Blues Bar Man

Havia um bar noturno nas proximidades de onde eu morava antigamente, repleto de charutos, whisky e blues. Sempre pedia ao barman que tocasse um disco de Muddy Waters and Otis Span, ao vivo. “Got my mojo workin” era minha música predileta. Sentava-me ao balcão meio de lado e acendia um delicioso cubano. Em seguida e sem que eu pedisse nada, o barman servia minha dose de White Horse sem gelo. Enquanto bebia e tragava com prazer, mirava atentamente a pista de dança, onde mulheres esculturais e sem nenhum pudor dançavam maravilhosamente. Não gostava muito de exibir-me na pista, mas adorava as mulheres, todas elas. Com exceção da senhora que ficava no caixa, posso dizer que transei com todas que ali pisaram.

Freqüentei este lugar por mais de dois anos, mas fiz poucos amigos. O bar acabou se tornando a minha casa e meu apartamento um “retiro para dormir e transar”. Flertava com todas as mulheres que via, acompanhadas ou não. Sexo, charuto, whisky e blues era a combinação perfeita. Certa vez veio ao bar um casal onde a esposa me deixou deslumbrado com o corpo que tinha: seios fartos e empinados, pele morena, coxas grossas e bunda fantástica. Ficamos trocando olhares o tempo todo, sem que o marido percebesse. Ela sabia que tinha um corpo esplêndido, sabia como provocar. Quando seu marido foi ao banheiro eu corri em sua direção e disse :

- Vou lhe falar rapidamente para que seu marido não desconfie de nada, mas dispense-o assim que puder, invente uma desculpa e volte para cá, para podermos conversar a sós.

- O que está pensando que sou...

- Por favor. Não discuta, apenas me dê uma oportunidade – antes mesmo de terminar fui retirando-me sorrateiramente, pois o marido estava voltando.

Voltei ao meu lugar de costume e continuei bebendo e fumando como se nada tivesse acontecido. Realmente o marido nada percebeu. Não me sentia confiante e quase tive medo, pois a morena não havia me dado nenhum sinal positivo e ainda poderia contar tudo ao rapaz, o que certamente resultaria em confusão.

Mais tarde vejo o garçom se aproximando e deixando um bilhete para mim em cima do balcão. O telefone e o nome da morena, que já nem me lembro mais. Quase gritei de felicidade. Liguei no dia seguinte para marcar nossa diversão.

No primeiro encontro fomos ao meu apartamento. Ela foi tirando a roupa logo ao passar pela porta. Poucos minutos depois estávamos nus e trepando sem camisinha, porque ela odiava e eu também não fazia muita questão. Depois desse dia nos encontramos muitas vezes. Quase nunca conversávamos. Era apenas sexo até o esgotamento físico.

Outro dia, estava sentado, fumando charuto, bebendo e ouvindo blues quando aparece uma mulher com quem havia transado semanas antes. Até então sem novidades. O problema foi ela dizer que estaria grávida se não tivesse tido um aborto. Permaneci parado por alguns minutos tentando entender qual era a da garota. Contou-me esta pequena história com algumas lágrimas nos olhos. Caso fosse verdade, qual seria a importância de estar me contando isso agora? Eu tentava consolá-la sem dar a mínima importância. O engraçado é que três dias depois aparece outra me dizendo que também estava grávida e que deveria assumir as responsabilidades de meu filho. Será que consegui engravidar duas mulheres numa mesma semana? Será que tenho espermatozóide de ouro? Achei um absurdo. Certamente logo haveria uma fila imensa de mulheres na porta do bar dizendo-se grávidas e pedindo-me dinheiro. Mulheres realmente não prestam. Na verdade estavam se aproveitando de minha vida boêmia e alcoólica para colocar-me culpa e tirar proveito. É muito mais fácil culpar um bêbado que um rapaz sóbrio, que certamente mandaria esta senhorita pro meio do inferno. A suposta mãe de meu suposto filho falava apreensiva comigo, mas eu resolvi tudo aos berros:

- Cale essa boca maldita!!! Você quer desgraçar a minha vida com uma história estúpida só porque se apaixonou por mim e quer comigo se casar?

- Isso não é verdade. Mas a gravidez é verdadeira...

- Vá pro inferno com os teus lamentos! – finalizei a conversa virando-me para trás e pedindo ao velho barman uma dose dupla de White Horse.

Este fato me aborreceu muito. Tinha que dar um basta nessa situação antes que virasse mania. Depois desse dia nunca mais a vi. Com certeza pela falsidade do que me contou. Como tem gente no mundo a fim de lograr o próximo. Fiquei tão abalado com essa coisa toda que me senti muito carente. Lembrei-me de não ver meus pais durante muito tempo e resolvi fazer uma visita. Era o que eu precisava: ver meus pais e irmãos em minha velha cidade. Isto me faria bem. Festas, mulheres e afazeres profissionais me fizeram adiar um pouco esta visita por algumas semanas. Mas num feriado consegui viajar.

Dinheiro, malas, CD’s: tudo pronto para a viagem para a casa de meus pais. O percurso demoraria algumas horas, mas no banco de passageiros tinha três litros de whisky para me fazer companhia, apesar de a bebida estar me prejudicando um pouco, já que várias vezes voltei para casa completamente bêbado e sem saber como tinha completado o trajeto.

