Cotidiano

COTIDIANO

IVONE APARECIDA DOS SANTOS

Chego em casa na mesma hora de sempre. Uma escadinha de quatro degraus recebe-me com gritos de euforia. A minha outra parte lança-me um olhar lasso e repreende-me por eu não dar aos seus filhos uma atenção sequer. Tiro os sapatos. O mais novo traz-me os chinelos. Há um ano faz isso todos os dias sempre quando tiro os sapatos. Sem lavar as mãos nem trocar de roupa, sento-me no sofá. Ela traz um algo quente pra eu comer. O barulho da televisão irrita-me. Após comer vou tomar banho. (sempre faço isso, um costume). Vou tomar banho pra descansar as ossadas. O barulho do chuveiro deixa-me com os nervos à flor da pele. Até as vozes dela e deles me enraivecem. Por uns momentos, tampo os ouvidos com os dedos. Um momento de desespero. Tento morrer. Hesitei. O corpo morre. Os barulhos, os ruídos, as vozes são perfeitamente ouvidos pela alma. Essa – imortal – não morre nunca...

A noite caminha morosamente, e quero trucidar os grilos. Estou deitado ao lado dela. Gostaria de trucidá-la também – hesito – paro de pensar. Paro de querer, stop... Mas o coração não pára – teimoso – não pára, não dá trégua. Bate. Bate, insistentemente, vive. Estou deitado ao lado dela. Não roncava assim quando nos casamos, ou talvez, isso não me irritava.

Viro-me na cama de um lado para o outro, rolo, cubro a cabeça com o travesseiro e continuo irritado – profundamente irritado... A torneira da pia da cozinha está pingando e desde ontem, pingando. Ela havia falado na noite anterior, e na outra, e na outra sobre os poc-poc-poc persistentes e irritantes. Se pelo menos não fosse quarto-cozinha, refugiava-me dessa onomatopéia insuportável e que sutilmente denuncia minha miséria – tão seca, tão dura, tanto quanto as aves de arribação que prenunciaram a miséria de Fabiano nas Vidas Secas e silenciosas de Graciliano Ramos.

Neste dia tudo me chateou. As pessoas nas ruas, os camelôs, as buzinas dos carros e até a minha própria voz. Todos os que vieram conversar comigo, seriam vítimas da minha falta de perspectiva, de objetivos – não fosse eu covarde – mas, como sempre – titubeei. Tinha as mãos vermelhas de ódio, tédio, poluição sonora.

Tudo se mistura em minha mente. Perco o sono. Ela continua roncando. Ela continua dormindo. Ouço vozes, barulhos, ruídos. Ouço todos os barulhos que ouvi durante o dia. Ela pára de roncar - súbito – parou! Valorizo o silêncio...Ah!!! Quão importante o silêncio. A solidão. Houve instantes demorados de silêncio. Percebo a solidão apossar-se da minha alma cansada. Bebo cada minuto daquele silêncio, especialmente preparado pra mim. Descubro coisas fantásticas estando sozinho comigo. Naquele momento, eu me bastei. Reflito por horas – acalmo-me.

Com o passar das horas, o sono pesa meus olhos. Olho para a dona que está deitada ao meu lado e presencio seu silêncio. Chego bem pertinho e ouço uma respiração ofegante e abafada. Quero gritar, mas só minha alma grita – falo com Deus. Afasto meu corpo do corpo dela. Nossas respirações se confundem silenciosas. Mesmo a minha, acontece bem baixinho, parece dormir. Os corações batem com medo de despertar-me e eu durmo um sono anestesiado.

Ivone Aparecida dos Santos
Enviado por Ivone Aparecida dos Santos em 22/10/2006
Código do texto: T270676