Conto de Natal – Um olhar Neurodivergente!

Vesti minha roupa de mergulho, e adentrei mar a dentro..., só que, ao abrir olhos, descobri que minha “indumentária” não era como a das outras pessoas, havia nela algumas incompatibilidades de “encaixe”, a comunicação veio com “falhas” pois ela traduzia o mundo para mim de uma forma diferente das outras pessoas, e começou aí meu esforço sobre humano para tentar adaptar-me à vida nesse imenso oceano povoado de seres, melhores adaptados que eu.

Descobri, muito cedo, que em mar aberto, a maioria das pessoas se moviam para um padrão existencial, grande parte delas dançavam como um cardume de peixes, coesos e afinados, embalados pelas emoções, desejos e sensações, e, na sequência, descobri que eu não sabia me mover daquela forma, comecei então a sofrer as consequências de navegar contra a maré, ou contra o balanço daquele mar.

O único lugar seguro era a profundidade, e lá me escondi. Como baleia, só ia à superfície para “respirar”, mas, logo também compreendi, que havia na superfície daquele mar, responsabilidades que cabiam a mim executar. Eu teria que aprender a viver ali como todo mundo, da melhor forma possível.

Comecei a observar, e a buscar pontos de interesse que possibilitassem uma melhor conexão com os seres do grande oceano, e como um bichinho assustado, observei, observei e observei....

Com os animais foi mais fácil, eles são muito puros, seus olhares são claros e suas expressões simples, meu coração se encantou por eles, principalmente os cachorros, eles sempre estiveram ao meu lado, em toda a minha vida.

Os animais são incríveis, os barulhos que fazem são como canções de ninar, me auxiliam a manter o estado de presença. Quando alguma tempestade se aproxima, busco o equilíbrio nos sons da natureza, é um portal rápido e seguro para a calma e para a paz.

As águas na superfície são bravias, e minha roupa de mergulho precisa de calma e serenidade, o que encontro nas profundezas do meu ser, contudo, se faz necessário e imperativo para a minha sobrevivência, aprender a navegar em águas turbulentas, ainda que os desconfortos e ansiedades sejam inevitáveis, causando, por vezes crises inimagináveis. Mas, seguindo a orientação da filósofa “Dory de Procurando Nemo”, continuo a nadar... tornando-me assim, a cada dia, melhor e mais capaz.

A espécie humana é muito complexa, são seres incríveis, dinâmicos e altamente comunicativos, são magníficos criadores, inteligentes e astutos. A maioria deles, com sua roupa de mergulho adaptadas, encontram facilidades em deslizar nas ondas desse grande mar, realizam seus projetos pessoais, materiais e sociais, com grande facilidade, ainda que não se vejam assim.

São construtores de seus sonhos e manejam bem as ferramentas que precisam para realizar o que almejam, muitos deles o fazem por um impulso dinâmico que os movem, sem terem muita consciência do quê, e do porquê realizam, vão seguindo seus impulsos e intuições, e para eles bastam.

Gosto de observar como as pessoas se comunicam, elas falam ao mesmo tempo, utilizam não só a fala, mas todos os músculos do corpo, principalmente as mãos e as expressões faciais, interrompem as falas uns dos outros, às vezes alteram os sons das vozes, tratam de assuntos diversos, mudam, o tempo todo, o rumo da conversa, participam de conversas paralelas, se interessam e se desinteressam por um assunto com tanta rapidez, que é difícil compreender.

As pessoas falam sobre todo tipo de assunto, entabulam uma conversa animada e engraçada com pessoas que nunca viram, e que se encontraram pela primeira vez no mercado ou no ponto de ônibus, é normal contar piadas, rir uns dos outros, fazer sarcasmo, implicar uns com os outros, às vezes até brigar uns com os outros, e assim, vivem a vida nesse ritmo e nessa fluidez.

Não raro, as pessoas conversam sobre os assuntos do momento: política, futebol, religião, a guerra na Ásia, ou no Oriente Médio, a eleição vira motivo de “guerra civil” e assim vai..., o assunto do momento é o mais importante.

Observando mais atentamente, percebi que os assuntos que perduram são aqueles que tratam de suas próprias existências, exemplo: filhos, casa, trabalho, preferências diversas, ou seja, a conversa gira em torno, quase sempre, da superfície desse imenso mar, e, poucos se aventuram adentrar à profundidade para ver o que há lá, talvez seja o medo das águas profundas (meu doce lar).

Pessoas como eu, que vivem nas profundezas, encontram muita dificuldade com essa dinâmica complexa e incrível dos moradores da superfície, tendem a ser os esquisitos da turma, pois possuem sérias dificuldades de se relacionarem de forma desproposital e despretensiosa, como a maioria o faz.

