Insensibilidade

Quando era pequeno, quis muito ser médico, quis segurar as mãos de outras pessoas entre as minhas e, olhando-as nos olhos, dizer: - Não se preocupe, vou cuidar de você e farei tudo que puder para ajudá-lo.

Era um sonho tolo esse de querer aplacar as dores dos outros, mas era o meu sonho. Infantil, porém nobre.

Mas o tempo se encarregou de dissolver as fibras de ternura que haviam estado em meu ser como a saliva faz com o algodão-doce na boca. Eu disse adeus a cada um dos meus sonhos e passei a enumerar minhas desgraças.

Vivi dias sombrios, durante os quais a única realidade que me atingia era a das limitações. Podia me arrastar pela casa em busca de algo que não estava lá. Sentia que me arrastava todo dia, pelo chão, adquirindo novas feridas e reabrindo as mais antigas. Eu não almejava nada além do que já tinha: a insensibilidade.

- Mãe, por que isto tinha de acontecer comigo? – A pergunta era uma queixa direcionada, na realidade, ao deus insano que brincava com a minha vida.

- Tudo bem, meu filho, vou cuidar de você.

Eu a ouvia dizer isso e sentia um aperto no coração. Um eco vinha de algum lugar no passado para me assombrar.

- Eu ia ser médico, mãe. Eu ia cuidar dos outros. Eu também cuidaria de você.

Ela me encarava com olhos fundos, calmos e cansados.

- Não, está tudo bem, Mike. Quer o seu remédio agora?

Se eu queria meu remédio? Claro que sim, eu queria um coquetel mortal.

Mas eu balançava a cabeça para que ela fosse buscar o remédio apropriado.

Desde os meus doze anos, eu vivia mais dentro do quarto do que em outro lugar. Aquele não era bem o meu quarto, era o quarto do primeiro andar, ao lado do porão. E era nele que eu gastava meu tempo enumerando minhas desgraças.

Primeira desgraça: foi no aniversário de um primo meu, Seth, que completava treze anos. O tio Norm, pai dele, comprou uma caixa de rojões para a ocasião. Ele os guardou na garagem, junto com o carvão do churrasco, as embalagens gigantescas com os refrigerantes e as cervejas que não couberam na geladeira, velhas caixas de som, o cortador de grama e, é claro, o galão de gasolina que fazia o cortador funcionar. Ralph, meu outro primo, quis mostrar para uns amigos as cápsulas enormes que continham os explosivos coloridos. Seth se esgueirou atrás deles, ouvindo a conversa, disfarçando enquanto se enfiava na garagem. Eu o vi, mas não o segui de imediato. Fui até a cozinha lambiscar um meio sanduíche de atum, havia toneladas deles em cima da mesa. Topei com o meu pai, que tentava manusear uma bacia cheia de carne temperada em cima da pia.

- Michael, vá buscar a sua mãe. Só ela sabe enrolar os bifes no espeto decentemente –mostrou-me um que ele havia feito. A carne parecia um recado sangrento dobrado e cruelmente atravessado pela haste de aço. – Diga a ela que é urgente, garoto, estou dando prejuízo ao irmão dela.

Mastiguei meu meio sanduíche. Jamais me esquecerei do gosto. Mamãe nunca mais faria outro igual. Ela não teria tempo para futilidades culinárias no futuro.

Encontrei-a conversando com a cunhada e bebendo um refrigerante gelado diretamente da lata. Atrás delas, o tio Norm abanava uma churrasqueira fumarenta, tentando não se sufocar.

- Mãe, o pai precisa da senhora na cozinha. Ele está destruindo toda a carne.

Ao ouvir isso, o tio Norm estacou, muito interessado.

- Ele não pode mesmo fazer sozinho, Mike?

Eu abanei a cabeça. E sorri para as duas.

- Acredite, mãe, ele está tentando.

- Acredito. Não quer me ajudar, então?

Eu quase disse que sim, mas, lembrando-me que os garotos estavam na garagem, fazendo coisas de garotos, resolvi seguir o meu estúpido instinto de garoto.

