ERA ELE...

Ficou viúva ainda jovem. O marido foi-se num acidente de carro. Vestiu-se de luto. Longos anos na clausura do lar. Entre sombras e fantasmas vivia o amor que não viveu. Teresa, a vizinha, se incomodava: como é que podia aquilo? Uma mulher tão bonita, tão atraente. Sempre ali trancada entre os muros. À tardinha, ia lá bater no portão. Conversavam, tomavam chá na cozinha “E aí, Maria Lúcia, quando é que vai arrumar um namorado?”. Ela sorria serena “Penso nisso não...”

A vida correndo. Ela mudando de ideia. Seria bom ter alguém. Conversar, ver um filme, passear de mão dada. É, ia ser bom... Voltar a viver. Como? Difícil! Não tinha amigas, não saía de casa. Tinha perdido o rumo do mundo. Conformou-se. Acreditou no destino. Um dia haveria de chegar nova chance. Um grande amor. Não ia procurar. Ele haveria de vir pelos próprios pés, pela própria vontade. Não viesse, não era pra ser...

Sete da manhã. Ouviu o toc, toc no portão. Ué, quem seria àquela hora? Vestiu o roupão por cima do pijama. Juntou o cabelo despenteado num coque mal arrumado no alto da cabeça. Calçou as pantufas. Foi atender. Era o leiturista do Serviço Autônomo de Água e Esgoto. Tinha vindo ler o hidrômetro, trazer o relatório de qualidade da água. Olharam-se de cima a baixo. Leram-se profundamente. Interpretaram-se. E até hoje estão se entendendo nessa leitura sem fim...