Noite de Natal
 
A vidraça embaçada filtrava a paisagem chuvosa lá fora. Logo, o pai chegaria em casa com o restante das compras para a ceia, que se daria naquela mesma noite. A menininha grudava os olhos nos bolos, pudins e rabanadas que eram preparados pela mãe e pela irmã mais velha: “Posso ‘lamber’ a forma?” E as duas irmãs mais novas disputavam para saber quem ficaria com a forma e quem ficaria com a colher usadas no preparo da massa do bolo. A mãe ralhava: “massa de bolo crua faz mal!” Mas as meninas pensavam que nada tão delicioso poderia fazer mal.
 
Os gatos miavam sob a mesa, enquanto a panela de pressão onde as castanhas cozinhavam chiava no fogão. 
 
A menina correu até a sala, onde estava a árvore de natal feita de cedro, simples, com enfeites espelhados. Sua outra irmã, que naquele momento não estava em casa, já tinha avisado, enquanto montava a árvore: “Não pode tocar em nada!” Mas como ela não estava em casa naquele momento, a garotinha esticou o braço, tocando de leve a bola vermelha, que soltou-se e espatifou-se no chão. Vem a mãe correndo e já zangando, e enquanto varre os caquinhos minúsculos e aproveita-os para jogar sobre a terra do vaso, que passa a soltar pequenas faíscas, repete: “Não mexa em nada, quantas vezes vou ter que avisar? Vou virar essa parte para a parede... assim... pronto, nem dá para ver que está faltando um enfeite.” 
 
A outra irmã mais nova olha para ela, dando a língua: “Viu como você é burra? Vou contar para ela!” E a menor: “Não vai não!” E gritando: “Mãe! Olha aí!!!” A mãe berra da cozinha, enquanto retira uma rabanada da frigideira: “Parem as duas, ou então vocês vão ver! Vou contar ao pai de vocês!”  E assim as culpas iam sendo transferidas de punidores em punidores. 
 
Naquele momento, a menina foca sua atenção nos pacotes de presentes sob a árvore, e as duas irmãs mais novas ficam cúmplices novamente; a maior diz: “Hum... qual será o meu?” E as duas ficam olhando os pacotes, tentando adivinhar. O pai chega, e elas correm para a cozinha, rodeando os pacotes de onde saem, entre outras coisas, caixinhas de gelatina, um panetone, um garrafão de vinho barato, um peru (a mãe reclama: “Como é que você acha que vamos conseguir preparar esse peru a tempo?”) E a irmã mais velha, que está ajudando na cozinha, já pega a ave e coloca em uma forma, ligando o forno, e joga o molho que já estava preparado na geladeira. As irmãs menores fuçam os pacotes como se fossem cachorrinhos curiosos. O pai vai tomar banho. 
 
A irmã mais nova reúne suas bonecas no quarto, e começa a cantar uma canção de natal que aprendeu na TV. Depois, beija cada uma delas e guarda sobre o armário, subindo na beirada da cama para alcança-lo. Deseja a elas todas um Feliz Natal. Diz que logo receberão uma nova amiga, e que gostaria que elas a recebessem muito bem. De repente, a irmã menor tem uma ideia: vai aprontar-se para o Natal! Corre até a gaveta da irmã que está fora, pois ela tem uma porção de sombras e batons coloridos, pó de arroz e rímel. Em frente ao espelho, ela vai aplicando camadas e camadas de todas as cores disponíveis ao redor dos olhos, e finalmente, passa o batom, apertando bem forte, apreciando o resultado no espelho fazendo caras e bocas, enquanto se equilibra sobre um par de sapatos de saltos que ficam enormes para os seus pés. Ela escuta os pais e as irmãs conversando na cozinha, enquanto faz poses no espelho. Escuta também a porta da frente se abrindo, e sua outra irmã – a dona das maquiagens – chegando em casa. A menininha corre para esconder-se debaixo da cama sem nem lembrar-se de guardar as sombras que ficaram espalhadas sobre a cômoda. Escuta a irmã perguntando por ela, e a mãe respondendo: “Está brincando no quarto.” Escuta os passos da irmã se aproximando, chamando seu nome, e vê os pés pararem diante da cômoda, e o grito que se segue: “Mãããããe!!!” A mãe vem correndo da cozinha para saber o motivo daquela sangria desatada: “Ela pegou minhas pinturas!” E entre gritos de indignação, dois pares de pés param em frente a cama, erguendo a barra da colcha: “Pode sair daí, mocinha!” 
 
Ela sai devagar, timidamente, enquanto leva uma palmada da irmã e outra da mãe, que a manda ir tomar banho. Ela vai, aos prantos, a maquiagem borrando e escorrendo pela face. Mas depois do banho, durante o qual ela finge ser uma estrela de cinema fazendo um comercial para o sabonete Palmolive, tudo vai sendo esquecido.
 
É noite. A mesa da sala está arrumada com os quitutes. A TV preto e branca está ligada em um programa de auditório, onde cantores com gorros de Papai Noel se apresentam, enquanto a plateia aplaude. 
 
Todos na sala estão de banho tomado e vestidos com suas melhores roupas. O pai passou Gumex no cabelo, que brilha, colado à cabeça. Anos depois, ela ainda se lembraria daquele cheiro de brilhantina. Alguns vizinhos passam para desejar Feliz Natal, e outros cumprimentam-se através das janelas de suas casas ou de seus portões – quase ninguém tinha telefone. Todos também estão vestindo suas melhores roupas, e quase todos os homens tem os cabelos como o do pai da menininha.
 
Na hora da troca dos presentes, a menininha, decepcionada, descobre que não ganhou a boneca dos seus sonhos – a Amiguinha, uma boneca que era do seu tamanho, pela qual chorara nas Lojas Americanas. Mas após o pai explicar que a boneca era cara demais e a loja não fazia crediário, ela entende e fica feliz assim mesmo. Deve ser por causa da magia do Natal. Abraça sua boneca Alice, que afinal de contas, era bonitinha, e vai apresentá-la às outras bonecas.
 
Chegam visitas. São os pais do namorado da dona das maquiagens. Cumprimentos. Eles chegam à porta do quarto e brincam com a menininha, que larga a boneca para beijá-los. Comentam o quanto ela está bonitinha. Elogiam a boneca e voltam para a sala. 
 
Horas depois, alguém pergunta por ela, e vê que ela está dormindo abraçada à nova boneca, as outras bonecas em volta. 
 
Quando ela finalmente desperta, percebe que cresceu, e que natais como aquele nunca mais voltariam a acontecer.


Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 21/12/2014
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