- Desculpe, mãe, acho que vou fazer alguma coisa com o pessoal agora.

- Tudo bem. Não faça bagunça, OK?

- Não, mãe. Sem bagunça, prometo.

Ela se dirigiu para a casa, tia Pietra ao lado, ambas rindo.

Senti vontade de comer de novo, uma contração do estômago, mas fui ver o que o irmão de Seth estava fazendo na garagem. Estúpido instinto de garoto misturado com pura curiosidade infantil.

Já pensei um milhão de vezes que eu podia ter dado meia-volta e continuado intacto. Eu podia ter conservado aquela parte de mim que alimentava planos altruístas e edificantes.

Antes que eu passasse sob a porta da garagem, bem quando eu me virava para ver o tio Norm tossindo como um doente terminal, o mundo ficou laranja-vivo e eu fui arremessado metros no ar, em direção à cerca-viva.

Lembro-me da dor que percorria meu corpo, como seu estivesse sendo amarrado com arame farpado incandescente. Mesmo na agonia, eu fui capaz de realizar um rápido inventário dos meus membros. Eu parecia inteiro, mas era como se isso fosse muito pior do que estar incompleto.

Caído como uma trouxa sobre a grama coberta de fragmentos chamuscados de coisas que haviam na garagem do tio Norm, eu gemia, oscilava entre a escuridão e a consciência. O ar estava impregnado com um cheiro enjoativo que lembrava banha de porco queimada no melado.

Segunda desgraça: era primavera, o calor era intenso e a única paisagem à vista era a do lado oeste do jardim, de parte dele. Eu contemplava alguns galhos frondosos e um trecho da cerca branca. Às vezes, eu sentia vontade de me atirar de encontro à janela e arranhar o vidro como um gato insano e choramingar comigo mesmo. No entanto, eu me habituara espontaneamente à clausura.

Papai estava trabalhando na gerência de um supermercado da cidade. Ele saía todos os dias muito cedo e voltava muito tarde. Duas ou três vezes por mês ele deixava um livro novo para mim sobre a escrivaninha e um bilhete: QUE TAL LEVARMOS ESSE GRANDE CÉREBRO PARA DAR UMA VOLTA NO PARQUE RUTHIE? O parque Ruthie era onde a escola do centro ficava. Papai havia se incumbido de me fazer querer voltar para o convívio em uma pequena sociedade. Uma pequena sociedade de jovens, o que era quase desumano para mim. Eu achava que papai ainda cria na inocência adolescente. Não, muito obrigado, prefiro ser queimado vivo, novamente, a ser jogado aos zumbis comedores de cérebro.

Eu sabia que ele tinha esperança de que eu não me tornasse um indivíduo amargo e esquisito, mas, o que eu podia fazer? Eu me olhava no espelho e sentia vontade de chorar. Levaria algum tempo até que o pior da dor me deixasse livre para viver como meu pai queria e ele não estaria presente para ver e ficar orgulhoso de mim.

Era uma madrugada fria e eu não havia conseguido dormir. Eu jazia estirado sob os lençóis, fitando o teto. Brincava com uma dobra lisa de pele cicatrizada que cobria o meu pulso. Eu havia adquirido o péssimo costume de acariciar e massagear as minhas cicatrizes. Era quase como se eu quisesse confortá-las: - Não, minhas lindinhas, vocês são os amores da minha vida. Um hábito para lá de esquisito.

Eu ouvi quando ele acordou. Era uma porta rangendo suavemente, um ruído de calçado social, uma torneira sendo aberta. E ele veio até mim.

Não pensei em fingir que estava dormindo. Se ele punha os pés no meu território era para fazer algo importante.

- Mike? – perguntou ele, a meia-voz – Está acordado?

- Sim, pai.

- Como se sente?

Deixe-me ver como me sinto. Soturno, pai querido. Vê que já não encontro a mesma facilidade em cair no sono? Aliás, parece-me que o senhor também anda meio soturno...

- Tudo bem, pai.

- Hã. É. Queria saber como você está. Queria falar um pouquinho com você e...

