Sata 666#Ilha da Desventura

Ele perdeu os amigos que já não tinha mais. A casa não era mais sua. Sua profissão não mais o reconhecia. Seu vencimento depositado em conta-salário parecia não ser seu.

Respirou o ar que não podia e foi salvo por leis que não merecia. Olhou para os lados e viu que os olhares não eram mais pra si. O café morno do boteco tinha um gosto que não era mais familiar.

O chão que pisava lhe era indevido, não poderia ali por os pés. A vida lhe parecia um favor concedido com má vontade ao qual por mais que fizesse sempre seria pouco para pagá-lo.

As pessoas o olhavam como se fosse um estranho, ali indesejado, melhor ignorado. Não lhe valeriam o tempo ou poderia morder e transmitir sua raiva. As pessoas não tinham tempo pra sentir outra coisa que não fosse pressa.

Olhava para o céu e o céu estava indiferente ao que sentia. Seu corpo junto aos outros na movimentada metrópole se encaminhava apressadamente para a fábrica ou escritório.

Não havia missões, planos de salvação ou apoteose. Nem um prêmio no final da promoção. Nem descobertas milagrosas das ciências que lhe curassem de qualquer coisa.

As ideias redentoras estavam esvaziadas e os homens maus se divertiam ingenuamente com o poder. A morte lhe aguardava em casa até a hora de sua chegada do trabalho.

A lotação 102, no Sol abafado de Belo Horizonte, avançava resfolegando fumaça, correndo desesperada por avenidas e detida impacientemente em alguma interdição de pista. Naquele dia a linha 102 parecia ter pressa em levá-lo pra casa, onde a morte o aguardava.

Era aquele o seu dia, já estava marcado, morreria assim que subisse a escadaria até o terceiro andar, onde a morte o aguardava até que chegasse do trabalho. Ela não tinha pressa. Ele tinha.

Suado, cansado e desesperado de fome abriu a porta. Casa vazia como de costume, alguns móveis usados, numa mistura de estilos, que tornava indecifrável quem ali morasse. Abriu a geladeira, tomou água gelada e sentou-se no frio sofá cheio de poeira cinzenta.

O coração acelerou, a morte resolveu apressar logo sua tarefa. O copo caiu de sua mão e perdeu o completo controle sobre sua consciência. Desabou no chão molhado, e as paredes imperiosas e móveis visto de baixo para cima foram sua última paisagem a contemplar.

A Polícia Militar de Minas Gerais fora chamada para averiguar as reclamações do mau cheiro vindo do apartamento 312. O móvel a 3 dias sem nenhum movimento de pessoas exalava a corpo putrefato. Os vizinhos desconfiavam de algum animal morto em móvel desocupado até que a intensidade do cheiro cadavérico não deixasse mais dúvidas.

A ocorrência fora registrada pelo cabo da Polícia Militar e as demais averiguações por conta de peritos da Polícia Civil confirmaram morte natural, sem evidências de violência ou alguma ação intencionada para o resultado da morte.

Chamou a atenção dos curiosos no local o uniforme de uma fábrica conhecida na região devidamente vestindo o cadáver que estava no chão. O crachá esquecido no pescoço como um colar mostrava seu compromisso com o nome da empresa. A geladeira aberta com algumas cervejas e comida semi-pronta não foram tocadas.

O masso de cigarro ao lado de esqueiro de plástico repousavam na mesa intactos levemente alinhados com um cinzeiro de gesso branco envelhecido.

Toalhas arrumadas sobre a cama e uma bermuda com chinelos logo abaixo, pareciam aguardar alguém sair do banheiro para vesti-los em breve. Lá ficaram sem o destino esperado se cumprisse.

Feitas as averiguações procederam os policiais para 42 DP onde fora arquivada a ocorrência.

Na quadra 23 do cemitério do Bom Jesus, área destinada a indigentes, foi deixado o corpo provisoriamente até que os ossos pudessem ser incinerados e desse lugar a outros corpos que pra lá eram enviados quase todos os dias.

Não fora preciso que o nome no crachá servisse para identificar quem ali estava sepultado. Se foi e não deixou nem saudades. Suas cinzas misturadas com a terra e outra levada pelo vento passou desapercebida pelos que ali estavam sepultando um ente querido.

O vento que empoeirou os jardins trazia seu pó e o depositava sobre flores e folhas em pomares mal cuidados, indistinto de qualquer outro pó para os olhos pouco cautelosos.

