MINGO

Era uma vez um menino e um... Não! Não quero iniciar esta historinha deste modo. Faz-me lembrar da minha infância quando todas contadas pelo Compadre Demétrio invariavelmente iniciavam assim e se desenrolava numa enxurrada de coisas terríveis, como “uma vez uma mula-sem-cabeça; uma vez Saci-Pererê; uma vez assombrações”. Deus me acude! Se era história de Pai João e Mãe Maria já sabíamos ser bonitas. Pena eu não me lembrar mais de nenhuma delas.

Havia numa pequena e pacata cidade do interior mineiro um menino franzino, esperto e se destacava dentre os colegas do colégio quase que somente por essas características. Todas as manhã o grupo ia para a escola e não importasse a distância tinha de ser percorrida a pé. E lá ia e vinha fazendo daquela obrigação um motivo de brincadeiras ruas afora.

Em uma determinada ocasião um gatinho cismou a acompanhar. Quando o grupo passava rente a uma cerca de bambus, ele se esgueirava por uma brecha naquela trança de lascas e seguia. Chegado ao lugar definitivo, ficava um instante por ali. Não entrava pelo portão porque nunca tentou e se tentasse, quase certo, seria impedido.

Numa dessas vezes, Tino, o garoto, abaixou-se e fez-lhe um carinho daquele tipo de qualquer gato gosta: acariciou-o desde a cabeça até o rabinho. Ele gostou! Elevou a cauda e se esfregou na perna do menino várias vezes ronronando. Isto feito, cada um para seu lado: meninos estudar; gato retornar para sua casa e fazer o quê? Esperar a turma regressar e caminhar com eles até a casa daquele morador mais distante. Mingo, nome do gatinho, somente desejava matar o tempo. Nada de espreitar ou correr atrás de rato ou à frente de um cachorro.

Tino se afeiçoou a ele. Sempre acariciando, “falando” algo para o recém-amigo e não demorou muito Mingo já ficou pelo caminho, parado e olhando para Tino quando chegavam ao portão da casa. Bastou uma troca de olhares e o gatinho pulou na frente e passou a morar ali. Mas não perdeu o hábito de ir à escola com a meninada e tempos depois não se sabe como, saía de casa quase na hora e voltar com a turma. Este era o “serviço” mais apertado dele.

Neste intervalo ele conheceu o Camisão, cachorro de um vizinho em frente que não queria nada com nada e topou ser um bom companheiro para eventualmente brincar com Mingo. Camisão era um vira-lata branco e preto. A parte preta do seu pelo iniciava-se na base do pescoço, descia até o meio das patas dianteiras e seguia até os vazios. Pareciam estar sempre vestidos com uma camisa preta e daí...

Um dia Mingo amanheceu morto. Coisa mais triste não poderia acontecer para Tino. Inconsolável. Dias e mais dias chorando sem reclamar uma só vez. Somente chorava. Fazer o que para um menino de uns seis ou sete anos entender que isto é participante da vida? Alguém teve uma ideia: chamar a Iara.

Iara era uma dessas pessoas não tão raras no mundo, apesar de escassas. Sua vida sempre foi destinada aos outros e no seu dicionário a primeira e única palavra existente era servir. Se aquele espírito de luz desconfiasse ou soubesse de alguém com algum problema, alguma dificuldade não precisaria chamá-la: lá estaria ela para ajudar.

Chegou e viu o Tino, curiosamente, nada desesperado. Cabisbaixo, mudo, vez por outra, um suspiro fundo e mais nada. Não falava, mal se alimentava já há uma semana e ele, que já não tinha lá essas reservas, estava definhando por causa do seu amigo. Falar o quê para aquele menino? De que maneira animar ou mesmo consolá-lo? Partiu de dentro, nem ela mesma soube como surgiu a prosa com o menino sofredor.

Ela lhe disse mais ou menos isso: quando a gente ou outros animais estamos vivos há uma luzinha dentro de cada um. Quando morre, esta luz sai e sobe pros céus. Fica alegre, piscando e feliz por estar lá eternamente.

Aconteceu já um progresso. Tino levantou a cabeça e a Iara pode perceber os olhinhos fixos nos dela, marejados e os músculos ao redor da boca trêmulos por pequenos espasmos indicativos de quem realmente está sentindo uma dor; dor de verdade; de dentro. Uma só lágrima rolou pelas bochechas.

Chamou-o para o meio da rua e pediu-lhe que olhasse determinada estrela bem visível. Disse-lhe que aquela era o Mingo. Foi imediata a mudança de comportamento do menino. Iniciou um monólogo com a estrela brilhante, emocionando-a. Algum tempo depois se despediu, prometendo voltar outras vezes para estar e bater papo com o amigo inseparável.

Virou-se e já caminhava em direção ao portão. Parou. Voltou-se para o Mingo e dedurou o seu antigo amigo:

-Olha, Mingo! O único que não ligou nem um tiquinho com a sua ida foi o Camisão. Eu coloco ração pra você todos os dias e ele come toda. Tem importância não. Amanhã eu vou colocar de novo. Quem sabe um dia você não resolve descer daí?

Retornou esboçando um sorrisinho amarelo. Ele agora sorria; Iara chorava.

Terça-feira, 30 de outubro de 2007

Dbadini
Enviado por Dbadini em 11/02/2010
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