Sentiu uma coisa estranha a lhe subir pelos pés, pelas pernas, formigando pelo corpo inteiro. Era um calor, uma pressão como se o sangue lhe fosse romper as veias.  Era a cena do beijo. Aquela cena que lhe tinha queimado as retinas, rasgado o coração. Andou em vaivém, era fera enjaulada. A sala 4x4 não comportava o tamanho de sua ira, nem diluía o veneno coagulado na garganta.  Abriu as janelas, o calor sufocava.

Tinha certeza, o mundo ia pegar fogo. Por dentro e por fora. Era a cena do beijo. Não ia engolir, não conseguiria. Fechou os olhos e mentalmente redesenhou o rosto dele se curvando para beijar a boca do diabo. Quando anonimamente lhe avisaram sobre os dois no restaurante, uma risada esganiçada retumbou no ar, arranhou o verniz das portas, estilhaçou a luminária pendente do teto. Era a sensação da morte! E quando viu de perto, entrou numa espécie de transe ensandecido. Então era verdade. Era tudo verdade!
 
Na volta pra casa quis fazer uma loucura. Com força desconhecida, num ímpeto de fúria, deslizou o braço pelo balcão, sob o painel da TV. Tudo ao chão, em mil pedaços. Tinha visto numa novela e dissera consigo: que desperdício, quebrar tanta coisa novinha. Agora pensava diferente: quebrar era bom! Era muito bom! Fortalecia o ego, elevava o poder, exorcizava o ódio, fazia barulho... E que reconfortante o barulho dos cacos se partindo! Exatamente como estava partida por dentro naquele momento... Toda esfarelada, picada, triturada, moída pela cena do beijo...

A fúria não se esgotava. Queria mais, muito mais. Foi à cozinha e tentou se conectar a algum objeto que lhe devolvesse um pouco de equilíbrio. Garfos! Eram pequenos. Martelos! Socavam pouco. Espetos! Cegos de corte. Facas! Empunhou a maior que achou, e brandindo-a no ar a fez reluzir sedutoramente. Comprimiu o objeto contra a face numa força que lhe marcou a pele em vergões vermelhos. Fechou os olhos, viu de novo a cena do beijo... Ordinários!  A lâmina relampejou perigosamente no ar. Foi um golpe só: a abóbora japonesa que decorava a mesa se espatifou em múltiplos pedaços. A raiva foi junto.

Na casa do vizinho botavam pra rodar um vinil de Demis Roussos.  Shadows tinha um poder espantoso de acalmá-la. Amava aquela canção...