Memórias de um Maldito

Ao anoitecer, as pessoas comuns possuem a capacidade de ouvir os simples sons da natureza e os sons da própria sociedade, evoluída com seus carros e motos. Mas não conseguem perceber o choro de uma criança a quarteirões de distância ou o sutil aroma que vem da macieira quando sopra o vento.

Nenhuma delas consegue sentir a excitação de ter o pulsar dos corações de toda a cidade batendo no tímpano. É fascinante andar pelos telhados no meio da escuridão observando cada passo de alguém, ouvindo cada conversa sem fundamento só esperando o momento certo para se alimentar.

Se você fica pendurado por muito tempo em alguém o sangue esfria e a vida se esvai, assim o sangue não serve de nada. Por que um morto beberia de outro morto? Um morto como eu precisa de vida, afinal é a única coisa que não podemos ter. Na primeira vez ainda existe aquele sentimento de medo, de desespero por sugar a existência de alguém; mas a partir do momento em que o liquido entra pelas presas, o gosto leve e ao mesmo tempo presente como o mais maravilhoso vinho... Nada mais existe, nada consegue te parar.

Um bom truque é que – no final – a garganta fique bem estraçalhada, assim qualquer um pensará que foi ataque de animal selvagem. E um lenço limpo realmente ajuda, os mortais não costumam gostar de quem anda sujo de sangue na boca.

Mas na vida de um maldito, nessa pseudo-vida, existem tristezas incontroláveis. Saudades que nunca vão embora. Nosso maior jubilo sempre será a chuva, esse choro que cai do céu sempre que um bebê padece.

É a única forma de sair durante o dia, o sol está encoberto por nuvens cinzentas e não pode queimar nossos corpos de volta ao inferno. Andar pelas ruas durante a chuva – estranhamente – nos da uma sensação que quase chega a ser divina, andamos no meio de outras pessoas sem que notem que somos diferentes, sem que sintam a tentação do nosso olhar já que os mortais não olham para frente durante as chuvas.

Particularmente nunca vi outros com eu, mas sei que existem porque alguém deve ter me criado, ter me feito renascer para essa vida de maldição e pecado. Na época que eu era mortal, as coisas eram diferentes: os homens trabalhavam no campo com roupas mais leves e maiores, as mulheres se restringiam às suas casas, as crianças corriam para brincar e eu me lembro de um amor. Um amor alegre e acolhedor, mas por mais que eu me esforce não consigo me lembrar de quem vinha esse amor tão bom. Agora, amor é uma coisa inexistente.

Uma alma condenada como a minha só conhece um sentimento amargurado, um sentimento nauseante e irado. Consegue imaginar como é fechar os olhos e não poder dormir? Fechar os olhos e não poder morrer? Ter um coração imóvel e continuar andando. Eu mato dia após dia para não sentir dor, porque só depois de tirar uma vida é que você entende o que é ter paz numa existência tão horrorosa.

Diante de tudo que poderia me acontecer, o pior seria transformar alguém nesta coisa demoníaca. Transformar alguém nessa coisa como eu... Em um vampiro como eu. Mas como todas as espécies, nós sentimos a necessidade de procriação em algum momento e isso só serve para piorar meu tormento.

E por isso eu me decidi: não vou deixar isso acontecer. Não vou deixar nada disso acontecer outra vez. Vou esperar pelo sol na colina verde perto da cidade, uma colina que lembra o lugar onde eu perdi o único amor de que tenho lembrança. Vou esperar pelo fogo da minha pele e pelo calor dessa maravilhosa estrela. Vou esperar para poder finalmente tocá-la, para poder ser preenchido por cada parte do seu brilho. E vou esperar por minha morte, a qual sempre se fez ausente.

É quente... Quente como o nascer de uma nova alma. Quente como a decadência de outra. Morrer é maravilhosamente quente.