Abayomi

Meu nome é Abayomi...e eu existo. Sobre pessoas que não existiram, ou sobre coisas que não aconteceram, a gente inventa. A gente inventa também sobre coisas que talvez até foram, mas não temos fotos para provar. O que temos são lembranças de um tempo...nem sempre bom.

Daí que um dia estranharam o meu nome na escola. Riram dele. Eu ri também, fingindo gostar desse riso. A gente ri quando não há nada a fazer pra se defender do riso alheio. Cheguei em casa segurando o choro. Esperei o momento certo de perguntar: Porque esse meu nome, mãe? A mãe temperava o feijão. Parou. Provou o sal. Abrandou o fogo da panela e sentou na minha frente. A coisa era séria, tão séria que deu medo.

Há muito tempo a mãe da mãe dela tinha vindo de muito longe. Tinha vindo nada, trouxeram. Numa espécie de classe econômica tipo porão de navio. Comida pouca, pouca água pra beber, gente morrendo...muito ruim a viagem. A mãe dela minha vó era ainda pequena como eu sou agora. Só que eu me acho grande. Ela se achava pequena porque tinha muito medo dentro daquele porão. Fiquei sabendo que o medo diminui a gente. Ela chorava muito, como eu choraria... minha mãe contando essas coisas já me dá um nó na garganta e uma lágrima teimosa querendo escapar do meu olho. Mas eu seguro porque aqui em casa não se gosta de choro, meu povo só chora escondido. Ela chorava gritado no navio. E isso era um problema, um homem descia as escadas quando ouvia choro de criança e batia em todo mundo pedindo pra ficarem quietos. As mulheres não entendiam as palavras que ele gritava, mas sabiam pelos gestos dele, que era pra calar a boca das crianças. Até hoje meu povo tem o costume de calar a boca das crianças, principalmente das meninas. Porque será? Bom...nessa altura, eu já queria que a mãe parasse de contar. Só perguntei do meu nome... Só que minha mãe não é mulher de começar uma coisa e parar no meio. Continuou: A mãe da mãe dela, no meio daquele medo e daquele choro todo, pegou um pedaço da saia e rasgou. As outras mulheres ficaram olhando. Daí ela começou a cantar e enrolar o pedaço de pano rasgado nos dedos. Deu um nó depois outro depois mais outro. Rasgou um pedaço da blusa, pra fazer mais cor. Amarrou que amarrou, puxou daqui e dali e fez uma boneca. As outras mulheres estavam fazendo a mesma coisa. Quem tinha saia é claro... Quem tinha saia e não tinha criança doava, porque se tem uma coisa que mulher de qualquer cor aprende muito cedo, é doar o que falta pros outros. E nasceram várias bonecas naquele navio. As crianças se acalmaram um pouco, apesar da fome, apesar do medo... Abay quer dizer encontro. Omi quer dizer precioso. O nome das bonecas ficou assim: Abayomi. Tem outras maneiras de traduzir, mas essa que a mãe contou eu achei a mais bonita. As crianças do navio, aquelas que não morreram no mar, chegaram enfim no pátria amada mãe gentil. Muitas foram separadas de suas mães. Não tinham mais nada, só memórias, que aos poucos também foram roubadas. Quem conseguiu lembrar das bonecas Abayomi, sempre que tinha um pedaço de pano, fazia uma e deixava num canto de lembrança. Quem via dizia que era magia negra. E era... a magia de poder lembrar de um tempo bom, em que a cor da pele não ditava destinos.

Não deu. Quando minha mãe terminou de contar eu já estava chorando, mas quietinha só deixando a lágrima escorregar devagarinho. Sei lá, fiquei com medo de fazer barulho. Minha mãe é demais. Enquanto eu comia o feijão mais gostoso do mundo, ela amarrava uns panos e fez uma Abayomi pra mim. Amei. Não levei pra escola, ela disse pra deixar em casa...quem visse na escola ia achar que era coisa de magia negra... Tanto faz, eu ficaria feliz em contar que a magia não tem cor, mas vou obedecer minha mãe, até ficar grandona. Se isso tudo aconteceu mesmo dentro daquele navio, não dá pra saber. No livro da escola eu bem que vi uma pintura dos porões daqueles horríveis navios. Os viajantes da terra da vó não usavam roupas naquela pintura... Mas, quer saber? Prefiro não perder essa história. Meu nome é Abayomi. E eu existo.

Denise Paredes
Enviado por Denise Paredes em 28/01/2022
Código do texto: T7439724
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