Tábula Rasa

O discípulo ajoelhou-se em frente ao seu mestre, que estava sentado ao chão, de pernas cruzadas. O olhar do velho homem parecia enxergar as profundezas do vazio, como que por meio de um periscópio em um oceano no vácuo. Sem mover sua cabeça, o mestre lhe perguntou:

– Estudaste o que solicitei?

E o discípulo lhe respondeu:

– Não.

– Não?

– Não, meu mestre, fui além.

– O que queres dizer?

– Pediste-me que estudasse tua obra, fui além.

– O que insinuas? – O mestre pareceu mover lentamente sua cabeça para cima, enquanto que suas sobrancelhas quase que denunciavam sua inquietude, não fosse pelo semblante misterioso que tornava sua alma uma impenetrável fortaleza, guardada pelos mais altos muros de experiência e sabedoria.

– Veja, meu mestre... – Havia algo de amistoso e de aterrorizado em seus olhos - Pediste-me que estudasse sua produção, que buscasse em sua obra o máximo que pudesse carregar em meu pensamento. Solicitaste-me que alimentasse minha alma com o pão que me fornece, que enriquecesse meu espírito com as joias de sua erudição. Pediste-me que buscasse a iluminação de seu conhecimento para que me libertasse das trevas que me aprisionam. Ora, fui além.

O mestre moveu apenas um de seus olhos, que estremecia, enquanto que o outro permanecia intrépido.

– Te ofertei o mais formidável regalo: minha sabedoria. Instrui-o a caçá-la com todo o furor. Brindei-te com toda a minha vida, com tudo o que ela representa. Não há maior dádiva que possa alcançar nesta existência, e ainda dizes-me que foi além?

– Sim, senhor... – Soluçou.

– Tens a oportunidade de se explicar, caso o contrário, não o perdoarei. – Direcionou novamente sua cabeça ao chão.

– Senhor... – hesitou – Pediste-me que buscasse em ti a solução. Busquei-a, e não a encontrei. Pediste-me que iluminasse-me com seu brilho, mas percebi que ele era escuro. Jogaste-me a corda, e quando a segurei, caí mais fundo ao abismo. Foi quando percebi o seguinte: o senhor também se agarrava a uma amarra. Tomei então uma decisão: decidi por não buscar em ti, mas buscar onde buscou. Decidi por ir além; decidi por apanhar tudo o que podia carregar em minha alma, mas ao nutrir-me dos espólios de minha caçada, não provei do alimento que me ofereceste, comi, na verdade, do mesmo fruto que o senhor, e percebi que era bom. Foi então que algo me ocorreu: optei não mais pela condição de discípulo; optei por transformar-me em ti.

Ele ofegava, enquanto seu velho mestre permanecia imperturbado. O silêncio começou então a se propagar, e aos poucos, apossava-se de tudo o que ali estava. Tornou-se então opressor. Por um longo tempo, o mestre privava-se até mesmo da respiração e não parecia importar-se com os gestos impacientes do aprendiz. Um longo suspiro, enfim, quebrou a quietude. Foi então que se levantou, aproximando-se de seu aluno, que não se atrevia a direcionar os olhos para a face de seu mestre.

O velho homem então colocou uma de suas mãos sobre o queixo do discípulo, e com apenas um dedo levantou seu rosto com delicadeza.

- Muito pensei, e algo também me ocorreu. – Dizia, enquanto olhava para o céu – Tens razão, quando afirmas que desvencilhou-se das trevas que lhe aprisionavam. Porém, cometeste apenas um desacerto. Um engano que traiu à sua sensatez.

Houve mais um suspiro, ainda mais profundo que o anterior.

– Voaste perto demais do sol.

Uma lágrima escorreu de um dos olhos do rapaz, seu corpo estremeceu, ouviu um ruído agudo, enquanto via as mãos do mestre desembainhar uma adaga, antes oculta por suas vestes. O único som que se ouviu em seguida foi o da lâmina perfurando a carne de seu peito, e o silêncio logo voltou a imperar.

O mestre sentou-se novamente e abrigou-se próximo ao fogo.

Rafael Gonçalves
Enviado por Rafael Gonçalves em 16/07/2016
Reeditado em 23/09/2017
Código do texto: T5699205
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