O Palito de Fósforo no Leito do Rio

Cleovansóstenes era conselheiro do bairro onde morava. Fora denominado naturalmente conselheiro por força de algumas circunstâncias em sua comunidade. Era pacato e simples e inveterado fumante. "Seria um bom juiz de direito se estudasse para tanto", diziam alguns. Todos os pequenos entreveros entre os moradores eram levados à casa de Cleovansóstenes, que os dirigia a contento até chegar a um ponto em comum.

Tudo isso começara no dia em que ouvira rápida conversa no bar da esquina, havia já muitos anos, onde o dono comentava a tristeza de Filermina, filha de João do Facão, expulsa de casa pelo pai por estar grávida de um desconhecido. Alguns fregueses davam razão a João do Facão, outros diziam "coitadinha", "pobrezinha" e mais alguns adjetivos que o sentimentalismo público pronuncia no diminutivo.

Cleovansóstenes ficou só ouvindo. Num arroubo de sabedoria, entre um copo de cerveja e outro e um cigarro e outro, disse sob perdigotos que Deus prepara nossa cama com a palha que tem à mão. As pessoas ficaram atônitas com palavras tão bonitas e raciocínio tão lógico, mas ficaram mais ainda quando alguém se lembrou de perguntar o que ele queria dizer com aquilo. Queria dizer que o filho na barriga de Filermina seria o amparo na velhice de João do Facão, mas que ele andava meio cego pela honra manchada e não percebia; que tinha já muitas crianças jogadas nas ruas da cidade e que o sangue de João do Facão seria mais um, andando sem destino e sem esperança.

Houve um pequeno silêncio jogado no ar do bar antes que alguns queixos e beiços manifestassem admiração pelas lindas palavras. Cleovansóstenes era homem de bonitas palavras. Não era à toa que tinha aquele bendito nome difícil como o quê de se falar e que não permitia chamarem por qualquer apelido.

Ele se levantou da cadeira, apanhou o copo e deu o último trago na cerveja e baforou uma grande quantidade de fumaça, enquanto dizia "é burro o homem que não sabe entender os sinais de Deus". Saiu desviando das cusparadas com as quais os fregueses enfeitavam o chão do bar e fez com que todos percebessem que estava desviando.

Uma semana e meia depois, Cleovansóstenes soube que Filermina voltara para casa dois dias depois que a comunidade foi reproduzir a João do Facão as palavras ouvidas no bar. Disseram a ele, Cleovansóstenes, que o pai da menina pensou, pensou, pensou e sorriu os poucos dentes careados e tartarados e mandou procurar a filha.

Ao invés de se alegrar, Cleovansóstenes se entristecera com aquilo que chamou de "estranho comportamento de homens que não sabem preparar seu futuro". Deixou todo mundo boquiaberto, apanhou um ônibus e foi caminhar solitariamente num lugar qualquer, "bem distante desses cabras sem palavra que se deixam levar por qualquer raciocinozinho que ouvem".

Parou num bairro distante onde morava sua irmã e lá passou a noite. No meio dela, levantou-se para fumar no quintal, que terminava bem nas margens de um córrego imundo. Ficou olhando aquelas águas sujas e criticando as pessoas que não tinham o mínimo senso de responsabilidade e jogavam tanta porcaria no rio. Estava triste com o mundo na pessoa de João do Facão.

Como eram maleáveis os homens! Como era fácil fazê-los mudar da água para o óleo com simples, mas bem postas, palavras. Passava entre os dedos o palito de fósforo que usara segundos antes para acender o cigarro enquanto pensava. Junto à decepção, via o leito do rio que transportava todo tipo de objetos. Num gesto de desdém e quase inconsciente, lançou o palito no rio e voltou para a cama.

Isso tinha sido havia alguns anos.

Durante todo aquele tempo o tempo só fez afamar seu nome no bairro e seu jeito de ver as coisas também. Era um homem de bem que pensava certo enquanto as pessoas viam errado. Com o tempo, descobriram que ele era capaz de debulhar os fatos de forma simples e reconstruí-los de maneira a agradar a gregos e troianos.

O palito que jogara no rio do bairro distante seguiu o leito das águas, como Cleovansóstenes seguira o leito do tempo. Foi batendo num osso aqui, num graveto ali, enroscou-se em e desenroscou-se de garrafas acolá. Num certo momento, o acaso o levou mais próximo à margem e alguns limbos o prenderam.

Neste momento, Cleovansóstenes estava no bar abrindo a quarta garrafa de cerveja e acendendo seu quadragésimo quinto cigarro, reclamando que o governo não havia dado aumento aos pobres aposentados como ele. Reclamava do governo com palavras tão belas quanto as que usava para resolver questões entre os amigos.

Meses depois, uma folha de papel juntou-se ao palito e prendeu-se nele.

Um ano e meio se passou e Cleovansóstenes consolidava sua imagem de homem justo junto à coletividade. Fora convidado a ser padrinho de batismo do filho de Filermina.

Certo dia a polícia começou a visitar o bairro. Estava à procura de um traficante nas redondezas.

No leito do rio, outro papel se enroscou no anterior e ali ficou.