- Pai, não quer se sentar aqui?

Ele se sentou na beirada da cama. Eu me dobrei sobre os travesseiros. A penumbra nos envolvia e seus olhos pareciam lagos negros e mortos quando eu olhava dentro deles.

- Mike...

- O que foi, pai? Chuta.

- Por que você não tenta sair desse quarto, Mike?

- Pai, você quer falar sobre isso?

- Não, filho, eu quero falar sobre a sua vida. Estou muito preocupado com o seu futuro.

- O que tem o meu futuro?

- Não sei. Por que você não me diz o que tem o seu futuro?

- Eu só preciso de um pouco mais de tempo, pai.

- Mas já se passou muito tempo, filho! Você está se deixando consumir pelo que aconteceu. Já acabou, você devia estar feliz por estar vivo e poder seguir em frente.

- Não é tão simples.

- Por que não?

- Olhe para mim e tire alguma conclusão, pai. Diga-me o que vê.

- Eu vejo um garoto esperto, inteligente. Que podia estar numa roda de amigos, conversando, falando sobre as suas ideias, paquerando as meninas e me deixando preocupado sobre a hora em que vai chegar em casa.

- Você vê coisas que não existem, pai.

Ele se entristeceu ao ouvir isso. Vi seu rosto cinzento se enrugar. Nenhum homem quer ter um filho amargo e eu só queria lhe pedir um tempo. As coisas se revelariam melhores quando eu estivesse menos angustiado.

- Michael, você precisa ver que não está morto.

- Claro que não estou morto, pai. Só preciso parar de dizer a mim mesmo que seria melhor estar, então, eu poderia viver como o senhor quer que eu viva, certo?

Ele se levantou. A conversa estava terminada. Vejam só, eu ganhei. Agora eu podia remoer minha baixa autoestima e insegurança na paz da minha alma contrita.

- Pai, eu não...

Ele parou sob a moldura da porta e firmou seus olhos negros e profundos em mim.

- Michael, você devia ouvir as coisas que diz. São tão... dilacerantes.

Dilacerantes, meu pai? Olhe para mim, o que você vê?

- E vou ficar bem, pai. Tenha mais paciência comigo. Eu vou compensar tudo que tenho lhe causado.

- Ora, Michael, eu só quero que você viva. Que esteja feliz quando sua mãe e eu não estivermos por perto.

Eu não tinha resposta para isso. E o que era isso, algum tipo de despedida?

- Pai, eu amo o senhor e a mamãe.

- Nós também o amamos. Cuide-se direitinho, filho.

E do mesmo jeito que ele veio, ele se foi. Silencioso, sob a luz tênue que atravessava a janela, fechando a porta com o coração dilacerado. Eu estava dilacerado. Completamente dilacerado. Mas eu ainda não senti a dor que ele deve ter sentido.

Aquele foi um dia escuro para nós. Minha mãe se viu mais uma vez enredada na tarefa de me vigiar com seus olhos cansados. Não vieram cobranças dela. Nenhuma. Ela era toda ternura e atenção. Às vezes eu me sentia embaraçado diante dela.

Papai morreu à tarde. Uma morte boba. Ele caiu da escada quando descia do escritório e ia atender a uma cliente que queria reclamar que o chocolate que ela comprara ali tinha vidro na mistura. Pelo amor de Deus, eram flocos de açúcar que derretiam na boca! O que ela era? Uma visitante de outro mundo?

Terceira desgraça: não faz muito tempo, quando eu estava na cozinha, preparando o jantar, tendo o sol poente a me ofuscar, mas sem ligar muito para isso, ouvi quando mamãe voltou da rua. Ela tinha ido fazer um check-up. Eu havia dito a ela, mais cedo, que não havia nada de errado com ela, o médico lhe diria isso.

Ela me cumprimentou dando um sorriso amarelo e se deixando cair numa cadeira. Eu pus em sua frente uma travessa com macarrão e ela me encarou.

- Está com uma cara ótima, meu filho.

