e der tudo o que você quiser! O que gostaria? Talvez mais um pouco de sorvete depois do jantar, hum? Que tal?
 
Raianny sorriu, concordando com a cabeça. Logo estava sentada à mesa da cozinha, comendo com Rose e os outros empregados da casa. Uma moça negra chamada Luiza comentou:
 
-Eles nem vão deixá-la comer no salão de jantar?  Mas que gente!... todo ano é a mesma coisa.
-Cale-se, Luiza, ou vai deixar a menina triste - Benedito ralhou.
 
Raianny percebeu que falavam dela, mas continuou comendo aquela comida deliciosa, que jamais comera no orfanato, onde nada tinha muito gosto.
 
Rose disse:
 
-Só faltam três dias para o Natal. Isso pra gente só significa que teremos trabalho triplicado.
 
Os três suspiraram. Luiza falou:
 
-Pelo menos, temos o décimo terceiro salário. 
-E mesmo - respondeu Rose.
 
Benedito sorriu para Raianny, e ela sempre sentia-se segura quando ele fazia aquilo. Ficou mais leve.  Começou a responder as perguntas sobre como era a vida no orfanato, e percebeu que era bem mais divertida do que naquela casa onde estava. As freiras conversavam com ela. Tratavam-na bem. Seus pais adotivos a ignoravam. 
 
Na manhã seguinte, Raianny acordou em seu quarto de princesa, cercada pelos brinquedos maravilhosos, e viu que não tinha sido apenas um sonho. Foi ao banheiro, e quando saiu, Rose a esperava com uma muda de roupa - outro vestido, desta vez, branco com fitas amarelas brilhantes. Novinho em folha! Rose ajudou-a a tomar banho e pentear o cabelo - que prendeu em uma caprichada trança - e vestiu-lhe o vestido, que chegava até os pés. Calçou-lhe um par de sandálias brancas, que apesar de usadas, estavam novinhas. As duas começaram a descer as escadas até a sala, e Raianny viu que havia uma porção de gente que começou a tirar fotografias assim que a viram. "A casa parece um estúdio de cinema", pensou Rose. 
 
Seus pais adotivos estavam lá, e muito amáveis e sorridentes, vieram recebê-la, com um beijo no rosto e muitos afagos. Mais uma vez, falavam sobre a importância do Natal, da caridade e do amor. Sua mãe adotiva até chorou, o que fez com que Raianny chorasse também, e ela a acariciou o rosto, comovida. Com a voz embargada, discursou:
 
-Só Deus sabe o que esta pequena já passou na vida... é com muita alegria que proporciono-lhe os melhores dias de sua vida, dos quais ela há de lembrar-se para sempre. E é claro, a nossa empresa está providenciando para que o Natal de muitas crianças como a nossa Raianny seja muito feliz...
 
Mais fotos. Mais lágrimas. E quando todos se foram, a mãe chamou Rose, entregando a menina: 
 
-Dê-lhe alguma coisa para comer. 
 
Depois, Raianny não viu mais seus pais adotivos. Viu quando sua irmã adotiva passou por eles, carregando uma pequena mochila. Ela também passou o dia fora. 
 
Raianny ficou brincando no jardim. Queria usar a piscina, mas Rose disse que infelizmente, os patrões tinham dado ordens expressas para que ela ficasse longe da piscina. Com um sorriso amarelo, Rose disse que era porque eles ficavam muito preocupados que algo ruim acontecesse a ela... mas ela podia brincar no parquinho. Havia um escorrega, balanço e gangorra.
 
-Mas... com quem eu vou brincar? 
 
Naquele momento, Benedito chegou em casa, pois tinha ido levar seus patrões ao trabalho. Ele disse:
 
-Não se preocupe, Rose, eu brinco com ela.
 
E ele a empurrou no balanço, e ajudou-a na gangorra. Contou-lhe histórias e ensinou-lhe algumas canções de natal. Os dois tomaram mais sorvete na cozinha. Quando viram, já estava anoitecendo. Cansada, Raianny dormiu, e Benedito a colocou na cama.
 
Na manhã do terceiro dia, Raianny acordou e desceu de camisola para a sala de estar. Quando Rose a viu, exclamou:
 
-Graças a Deus os patrões já saíram! Eles me matariam se vissem você circulando de camisola por aí, Raianny.
 
Mas Raianny nem escutou: Rose, Benedito e Luiza arrumavam uma enorme e linda árvore de natal! Ela foi convidada a ajudar a pendurar os enfeites, o que a deixou muito feliz. Foi informada de que haveria uma grande festa de natal naquela noite. Quando terminaram de montar tudo, já era quase hora do almoço. A campainha tocou, e Quando Rose abriu a porta, uma porção de gente esquisita começou a andar de uma lado para o outro, alguns dando ordens e outros obedecendo. A sala foi começando a ficar diferente, cheia de luzes e até uma fonte d'água bem no meio. Raianny observava  tudo do alto da escada. Ficou um pouco triste quando viu que a árvore que havia ajudado a montar foi levada para um canto escuro do corredor, e uma outra, bem maior e imponente, a substituiu. Era toda dourada, com bolas de cristal iluminadas e uma grande estrela prateada que soltava faíscas na ponta.
 