Quando descobriram que o traficante procurado era um jovem muito querido da comunidade, todos foram até Cleovansóstenes implorar para que ele fizesse alguma coisa. Ele foi até o jovem e encetou conversa por duas horas até se decidir por levá-lo até a delegacia e requerer a tutela do menino, conseguindo sua liberdade vigiada.

Uma caixa de papelão ficou parada no leito do rio, pois o palito e os papéis não permitiram sua passagem.

Cleovansóstenes tinha se transformado em fonte de exemplos à comunidade. Três anos se passaram e o chão do bar não mais apresentava as formas horrendas de escarros dos fregueses. Até o ano seguinte, nem restos de coxinhas ou quibes eram vistos no piso.

Nessa época, o movimento da água no leito do rio e a erosão já tinham consumido o palito de fósforo, mas aos papéis e à caixa de papelão se juntaram algumas garrafas que viajaram para ali vindas de muito distante.

Então, sob palavras e aplausos de Cleovansóstenes, a comunidade conseguira uma caçamba da prefeitura e a instalaram numa esquina, onde jogavam todo o lixo das casas. Uma vez por semana, funcionários públicos vinham esvaziá-la. Fora um belo acontecimento.

Muito longe dali, alguém cortara alguns galhos de árvore no próprio quintal e os jogou no rio. Foram transportados pela água durante a noite e dois ou três não conseguiram passar pelas garrafas e obstruíam mais o rio.

Já havia chegado o momento de convencer Cleovansóstenes a se candidatar a vereador. Todavia, por mais que falassem que só seu nome já conseguiria metade dos votos, não o fizeram perceber como seria útil ao estado sua candidatura.

Uma capa de sofá tinha coberto os galhos das árvores.

"Prefiro continuar como estou, ajudando quem posso sem compromissos políticos." Tais palavras foram bastantes para nunca mais pedirem que se candidatasse, pois um sábio como ele, que sabia o que era bom para os outros, devia saber o que bom para si mesmo.

A coletividade tinha ganho vida melhor durante aqueles anos. As ruas estavam mais limpas, conseguiram que asfaltassem-nas em grande número, muros foram levantados, fachadas foram pintadas. Mas o grande triunfo de todos, sob a batuta de Cleovansóstenes, foi a escola inaugurada havia poucos meses. Ninguém duvidava que todas aquelas dádivas se deram em função da presença de um homem como aquele. Um grande homem. Um anjo. Tinha ensinado o pessoal a manter limpo o meio em que vive, tinha instruído os jovens a não se deixar levar pelas drogas. Tinha conseguido grandes melhorias em termos de cidadania para o bairro.

Muito distante dali, numa rua onde semanalmente havia feira-livre, os moradores estavam indignados com a prefeitura, que não mandava os funcionários para a limpeza. Juntaram tudo e jogaram no rio, com a promessa de que fariam a mesma coisa na semana seguinte, se o prefeito não tomasse a devida vergonha na cara.

Foi assim que a capa do sofá retivera a passagem dos restos da feira-livre.

Uma comissão foi montada no bairro com o objetivo único de convencer Cleovansóstenes a se candidatar a vereador. Tanto fez a comissão, tanto falou com ele, mas nada conseguiram. Ele continuaria a implantar cidadania na consciência de todos, mas longe da política.

Os restos das feiras jogados no rio começaram a atrair ratos, baratas, insetos, aranhas, escorpiões.

Cleovansóstenes já havia conseguido uma cadeira cativa no bar. Era ali que falava sobre limpeza ambiental, o perigo das drogas, a insensatez de se manter armas em casa, a necessidade de tolerar certas coisas em prol da melhoria de vida social entre todos.

Os ratos deram crias, se multiplicaram e morreram; o espaço do rio se tornou pequeno para as baratas e insetos e eles começaram a desvendar novos horizontes, margem e rio acima.

Cleovansóstenes era querido por todos. As coisas que falava caíam como exemplos nos ouvidos de todos e sua postura era imitada por crianças e jovens.

A passagem do rio estava atravancada. A água começou a subir desordenadamente.

