Os Inimigos

Sebastião era moreno, os ralos cabelos deixavam entrever seus quase cinqüenta anos, era encurvado, alto, magro e ossudo. Consta que tinha um inimigo, Antonio, estatura mediana, sólido, substancialmente mais jovem que o outro.

O antagonismo entre eles era antigo e intenso, um profundo ódio que, ao longo da prolongada inimizade passou, praticamente, a definir suas vidas.

Assim, cada um dos contendores canalizava seus principais esforços ao antigo combate, cada ação, cada pormenor cotidiano, cada suspiro ou frase velada constituía a inextricável rede de artifícios empreendidos na derrota do adversário. Mas este não é o foco deste relato.

Antonio, no inverno de 1999, descobriu-se com um grave linfosarcoma (tipo de câncer que ataca os vasos linfáticos), doença traiçoeira, de avanço veloz e discreto. Decidiu, antes que findassem os seus breves dias, matar Sebastião em combate armado, ou ser morto por ele.

Este, além de não sentir-se capaz de liquidar o mais jovem em combate, não poderia encará-lo em duelo. Então, sabendo do intento do inimigo (embora ignorasse a doença que o acometia), não teve escolha senão fugir. Saiu de suas terras nos campos de Mato Grosso, para um remoto lugarejo no Paraná.

Fixou-se em uma estalagem simples, uma velha casa de madeira com numerosos cômodos. Não saía muito de seu quarto, mantinha-se, em geral, trancado e bastante apreensivo.

Tomou medidas de segurança: além da tranca normal, deixava sempre uma cadeira para melhor travar a porta, seu quarto não tinha janelas, de maneira a reduzir o número de entradas possíveis apenas à única porta que havia no cômodo, deixava sempre um revólver na gaveta da cômoda e dormia com um punhal debaixo do travesseiro.

As pessoas da estalagem estranhavam os hábitos de Sebastião, mas não faziam muito caso. Temia infinitamente o confronto direto com o inimigo, de certo modo intuía que, morto o adversário, nada mais teria a fazer. Tanto a sociedade quanto o indivíduo necessitam de seus inimigos, algo contra o que direcionar o ódio inerente à vida num mundo miserável. A personificação das adversidades é uma necessidade quase visceral, é o que nos mantêm sãos.

Ao passar dos dias, estabeleceu uma metódica rotina, que, justificava para si mesmo, eram para que todas as medidas defensivas se tornassem automáticas e precisas, para que Antonio não tivesse chances de cumprir sua empresa. Na realidade, tinha uma funda consciência de que, de outra forma, enlouqueceria.

Antonio, ao cabo de dois meses, teve pista do paradeiro de seu adversário, e seguiu, precipitadamente, em seu encalço.

Na pensão, a mulher do estalajadeiro começou a nutrir certo interesse pelo recluso forasteiro, passando a levar suas refeições pessoalmente no quarto. Sebastião, desesperado, ansioso, paranóico, acabou cedendo.

Na semana seguinte, João, o estalajadeiro, estranhando a intimidade de sua mulher com o solitário forasteiro resolveu, de arma na cintura, conferir o caso. Chegando ao quarto de Sebastião, viu sua mulher quase nua sobre o amante. Ficou atônito, não sabia se triste, se frustrado, se colérico. Em meio ao turbilhão de emoções que inundou sua mente, gritou, e, com três tiros, estirou o cadáver de sua esposa sobre o amante. Sebastião sentiu que aquele seria seu fim, mas, mesmo em face da fúria de João, fez um ultimo pedido.

- Um antigo inimigo meu vem procurar-me aqui. Chamo-me Sebastião. Se ele vier, mata-o como me matarás agora.

João, mesmo furioso, acabou por acatar a empresa como ultimo desejo de homem moribundo, que é algo sagrado.

Enterrados Sebastião e a esposa do estalajadeiro, este ficou numa espécie de suspensão, tinha a arma carregada e lubrificada sob o balcão e, ao menor sinal de algum visitante, já levava a mão à pistola.

Um dia, entra um sujeito acaboclado na estalagem, com um revólver e um facão na cintura, diz procurar por Sebastião. O estalajadeiro, um pouco assustado, desconversa e pergunta quem o procura. “É da parte do Senhor Antonio”. Um gélido serpentear atravessou a espinha de João.

O caboclo leu a expressão do outro e entreviu seu movimento de pegar a arma sob o tosco balcão, e logo sacou o revólver. Ficaram estáticos, um apontando a arma para o outro. O caboclo falou.

- Meu patrão mandou, em seu leito de morte, que eu matasse Sebastião. Meu negócio não é com você, melhor sair do meu caminho...

Um silêncio mortal estabeleceu-se. Houve uma íntima comoção, os dois homens, subitamente, se odiaram. Empunharam as armas com um ódio antigo (talvez mais antigo que eles) e foram para o exterior da estalagem.

Bruno Forcioni
Enviado por Bruno Forcioni em 31/03/2006
Código do texto: T131352