- Obrigado, mãe. A senhora vai se impressionar com o molho. Está quase tão bom quanto o que a senhora faz.

Ela riu e o que quer que o médico lhe tivesse dito, não tinha importância naquele momento.

- Eu falo de você, Mike. Mas a massa também parece boa.

- E então? Como foi?

- No hospital?

Eu me voltei para o fogão. Comecei a mexer com uma colher de pau o molho espesso, sentindo a baforada no meu rosto. Tão quente e perfumada.

- Como foi, mãe?

Eu a ouvi respirar fundo. Bati a colher na beirada da panela.

- Acham que estou com câncer, Mike.

- Hein?

- Ora essa, você me ouviu.

- Como assim, acham que a senhora tem câncer? Eles, por acaso, saem distribuindo diagnósticos como esse?

- Certamente não. E eu já tinha feito uns exames específicos.

Eu me virei em sua direção. Eu sentia o calor do fogo às minhas costas. Senti o rosto arder quase tanto quanto o molho fervente.

- Por que não me disse nada?

- Eu não achei necessário.

- O quê? Mãe!

Ela se encolheu na cadeira. Parecia ter diminuído. Sua força interior parecia ter caído pela metade.

- Desculpe-me, Mike.

- Mãe, não precisa falar isso para mim.

- Mas eu preciso. Eu devia ter falado a respeito. Mas eu tive... medo.

Eu me abaixei e segurei suas mãos entre as minhas. Nunca tive tanta vontade de fazer isso em toda a minha vida. Alisei sua pele enrugada e fina. Meu Deus, quando ela tinha se tornado tão frágil?

- Tudo bem, vai ficar tudo bem – eu disse e ela concordou balançando a cabeça para cima e para baixo, freneticamente, fazendo as lágrimas despencarem de seus olhos. – Vai ficar tudo bem, eu vou cuidar da senhora. Vou fazer tudo que puder para ajudá-la. Não vou deixá-la só, prometo.

Gostaria de dizer que desde então o deus insano que brinca com a minha vida sossegou, mas não foi isso o que aconteceu. Eu continuo contando as minhas desgraças. Sinto-me só.

A casa parece grande demais para mim, parece querer me devorar e me manter trancado como um pássaro dentro de uma gaiola. A luz que atravessa as janelas é algo de outro mundo, distante, de mentira. A suavidade da brisa não me toca, meus nervos foram destruídos como meu coração de criança. Eu gostaria de ser criança novamente. Eu queria ser capaz de voltar no tempo e comer outro sanduíche de atum na cozinha de tia Pietra e ajudar meus pais a colocar a carne no espeto.

Eu tenho dito a mim mesmo: - Não há nada aqui para você. Olhe em volta e descobrirá que não está vendo coisa alguma.

Acordei uma manhã, pensando em ir ao hospital. Não seria fácil, era como se esse dia tivesse andado à espreita. Ah, aquelas paredes tão claras, os corredores tão sem vida. A vida se esvaindo atrás de cada porta em sussurros de cortar o coração.

E enquanto fazia a barba, pela primeira vez, dei-me a oportunidade de ver-me. Olhei-me intensamente. Afinal, o que eu estava vendo?

Lá estava eu. Era eu, sim. Havia alguma vida no fundo de meus olhos. Senti um suspiro partir de dentro de mim. Era como se uma melodia até então desconhecida mexesse com o meu corpo. Eu estava vendo alguma coisa, sentindo. Havia uma fagulha de vida no espelho. E ela ansiava por ser libertada.

Gostaria de dizer que sonhei, mas estaria mentindo. Tudo que eu sentia, então, era vontade de sair correndo pela porta, não importando o que pudesse me ocorrer. Eu ansiava por libertação. Eu deixaria minha vida, pois ela não valia nada. Não porque eu havia sofrido, mas porque a vida era uma roda, girando sem parar, e a minha vida havia se partido, há muito tempo. Eu podia me ver oscilando na escuridão, eu podia me deixar cair em seu abraço frio. Sua suavidade será mais do que bem-vinda.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 03/05/2010
Código do texto: T2234226
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