Certa tarde, Cleovansóstenes estava entristecido. Ninguém conseguia atinar o motivo, pois nem tudo que ele fazia era inteligível a eles. Era um sábio. Um sábio querido e amado. Era uma tarde e ele estava no bar com sua costumeira cerveja, falando a uma pequena platéia sobre não conseguir vislumbrar um mundo melhor perante tantas falcatruas dos vereadores da cidade, que carcomem o dinheiro público como câncer corrói a carne. Não era pelo dinheiro em si, se bem que apenas isso já seria suficiente para mandar todos para a cadeia. Mas era pelo que significava a atitude deles, de descaso real e geral pela consideração pública. Vereadores usando carros à bel-prazer; cobrando propinas descaradamente; empregando vagabundos familiares em empresa que pertenciam de direito ao povo; extorquindo percentuais dos salários dos funcionários realmente trabalhadores em troca da manutenção do emprego; obrigando camelôs a apoiarem-nos em época de eleição, em favor de vistas grossas à pretensas irregularidades em suas barracas; juizes e ministros usando aviões, cuja função seria também e justamente monitorar o uso desses aviões; senadores promovendo lobbies arranjados em detrimento ao bem-estar social. Homens matando homens por acasos descabidos; violência na escola, na arquibancada, na praça. Sujeira pela cidade; restos de vergonhas escondidas nas atitudes de munícipes; prefeitos que nada fazem em prol da comunidade que um dia fez número pela cédula de votação. Trens que não funcionam; ônibus que demoram ou seus motoristas que passam pela esquerda porque viram apenas um ou dois idosos no ponto, dando-lhes sinal. Juízes de futebol que vendem resultados; presidentes de clubes que compram resultados; técnicos de futebol abandonam seus clubes na reta final do campeonato. Dinheiro como escudo de proteção psicológica se transformando em ponto de atração de ladrões, amigos hipócritas, alpinistas circunstanciais. Guerra no Golfo; guerra na Europa; guerra na memória dos sobreviventes da década de quarenta; mortes insensatas de crianças iuguslavas e kosôvares; protestantes ingleses em revolta violenta contra católicos europeus; mulheres mutiladas na África para que não sintam prazer sexual. Humildes entregando seu último quinhão para líderes religiosos e estes viajando em jatinhos particulares, comprando fazendas, bens, vestindo Pierre Cardin, rindo, dormindo com mulheres caríssimas. "Manipulação, pessoal. Eis a palavra. Somos todos manipulados pelas vontades dos grandes e não percebemos. Em cada grão de arroz de seus pratos, conseguidos com tanto esforço, quando conseguido, há o 'sim' e o 'não' do prefeito oferecendo favores para que não seja intimado numa CPI qualquer; há a corrupção armada em precatórios imundos; há a assinatura do vereador na lei idiota; há o ingresso pago para o espetáculo infame de mulheres que balançam os quadris e se auto-proclamam artistas; há a letra idiota da música sem mensagem; há as cenas imbecis de filmes caros, sem noção de realidade, repleto de signos de uma civilização baseada na hediondez do subconsciente humano. Manipulados, é o que somos. Compramos o que querem que compremos, consumimos o que querem que consumamos, pagamos o quanto querem que paguemos. Por que há homens assim, tão irresponsáveis? De onde vem esta necessidade absurda de sofrimento de todo um povo? Que atitude desencadeou esta saraivada de explosões em que se transformou o relacionamento humano?"

Ninguém da platéia entendeu coisa alguma, mas o tom de voz do "amado amigo" era triste, o que foi suficiente para entristecê-los igualmente. Cleovansóstenes sorveu o último gole de cerveja daquele dia já em início de noite, tragou o cigarro já no filtro e saiu. Deixou atrás de si algumas pessoas lamentando a tristeza de suas palavras, outras trocando elucidações sobre elas, outros ainda admirando mais aquele homem.

A noite caiu de repente. Cleovansóstenes estava sozinho em casa, bêbado como nunca, tossindo um escarro onde ele próprio vislumbrava a vida. Tropeçava nos poucos móveis enquanto procurava o maço de cigarros. Nunca bebera tanto. Resolveu deitar e dormir. Estava realmente bêbado.

Tão repentina quando a caída da noite foi a queda da tempestade. Veio como se alguém houvesse pego toda a água do mar numa concha gigantescamente grande e despejado sobre a cidade. Parecia não ser feita de pingos d'água, mas de comportas abertas uma ao lado da outro no céu. E durou horas.

Os habitantes do bairro passaram toda a tempestade protegendo a casa, em vão. As águas invadiam as casas como a deslealdade dos políticos invade os direitos do povo, como a violência social invade a privacidade da população, como a inconsciência social da população invade sua própria desorientação psicológica. Entrou destruindo portas, móveis, barracos, telhados.

O pessoal do corpo de bombeiros descobriu que a água das chuvas não conseguiu seguir sua trajetória normal pelo rio que cortava o bairro, pois este estava completamente entupido de lixo.

Houve muitos feridos e muitos desabrigados. Mas apenas uma morte, uma vítima fatal da calamidade, da catástrofe natural. Cleovansóstenes.

Uns diziam que, por estar bêbado, não conseguira acordar. Outros diziam que a tristeza da tarde anterior foi que o matou. Mas todos eram unânimes na afirmação de que sua morte fora uma injustiça da vida. "Se Deus errasse, a morte dele seria um de seus erros". "Tanta gente ruim precisando morrer e não morre". "Que coisa! Os bons se vão antes".

Na missa de sétimo dia promovida pela comunidade, e paga também, houve um início de revolta pela morte injusta do querido amigo, em que o padre teve alguma dificuldade para amenizar. Estavam todos chorosos pela morte de um justo. No sermão, o padre lembrou a todos as palavras do homem, com as quais procurava sempre alardear a simplicidade e a cordialidade entre todos.

E foi com uma bela frase do morto que o padre encerrou a missa e iniciou o féretro. "Que atitude desencadeou esta saraivada de explosões em que se transformou o relacionamento humano?"

Serg Smigg
Enviado por Serg Smigg em 10/11/2006
Reeditado em 08/12/2014
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