Os cães soltos nos quintais latiam a qualquer movimento estranho, a noite trazia o silêncio e a escuridão que sempre alegorizam o destino inescapável. Um destino que fica a espera de cada um, enquanto a vida segue nos seus ciclos, brigas, alegrias levianas, festas, vivências e tantas outras coisas.

A última ilha do homem, a última em que ele seria exilado, era nas partículas atômicas, o carbono, o cálcio, o hidrogênio, o oxigênio. Partículas sólidas, líquido e gases retornavam ao ambiente. A Terra seguia brotando vida e espalhando morte. Jardins de vidas e corpos sucessivamente descontínuos.

*Um verme na ilha*

A morte o esperava escondida em seu apartamento. Ela não tinha pressa, mas também não abria mão de sua presa e do direito que tinha sobre aquele corpo e sobre aquela alma. Era dela, e não havia motivo nenhum para que as coisas fossem diferentes.

O lance de escada que o separava do solo até o apartamento, imponente e cansativa, estava diante daquele cara, cuja morte indigente tivemos a desonrosa tarefa de narrar. O que não contei foi o que aconteceu enquanto subia a escadaria do edifício onde morava.

As mãos se esfriaram subitamente, a vista escurecia, resolveu um pouco tarde subir a escadaria devagar, o sangue não percorria o cérebro com o oxigênio necessário ao desempenho satisfatório às suas funções. Passou mal antes de chegar no segundo andar.

Se viu subitamente diante de um senhor ao mesmo tempo estranho e conhecido. A aparência tradicional demoníaca contrastava com um sorriso familiar e conhecido. Estendeu sua mão e o levantou. Lhe disse sem muitas cerimônias: lá em cima a morte o espera, nem eu e nem você podemos impedir que ela opere sua obra.

Chorou copiosamente pela vida que se encerraria naquele momento. Lembrou-se dos melhores momentos e das coisas que não mão iria viver e daquelas que porventura um dia poderia experimentar.

"Tenho um presente pra te dar, mas não precisa me agradecer. Te cobrarei na hora certa. Em 40 minutos estará em sua casa morto. Farei estes 40 minutos serem 40 anos. Terá o que quiser e desejar. As mulheres mais sensuais se rastejaram atrás de seu dinheiro. Seu cartão de crédito valerá mais que um sorriso. Os homens te servirão em todas as suas vontades. As leis que me servem também servirão a ti. E poderá dispor de todas as criaturas que quiser a seu bel prazer.

Riquezas e luxos não te faltarão. Estalará os dedos e terá países e governantes a sua disposição. Não verá os homens como iguais a ti. Será como um deus vivo acima das massas. Comerá e beberá do melhor da terra e terás conforto onde muitos sentem dor. Degustará manjares e iguarias, enquanto outros morrem de fome.

Brincará de guerras e saqueará países do conforto de uma sala, enquanto jovens e crianças morrem pra você ganhar seu jogo. Não haverá nada, absolutamente nada que não possa apontar o dedo e não poder tomar para ti como se fosse teu. Nem terras, nem pessoas, nem florestas, nem o próprio ar que as pessoas respiram.

O que acha? Eu só quero sua alma em troca"

Aceitou o pacto. Viveu os 40 anos tendo feito tudo que quis, das coisas más e ofensivas as mais banais. Não houve nada que não tivesse o bastante e que não estivesse deles saciado. Como havia lhe dito Lúcifer.

Passados os 40 anos naqueles 40 minutos, estava lá caído no chão. Olhando os móveis de baixo pra cima e as paredes imperiosas sobre ele. Não estava ali Lúcifer e nem vestígios de tudo que viveu. Somente um verme passeava no chão poeirento em direção a lugar nenhum...

*Quem estava lá*

Sim, eu estava lá. O vento que levou as cinzas. Ele morreu como um indigente, mas eu o conhecia melhor que qualquer um. Fui mais generoso com ele do qualquer um dos seus santos. Eu fui o único a ter misericórdia dele antes que morresse.

Foi seu medo da morte que me fez existir, fora isto sou como qualquer verme que anda por aí. Eu opero a coragem e os inventos que precisa pra destruir e dominar tudo que precisa. Mas não posso te poupar da morte e nem estar a seu lado neste momento. Estarei com outro quando não mais existir.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 18/05/2016
Reeditado em 20/05/2016
Código do texto: T5639700
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