São pessoas que precisam ver propósito em tudo, tendem a falar sempre do assunto do seu hiperfoco, pois se dedicam muito a ele, e isso faz com que não tenham muitas áreas de interesse, ou muitos assuntos para conversar.

São aquelas que, mesmo quando se aventuram a ir a uma festa com amigos, não se encaixam, e isso faz com que logo deixem de ser convidadas, ninguém gosta de sair com uma pessoa que alerta para não beber e dirigir, que não suporta fumaça de cigarro, que não consegue lidar com muitos estímulos visuais, olfativos e sonoros, que não gosta de ficar tendo contato físico o tempo todo.

São pessoas que não lidam bem com supérfluo, que levam a sério assuntos “chatos”, como mudanças climáticas, alimentação saudável, meio ambiente, tratamento do lixo, são os chatos que se divertem lendo textos informativos e científicos ou que passam horas falando de assuntos dos campos sutis como: filosofia e espiritualidade.

São as pessoas que lutam para salvar árvores, animais abandonados, que abrem mão de comer carnes por incompatibilidade alimentar, ou apenas como um gesto para evitar uma catástrofe global que o desmatamento pode causar... ou seja, são aqueles seres conscientes de que sua atuação no mundo pode ser benéfica ou maléfica, dependendo do propósito que confere à sua vida.

No entanto, a vida em imersão, apesar das dificuldades, é um lugar incrível, e acessível a todos, as pessoas que se aventuram a viver lá, convivem de perto com suas próprias “sombras”, aprendendo gradativamente a lidar com elas, tornando-se, assim, um ser humano mais consciente de si e do meio em que vive.

Passam a olhar a vida com um olhar mais profundo, sem tanto julgamento, já começam a perceber a ilusão da dualidade e da separatividade, se percebem agora como uma pequena célula em desenvolvimento no grande corpo universal, e confiam no fluxo próprio da existência.

Com um olhar profundo sobre a existência, tendem a desenvolver algumas habilidades importantes e necessárias para a evolução do ser, tornando se mais empáticos, mais equilibrados emocionalmente, tornam se mais observadores, calados, prestativos, e se esforçam mais para compreender as pessoas e os acontecimentos, tomando por referência, não os fatos em si, mas o amplo contexto da vida.

Pelo exercício necessário de viver em atenção plena, desenvolvem também muita sensibilidade e com isso a capacidade de ler energias, e aqui, faço um adendo, é umas das habilidades mais difíceis, pois é difícil sentir as emoções reais das pessoas, mesmo quando tentam disfarçar. Mas, por outro lado, permite perceber alguns caminhos que devem ser seguidos ou evitados.

Enfim! Seres profundos são aqueles que já perceberam que o amor não é emoção efêmera e pessoal, mas sim uma lei inexorável, da qual nenhum ser poderá se esquivar. Já compreenderam que o amor é uma energia que envolve todos os seres, do átomo ao infinito, e que se pratica servindo...

Hoje, há muitos rótulos para esses seres: AUTISTAS, TDA, TDAH, TOC, TOD, DOWN, .... uma infinidade de siglas utilizadas pela sociedade para tentar definir um ser humano que tenta se equilibrar entre a sua própria superfície e suas águas profundas.

Não se trata de uma crítica, socialmente falando, estes termos são classificações necessárias para que a sociedade possa criar políticas públicas de apoio e amparo a esses seres incríveis, que em graus dos mais variados, se equilibram entre dois mundos.

Filosoficamente falando, são seres humanos que tentam alcançar as estrelas, estando com as suas raízes bem fincadas em solo firme, o equilíbrio às vezes é bem difícil.

Fiz esse texto pensando no Natal, e em analogia penso que o ser humano, seja ele neurotípico ou neurodivergente, é como uma árvore viva de natal. Ao passo que o pinheiro desenvolve suas raízes na profundidade do solo, lança seus galhos aos céus, e nessa jornada vai se enfeitando com todas as belezas da vida.

Os seres humanos, assim como os pinheiros de natal, para crescerem fortes e saudáveis, enfrentarão as intempéries da existência, e com coragem e determinação, um dia, perceberão que as alegrias e as dores que viveram serão os enfeites coloridos e brilhantes que os adornarão, e ao final da jornada, sua linda estrela se fixará no topo, como uma linda coroa.

Espero que todos nós, pessoas neurotípicas ou neurodiversas, possamos auxiliar umas às outras a se equilibrarem nesse grande mar cósmico, com amor e carinho, valorizando as habilidades umas das outras, amenizando as dificuldades da caminhada, para que ao final, todas as pequenas árvores de natal, com o amor e amparo de Jesus Cristo, alcancem, enfim! suas estrelas.

Que o Natal seja para todos!

Feliz Natal!

Nilcione M. Santos

Dezembro/2023