A GRALHA AZUL*

Menino criado em cidade pequena, interior do estado do Paraná, não natural dali, morador chegado em tenra idade, passava o dia em calções de elástico e, geralmente, o dorso nu, a brincar pelos matos, lá existente, e muito. Terrenos baldios, invadidos por quiçaças e plantões rasteiras de vegetações diversas, muitos pés de mamonas e plantas silvestres, nascidas ao léu sem cultivos específicos, ervas daninhas misturadas a carrapichos e espinhos.

Não se recordava como a conseguiu, se ganhou, ou foi encontrada, capturada por ele não poderia ter sido, não era muito esperto nessas aventuras de caçadas. Assim como gostava de empinar papagaios, em outros locais conhecido como pipas, mas não conseguia fazê-los, tinha uma especial dificuldade com coisas que exigisse certos cuidados, como o de colar o papel delicado nas varetas de bambu, acabava por rasgá-los e desistia das tentativas. Os que teve foram confeccionados pelo irmão menor, mais habilidoso naquelas tarefas, ou adquiridos pela mãe. Jamais acertara alvos com estilingues de galhos secos, forquilha presa em tiras de borrachas, tendo as bolotas de mamonas verdes como munição, arremesso através da distensão das tiras. Fracasso total nessas aventuras de atingir qualquer alvo, além de não dispor de uma arapuca, própria para caçar pequenos pássaros.

Vaga lembrança, talvez tenha conseguido aquela preciosidade por acaso, quase um acidente. Numa manhã de intenso frio, próprio daquela região no inverno, ao retornar das aulas matinais de educação física na escola, por pouco, distraído, não pisava sobre ela, imobilizada pela baixa temperatura, desfalecida na aparência de morta. Os olhos enfraquecidos ainda denotavam vida, aquecida e tratada, recuperou-se rápido. Um vizinho informou que se tratava de uma gralha, e era alimentada por ovos de outras aves, além de pequenas larvas existentes em troncos de árvores e de frutas silvestres. Logo adquiriu uma pequena gaiola, para melhor observar a nova aquisição, a amiga de penas.

Aquele pássaro, belo, diferente, por fim ganhou suas atenções, vivia ao redor dele, apreciando sua beleza diferente, conforme a posição que ficava na gaiola, mostrava cores diversas refletidas com os raios de sol. Suas cintilações azuladas davam um charme a diferenciá-la das demais aves vistas até então, geralmente codornas, rolinhas, pássaro preto, sabiás, anus e pardais mais comuns no dia a dia. Por vezes o espetáculo de alguns beija-flores, raros, infelizmente.

As maritacas passavam em bandos, fazendo coro estridente, mas em vôos altos, antes ouvidas do que propriamente vistas. Havia ainda o revoar das andorinhas anunciando chuvas ou mudanças de estações do tempo, mas sempre em grupos da espécie. Aquela estava à mão, ao alcance dos olhos extasiados e embevecidos com sua beleza e galhardia de seus movimentos leves.

Chegava ofegante, pela corrida na pressa na volta da escola, a bolsa com cadernos e lápis, a lancheira pendurada, mal trocava de roupa e, metido no costumeiro calção, se quente o dia, o que era constante no verão, livrava-se da camiseta e reinava absoluto com as costas e peito expostos, bronzeados naturais pelo calor da estação.

Ao encontrar-se desimpedido , livre das obrigações escolares, única preocupação a ocupá-lo, afinal, era ainda uma criança para ter outras ocupações além daquela, ocupava-se a brincar solto, quase nu e descalço, naquelas ruas largas, de areias quentes.

Aquela ave exótica para ele, era a razão de seus dias, ficava admirando-a o tempo todo, isolado naquele fascínio que a mesma o entretinha. Era uma gralha azul, de bico longo a bebericar o ovo da galinha, fonte de seu alimento, com delicadeza e apuro...Como era prazeroso vê-la se alimentando, parecia ter um certo requinte naqueles gestos, bicando, sugando, e levantando o papo para engolir, repetidas vezes, até esgotar a clara e a gema e restar apenas cascas dos ovos. Era um espetáculo apreciá-la nesses momentos. Chamava os amigos para exibir sua conquista, demorando-se na exposição minuciosa de suas qualidades, envaidecido por possuir um bem tão especial, único e inacessível aos demais, fazendo invejas aos companheiros.

Havia no quintal um engradado imenso, outrora viveiro para porcos, criados pelo pai. Tratava-se de uma jaula de madeira, conhecido como chiqueiro, tendo servido também como galinheiro, lembrando uma gaiola, razão de, sem atinar que era grande demais, resolveu colocar sua preciosa avezinha naquele recinto, para que tivesse mais liberdade, porém as frestas largas, apropriadas para suinos médios e frangos, onde ela passou tranqüila por entre aqueles espaços vazios, assim que percebeu o novo ambiente. De repente a razão de suas alegrias ganhava espaços maiores do que o pretendido, alçaria vôos distantes, não sem antes ficar algum tempo por ali, como se considerando uma despedida, ou reconhecendo outros locais para a debandada. Fez pousada em um ramo de arbusto, a balançar com seu peso...Seria vontade de voltar para a casa, onde se deliciava com os ovos para alimentá-la?

Na sua ilusão infantil, ali teria ficado por momentos para se despedir dele, depois voar para as matas, seu real lar, e perdê-la. Liberta, em sua beleza, para alçar vôos sem fronteiras e limites, deixando-o triste, na lição primeira do amargo do desapego...

* publicado em livro na antologia Livro de Ouro do Conto Brasileiro, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, junho/2016