Como era de meu costume, fiquei tão bêbado que quando voltei à consciência já me encontrava em meu velho quarto de infância, em minha velha cama, na velha casa de meus pais. Não demorou muito para que uma dor de cabeça violenta me atacasse. Fiquei mais tempo na cama, quieto e sem me mover, parado e pensando no que diriam meus familiares a respeito da volta do filho pródigo e ébrio. Não me lembrava em que condições eu havia chegado. Ficava pensando neles zangados e me bronqueando. Em casos extremos quando desaponto bastante mamãe, ela chega a chorar de desgosto. Esses pensamentos me torturavam porque eu sabia que provavelmente isto me aconteceria mais uma vez.

Passada a enorme ressaca, levantei-me vagarosamente para um banho. Enquanto me banhava procurava tomar coragem para conversar amigavelmente. O banho foi longo. Fiz a barba, passei loção, limpei meus ouvidos, coloquei um pouco de perfume em meu pescoço e fui para a sala onde deveriam estar. Sistematicamente se reuniam nesta sala para assistir ao jornal da noite. Quando ainda morava nesta casa, eu era o único que não participava destas reuniões chatas. Ficava trancado em meu quarto ouvindo música e lendo muitos livros. A televisão sempre me aborreceu.

Atravessei o corredor que leva até a sala calmamente, respirando lentamente. Que ressaca. A sala era à esquerda. Dei meu último suspiro e entrei de uma só vez. Nem terminei o passo e já parei completamente assustado com a cena que vi: minha mãe num canto da sala chorando convulsivamente; minha irmã mais velha ajoelhada tentando levantar minha mãe. Foi terrível. Imaginava certo desgosto de meus familiares, porém jamais pensaria que provocaria tamanho descontrole emocional. Fiquei estático, trêmulo, angustiado, nervoso, paranóico. Por vários segundos não pude movimentar um único músculo de meu corpo, nem produzir um único pensamento que não fosse o de consertar, ou me desculpar, ou ainda dizer-lhes que isto jamais se repetiria. Mas creio que nada resolveria. Por isso mesmo fui procurar meu pai que era um homem calmo, sensato e ponderado com tudo o que faz. De certo saberia me ouvir e ajudaria a me desculpar com o resto da família.

A sala de visitas era o lugar onde costumeiramente meu pai se sentava para fumar seu cachimbo marrom e ler os jornais e revistas da semana. Sem demora fui a sua direção, sem ser notado por minha mãe e irmã. Embora, quando cheguei vi mais uma cena estranhíssima que não consegui entender: muitas pessoas em pé formavam um quase círculo no centro da sala. O clima e os rostos eram mórbidos. Até então ninguém havia notado minha presença. Aproveitei-me inclusive do silêncio para descobrir o que acontecia. Não consegui dizer nada. Aproximava-me lentamente para que não fosse percebido, ao tempo em que meu corpo ia absorvendo todo o clima de tristeza do local; mas também sentia muita curiosidade. Quando cheguei próximo ao centro, mais uma cena chocou-me: havia um caixão de madeira aberto, e sua tampa estava encostada na parede. Comecei a chorar. Aquilo me doía muito. Precisava olhar dentro do caixão para certificar-me de quem era o defunto. Com o corpo dolorido e fui até o caixão, e por mais uma maldita vez vi uma última cena que me enlouqueceu de vez, pois o corpo estendido ali era o meu. Gritei forte e convulsivamente mas ninguém me ouviu. As coisas naquele dia desgraçado acumulavam-se em meu peito de uma maneira que não podia agüentar. Como se cada segundo representasse uma vida de tristezas e dores fui sentindo o tempo passar em mim. Não sei por que diabos precisava sofrer tudo aquilo. Tentei me comunicar com cada pessoa mas foi em vão. Meu estado havia piorado e me senti assim por horas. Não havia saída: eu estava preso num mundo onde não podiam me ver, ouvir ou sentir. Não sabia o que fazer nem para onde ir. Meu peito doía muito, e tive que ficar e assistir meu próprio velório.

Meu tio que até então só chorava, resolveu falar:

- Porque morreste tão jovem? Porque não levaste a mim, meu Deus? Um maldito acidente tirou-lhe o que de mais precioso há neste mundo: a vida...

Enquanto meu tio falava, eu chorava sentindo o peso de cada palavra em meu coração. Minha tia Dulce tentava consolá-lo. Então pude entender minha mãe e minha irmã na sala. Nesta altura não conseguia nem pensar.

Sentado em seu lugar de costume, vi meu pai chorando de um jeito que nem sei dizer. Meus outros dois irmãos estavam em pé, ao lado do caixão. Um pouco mais a frente, a mulher com quem havia discutido no bar alegando não ser o pai de seu filho, segurava um bebê em seu colo. Ela não havia mentido. Havia me tornado pai realmente, mesmo tendo negligenciado tudo.

Mais tarde descobri que este acidente foi poucos quilômetros de minha casa. Minha morte foi instantânea. Pode parecer ironia, mas no auge de toda aquela agonia eu sentia falta de meu cubano e meu whisky, mas eu, eu estava morto.