Rose veio buscá-la para almoçar, passando com ela por toda aquela multidão. De repente, uma mão macia a segurou:
 
-É esta a menina da campanha deste ano?
 
-E sim, Rose respondeu.
 
Ele soltou uma exclamação de espanto:
 
-Noossa!!! A do ano passado era bem mais... mais...
 
 Raianny olhou para cima e viu um homem estranho, com lenço rosa no pescoço e blusas de babados nas mangas. Ele deu um sorriso forçado para ela, e acenou-lhe um adeusinho enquanto se afastava. 
 
A noite chegou, e Rose foi arrumá-la para a festa. Vestiu-a com o mais lindo dos vestidos: branco com botões dourados, sapatos de veludo vermelho, e um laço vermelho na cintura. Uma moça veio arrumar seus cabelos, que ficaram lisinhos, lisinhos, e ela os prendeu com uma fivela dourada. Ela foi até maquiada! Pintaram-lhe as unhas de rosa, e quando Raianny se olhou no espelho, viu que tinha ficado... bonita!!!
 
Daquela vez, sua mãe adotiva foi buscá-la para descer as escadas até o salão, e Bia, sua irmã adotiva, estava com ela. A mãe avisou à Bia:
 
-Lembre-se: seja gentil, principalmente com Raianny, e sorria sempre! Trate-a bem na frente de todos. Haja como se ela fosse muito querida e bem vinda nesta casa. Esta bem?
 
Bia balançou a cabeça, concordando, enquanto olhava para Raianny com desprezo. Mas quando elas começaram a descer as escadas e os flashes espocaram, Bia tornou-se para ela a criatura mais gentil e meiga do mundo! Apresentou-a às suas amiguinhas, sempre segurando-a pela mão e fazendo muitas poses para fotos. 
 
Pela primeira vez desde que chegara, Raianny foi convidada a tomar um lugar à mesa, na sala de jantar. Inocentemente, ela soltou:
 
-Mas... eu preferia comer na cozinha, com os empregados, como nos outros dias...
 
Um silêncio mortal abateu-se sobre todos.
 
De repente, A mãe começou a rir histericamente:
 
-Hahaha! Ela é muito brincalhona... você é nossa convidada de honra, Raianny querida!
 
E todos riram, e o incidente foi esquecido. Trataram-na tão bem, que a menina achava que poderia ser realmente adotada! Foi uma noite inesquecível. Ela era o centro das atenções, paparicada por todos, principalmente pela sua família adotiva. À meia-noite, muito cansada, ainda a puseram sob a árvore para abrir os muitos presentes que ganhara. Ela reparou que eram iguais aos que ela brincara no quarto, mas achou melhor não dizer nada e fingir surpresa. 
 
Nem percebeu quando adormeceu.
 
Acordou na manhã de natal de volta ao orfanato, cercada pelas tristes paredes cinzentas do dormitório das meninas. Em um canto, algumas caixas que abrira na noite anterior, mas não eram nem a metade dos presentes que ganhara!
 
Passou o dia de natal no orfanato, como sempre... a noite de magia terminara. Usava seu vestidinho de malha de sempre: A Cinderela estava de volta aos seus trajes de aia. 
 
Durante o dia, um homem vestido de papai-noel esteve no orfanato, acompanhado de uma porção de gente que distribuiu brinquedos que não chegavam aos pés dos que ela vira na mansão. Eles contaram histórias bobas que não eram engraçadas e interessantes, nem mágicas como as que Benedito contara a ela. Encenaram uma peça pobre e feia, nem um pouco parecida com a que ela vivera... e então ela se deu conta: tudo tinha sido apenas como num teatrinho, e ela nada mais fora que uma personagem... tinha sido usada por aquelas pessoas.
 
Perceber aquilo deixou-a com uma tristeza amarga, mas ao conversar com a freira, esta disse-lhe que fosse grata pelo que tivera naqueles poucos dias. E Raianny realmente tentou, mas sua tristeza não ficava curada. Sentia saudades de Rose e Luíza, mas acima de tudo, sentia muita falta de Benedito. 
 
Uma semana depois do natal, uma das freiras aproximou-se:
 
-Raianny, você vai ser adotada.
 
Ela apenas chorou. Mais uma vez? Não... ela não queria sair dali nunca mais! E disse aquilo à freira, que ficou muito surpresa.
 
-Mas... você sempre quis ser adotada! 
 
-Mas não quero mais. As pessoas lá fora são ruins, irmã. Prefiro ficar aqui.
 
-Mas... você nem quer saber quem vai adotá-la?
 
Naquele momento, Raianny viu Benedito e uma senhora, e eles estavam de mãos dadas, sorrindo e caminhando na direção dela. Quando ele se ajoelhou e estendeu os braços para ela, abrindo-os para recebê-la, ela compreendeu que seria feliz.
 
 
 
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Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 27/11/2014
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